sexta-feira, 19 de novembro de 2010

De Mazatlan a Puerto Vallarta

De Mazatlan a Puerto Vallarta

De Mazatlan, sei que dista doze horas de ferry de La Paz, do outro lado do Mar de Cortez, no México continental.
O “Piloto II”, pintado com as cores do México, brilha nas águas azuis do Mar de Cortez, conduzindo à ilharga o Chihuahua Star até atracar no porto de Mazatlan.
O condutor de bicicletas tem o mesmo tratamento dos condutores de camiões: prioridade na saída; desce para o piso B; e pode usar o elevador.


Mazatlan

Como tenho um raio partido e queria comprar uma chave de cassetes (para desmontar a cassete da bicicleta, em caso de necessidade), procuro a bicicleteria Vallena (ainda não percebi porque raio escrevem V e dizem B…). À saída do cais de embarque cruzo-me com o Baltazar, um idoso numa bicicleta que aparenta ser da mesma faixa etária, e pergunto-lhe se conhece a bicicleteria Vallena. Olha-me com ar espantado e diz que sim, perguntando-me como sei eu da Vallena, pois não sou destas bandas. Explico-lhe e quando lhe pergunto onde fica, ele diz-me para o seguir que me leva lá…”é mais fácil”.
Sempre que o trânsito o permite, procuro pedalar lado a lado pela avenida Aleman, entabulando conversa sobre a vida na cidade. Diz-me que a principal riqueza é a pesca, que há cerca de duzentos atuneiros registados e mais de quatrocentos “camaroneros”. Que o mar é muito rico e que da terra nasce e cresce tudo o que precisam para viver… frutos, legumes e feijão. Já deixámos a Aleman e seguimos por uma rua perpendicular, estreita. Ele pedala à minha frente, vê se vem trânsito em cada cruzamento e, com a mão esquerda, manda-me avançar…É o meu batedor privado e voluntário… Enquanto lhe retribuo com a minha parte da estória, chegamos à Vallena, que está fechada. Fico a observar as instalações, a ver se tem um horário afixado e já o Baltazar dá meia-volta e me pergunta se não quero que me leve ao “tallere” onde ele vai com a sua bicicleta. Digo-lhe que sim e sigo-o novamente, agora em sentido contrário e contra o sentido do trânsito. A rua é de sentido único mas isso não parece ter significado para ele, que segue em ritmo rápido, avançando e espreitando em cada cruzamento e fazendo-me a sinalética enfaticamente para avançar…e eu avanço, com um sorriso estúpido e incrédulo: ou sou um gajo mesmo de sorte, ou este é um mundo muito melhor do que o melhor mundo que ousei sonhar… Chegamos à bicicleteria Fajardo e o Baltazar praticamente nem pára, mal me dando tempo para lhe agradecer…Como é que lhe poderia transmitir que não imagino melhor forma de entrar em Mazatlan; que a naturalidade da sua atitude me atingiu num ponto vulnerável, deixando-me com dificuldade momentânea em articular sons – ainda não sabia que dois dias depois, enquanto os meus dedos procuravam moldar as palavras, voltei a sentir um aperto algures entre a garganta e o estômago… Mas o Baltazar já tinha desaparecido na próxima esquina.

Mazatlan - Jesus

Jesus, sentado no pequeno banco de madeira, no centro da oficina, com uma roda entre os joelhos, levantou o olhar e disse-lhe qual o problema. Desta vez estava decidido a fazer algo mais do que substituir o raio partido e expliquei-lhe que os raios estavam a quebrar sistematicamente. Queria ou uma roda nova, ou os raios todos substituídos, ou, no mínimo, todos os do lado oposto á cassete – o único onde têm quebrado. Combinámos que substituía apenas raios de um lado. Perguntei-lhe quanto custaria e ele respondeu 60 pesos. “60 pesos, tudo”? E ele reafirmou que sim. Resumindo, para os interessados: paguei 17 dólares (2 dólares pelo raio e 15 pela instalação) nos EU; 50 pesos (que me pareceu uma pechincha) em Ensenada para substituir um (e por massa na roda de trás); 50 pesos em Guerrero Negro para substituir dois raios (os raios eram meus); 6 pesos por cada raio (não sei quanto por substituir um raio) em Ciudade Constitution e, agora, 60 pesos por 18 raios e respectiva montagem, em Mazatlan.
Quando voltei de tomar o pequeno-almoço numa taqueria perto, já estava pronta a Dempster. Perguntei de novo quanto era, para me certificar de que não havia engano, e Jesus olhou para mim com um ar que me pareceu de “fadiga” com a repetição do preço e lá insistiu nos 60 pesos. Dei-lhe 70 e ele pareceu confuso com o extra… deve ter pensado: “este cretino pergunta-me o preço não sei quantas vezes, pois deve achar demasiado, e agora dá-me dez pesos…”. Mas sorriu de satisfação quando lhe sugeri tirar uma foto à bicicleteria…com ele!
Os dias vão ser mais difíceis de gerir se acabar por viajar com o Brian…decidimos ir a um cibercafé para ele checar o mail – continua à espera de resposta de um cuchsurfing para saber se tem alojamento em Mazatlan.

Mazatlan - Teatro Angela Peralta

Acabamos por decidir pernoitar em Mazatlan e partilhamos um quarto no Hotel Belmar, no Malecom, frente ao mar – está em promoção e os 450 pesos reduzem-se a 350.
De cada praça, cada rua, cada esquina, cada casa, cada porta, do pequeno centro histórico de Mazatlan, brota o México que construi no subconsciente. Nos bancos de ferro, dispersos pelas ruas e praças arborizadas, namora-se com intensidade e sem preconceitos; discute-se política, basebol, futebol ou talvez a pescaria da noite passada; assiste-se impassível ao lento vai-e-vem de quem circula sem pressa, sem regatear um sorriso, um cumprimento e sempre disponíveis para juntar conversa; ouve-se música; engraxam-se sapatos; dorme-se a siesta com um olho semi-aberto. De cada porta emana um mar de odores, cores e sons.

Mazatlan

Olhares quentes, vendem gelados de muitas cores; Olhares de mel, vendem doces de muitos doces; olhares tristes, vendem tacos e burritos de muitos aromas; olhares marotos, vendem refrescos de todos os frutos; olhares de veludo, vendem frutos de todas as texturas e paladares. Olhares de todos os olhos, negros, brilhantes, mortiços, cansados, vivos, explosivos, atrevidos, gratos, tímidos, apelativos, implorativos, dignos, param, compram, comem, bebem, falam, cumprimentam-se, viajam até ao próximo olhar.

Mazatlan

O Mercado Pino Suarez parece ser um coração gigante de onde emana e onde aflui toda a vida de Mazatlan. Descrever o interior era falar de novo de todas as cores a multiplicar por todos os frutos, vegetais, legumes, flores, roupas, calçado, utensílios (de plástico, ferro, alumínio, barro), bugigangas, carnes, peixes, queijos, doces, bebidas e comidas – sem esquecer os torresmos – esses mesmo – de toucinho de porco.

Mazatlan - Mercado

Numa das esquinas fui travado não sei se pelos dois pares de olhos marotos, se pelas cores dos grandes boiões de refresco. Enquanto olhava indeciso que cor escolher, o polícia que sorvia pequenos goles de sumo de goiaba, perguntou-me se já tinha provado o sumo de cevada. Por acaso já, mas disse que não e ele afirmou convicto que era o melhor. Aceitei a sugestão e o olhar negro maroto despejou duas conchas de sumo no grande copo de plástico, com palhinha. Ali sorvi, o mais devagar que consegui, o delicioso sumo de cevada, perante o ar inquiridor, primeiro, e orgulhoso, depois, do polícia e o olhar, agora cúmplice, de seda negra das duas mexicanas. Subi ao primeiro piso do mercado, a zona de restaurantes. O longo corredor estava praticamente às escuras, apesar dos restaurantes de um e outro lado. Alguns estavam fechados, os outros abertos mas sem qualquer cliente. As ementas afixadas eram pouco variadas e não muito apelativas – ou talvez fosse o ar descuidado, sombrio, mortiço, sujo mesmo. Dei uma volta e surpreendi-me com a ausência do habitual apetite voraz…a cabeça estava na praça junto ao Teatro Ângela Peralta, de esplanadas com música ao vivo e ementas em inglês. Mas que raio de partida esta, então não havia de sorver um pouco mais do coração de Mazatlan!?

Mazatlan - Mercado, até quando o estômago resistirá?

Dirigi-me ao restaurante que me pareceu menos sombrio e questionei o rapaz de negro sobre o que havia para comer. Com ar incrédulo, perguntou-me se queria mesmo cenar e confirmei com a cabeça. Trouxe-me o menu e escolhi caldo de camarão e brocheta de marisco. Procurei uma mesa junto à varanda, de onde subiu um ruído caótico de vozes, buzinas e motores e quando puxei a cadeira, fiquei com o tampo na mão. Não desisti, insisti. Na cozinha, à minha frente, a frigideira incendiou-se e o cozinheiro/empregado desligou o gás. Os camarões passaram ao meu lado, do frigorífico para a mesa da cozinha. Quando pedi uma Tecate para beber, a miúda que passou o telemóvel das mãos para o decote da T-shirt, perguntou-me quantas queria…desta vez era eu o surpreendido… respondi: uma para já. E ela, algo atrapalhada, “e só vai querer uma”? Porra, eu não estava a perceber o ponto… ela explicou. É que tinha de ir buscar à loja comprar…Foi ao frigorífico e trouxe a única Pacífica que havia no restaurante. Decidi deixar-me de esquisitices e ficar-me pela Pacífica…O caldo escuro, com para aí uma dúzia de camarões médios, estava apaladado e soube-me muito bem. A brocheta tinha um gratinado com queijo e mostarda em excesso…Ia comendo e pensando que se o meu estômago e intestinos resistissem a este jantar, estava pronto para chegar ao Ushuaia sem passar muitas semanas de internamento!
Frente à municipalidade (câmara local) continuava a manifestação dos Picachotos. Homens, mulheres, jovens e crianças de Picachos, vieram exigir justiça, verdade e o cumprimento dos compromissos. Destruíram-lhes as casas para construírem uma barragem. Prometeram-lhes casas novas em substituição das antigas e água canalizada em Picachos. E não cumpriram qualquer das promessas…olhei para os rostos sisudos, fechados, olhares azedos, pesados e vi em cada um, um Baltazar acossado, revoltado e irremediavelmente destruído pela frieza dos cifrões numa folha A4 ou num moderno e-mail. Nas duas semanas passadas na Baja Califórnia, vi dezenas de placards publicitários da Secretaria de Comunicações e Transportes, do género: “o governo federal investe 34,1 milhões de pesos na construção desta ponte, em benefício de 80 000 cidadãos”. Já tinha constatado que não vi um único anúncio do género, mas relativo a hospitais, escolas ou obras sociais. Quantos milhões serão necessários para pagar a dívida a estes Baltazares, antes que deixem de o ser…



Mazatlan - Manifestaçao de Picachos

Vagueava em direcção a lado nenhum quando, de uma esquina próxima, o som roufenho de música quente me travou o passo. Estiquei o pescoço e estava enfiado do bar Olímpia. Calculava o próximo passo a dar – se avançar se recuar – mas já uma cinquentona volumosa, de camisola lilás bem cingida, com “LOVE” em dourado flamejante, me acenava de sorriso aberto e olhar afável. Não havia como recuar. Menos havia porque recuar…

Mazatlan – Bar Olimpia

O bar Olimpia é um barracão rectangular, pintado em tons de amarelo, laranja e vermelho. Tem uma mesa de bilhar, verde e vermelha, num dos cantos, junto ao balcão, que fica no extremo oposto à entrada e mesas com toalhas de plástico grosso, listadas de vermelho e branco. Uma grande jukebox reforça o ambiente festivo. Cruzei a sala toda para chegar ao balcão e senti-me o centro de todos os olhares… Pedi uma bebida forte (a pensar na digestão do jantar) e aceitei a sugestão para a tequilla – com sal e lima, para ajudar. Escolhi uma mesa suficientemente perto das duas que estavam ocupadas pelas quatro cinquentonas – empregadas do Olímpia – e seis ou sete homens não mais novos, mas com uma panorâmica ampla da sala.
Passei duas horas deliciado, com os sentidos a atropelarem-se. Na mesa de bilhar, sucediam-se os campeões, num roda-e-bota-fora, exibindo poderosas e certeiras tacadas; na mesa do canto, uma das empregadas seduzia um cliente sequioso, que passava de quarto em quarto de hora para a casa de banho; nas duas mesas junto a mim, a conversa era animada e um olhar mais demorado, uma mão feminina tocando uma masculina, ou um braço roçando fugazmente outro, pareciam ser a única partilha sexual; numa mesa, no centro da sala, um semi-bêbado entusiasmava-se a cada nova música com que a Junkbox nos brindava. Os vendedores ambulantes, oferecendo pevides, pistachos, chicletes, tabaco e outros bens, aqui de primeira necessidade, iam-se sucedendo. E não faltou o fotógrafo de polaróide ao peito, que teve a sorte de encontrar este desarmado e extasiado estrangeiro. Trocámos fotos – eu de digital em punho e ele de polaróide ao peito. Ganhei eu, que fiquei com ambas as fotos, e ele, que ficou com 50 pesos, depois de regateados (60 pela mudanças dos raios da bicicleta – a escala também chega aqui).

Mazatlan - Bar Olimpia, Polaroid

Do balcão, uns palmos acima da cabeça do empregado, Jesus – Cristo – e Nossa Senhora – sua mãe espiritual – partilham a escassa garrafeira, de onde observam, com ar compreensivo e tolerante, o mundo terreno que os alimenta.

Mazatlan - Bar Olimpia



Mazatlan - Adonde és!?

E a noite continuou, quente e musical. Na cantina “tertúlia”, o bar dos forcados amadores de Mazatlan, fui encontrar a praça de touros do campo pequeno em “corrida à antiga portuguesa”, com 6 magníficos toiros da herdade de não sei quem, nem que cavaleiros, mas com o grupo de forcados de Mazatlan!! E Vila Franca em “monumental corrida” e mais não sei quantas!! E eu, que detesto touradas e essa barbárie, não consegui ficar imune ao entusiasmo e carinho com que me trataram – sairia de lá de rastos com as Coronas que tinha para pegar, se não assumisse ser descortês e ficar-me pela pega de cernelha (a duas).

Mazatlan - Lisboa

Mazatlan – Che

Mas no caminho até ao hotel ainda joguei futebol, com o Mourinho, Figo, Ronaldo e Benfica pelo meio, e arrasei o sonho de um vagabundo que guarda religiosamente 10 (ou 100?) mil liras oferecidas por um turista italiano, há uns anos, e que me ouviu, incrédulo, dizer que as liras acabaram. Agora é o Euro, a nova moeda que circula na Europa, e em Itália também…

A companhia do Brian significa uma pequena revolução na minha (des)organização. Adora o ar condicionado, eu detesto; acorda às 5h da manhã, eu acordo com o nascer do sol, lá mais pelas 7h…; é-lhe indispensável a internet – actualiza diariamente o diário na Web -, eu dispenso; busca desesperadamente café de manhã, eu não sou de café; prefere as lojas de conveniência Oxxo – estandardizadas e iguais em todo o país -, eu é mais as tascas e vendas locais; tira fotos enquanto pedala, eu gosto de parar e demorar a tirar uma foto; é fortíssimo a pedalar, especialmente a rolar, e gosta de chegar cedo ao próximo hotel, eu gosto de seguir num ritmo mais calmo; tem forte preferência pelos hotéis, eu é mais campismo; janta tacos e almoça as suas invariáveis sandes de manteiga de amendoim e geleia de morango, eu procuro as loncherias e como o que há; mantém-se fiel às bananas, eu é goiabas, papaias, ciruelas, mamão, abacates…ainda não tive coragem de me atirar a uma jaca inteira! praticamente não fala espanhol, eu desenrasco-me… Tirando isto, somos iguais! Ambos homens, ambos de bicicleta, ambos pedalamos para sul…eu para a Argentina, ele para o Panamá.
Deixamos Mazatlan mal o dia clareia. Eu quero ir pela estrada (secundária) 15, ele pela “auto-pista” 15D…Como vou á frente, sigo pela 15 e o Brian segue-me. As duas estradas seguem paralelas mas, contrariamente às minhas expectativas, a 15 tem bastante trânsito, incluindo camiões, e praticamente não tem bermas. A condução é tensa, as tangentes dos carros são frequentes e uma ou outra culminou em saída de emergência pelas ervas que ladeiam a estrada.


Chegada aos tropicos
O Trópico de Câncer ficou para trás…estamos entre trópicos. A mudança na paisagem é “da noite para o dia”. A Sierra Madre Occidental surge no horizonte colada ao céu azul; a vegetação é densa e verdejante, cobrindo tudo o que o olhar alcança; os primeiros mangueirais, de folhas viçosas mas infelizmente fora da época do fruto, ladeiam a estrada; flores de diferentes espécies e cores despontam de quando em vez na berma da estrada; borboletas multicolores esvoaçam trapalhonas, chocando comigo aqui e acolá, pássaros ocultos pela densa folhagem das árvores, chilreiam ruidosamente ao longo da estrada.
Em Vila Unión as duas estradas voltam a encontrar-se e aceito a sugestão de experimentar a auto-pista. Na verdade a auto-pista, apesar de portajada, está longe ser uma auto-estrada. Tem apenas uma faixa de trânsito em cada sentido, bermas grandes e não tem separador central. Como é paga, o trânsito é mais escasso do que na 15 e, com as bermas largas, é muito mais seguro e descontraído pedalar.

Escuinapa

Escuinapa de Hidalgo é seguramente a povoação com maior concentração de bicicletas per capita que já vi. Novos, velhos, crianças, homens e mulheres, por diversão mas principalmente como meio de transporte, não dispensam a bicicleta. Em poucos quarteirões contei quatro oficinas… Na praça central, junto à igreja, existe um monumento à bicicleta, invocando razões ambientais…seja como for, aqui o uso da bicicleta é tão natural e intenso como o carro nas cidades ocidentais. Quando perguntei a um grupo de homens, sentados no jardim ao lado das suas pasteleiras, a razão de tão intenso recurso à bicicleta, olharam-se e responderam apenas que são precisas para se deslocarem…



Chapéus há muitos...

A estrada que nos leva, leva-nos por bons caminhos…vai contornando a Sierra Madre Occidental e poupa-nos as pernas; espraia-se pela planície costeira e traz-nos sucessivas lagunas de águas azuis, paraísos de milhares de garças brancas, pretas e cinzentas, pelicanos, patos e outras espécies que desconheço; flecte um pouco para interior e esconde-nos nas sombras dos mangais verdejantes; leva-nos mais para sudeste e a vegetação diversifica-se: os coqueiros agigantam-se numa elegância impar, encimados pela folhagem verdejante que forma uma copa circular, protegendo as dezenas de cocos presos em firmes cachos; das bananeiras, de longas e largas folhas esfarrapadas, pendem pesados cachos de bananas, enfiados em sacos de plástico branco ou azul, à espera de serem colhidos; do topo dos troncos finos das papaieiras, alinhadas geometricamente em modernas plantações, caem em cascata deliciosos frutos.

Laguna Garza

Mangueirais

E mais árvores e mais frutos e mais verdes e mais tons e sons… e de repente, uma curva da estrada presenteia-nos com uma, ou duas, ou várias bancas onde todos os frutos se exibem, num festival de cores, cheiros e sabores. Já consigo identificar metade das variedades, mas no meu exíguo saco de comida, só posso transportar uma quantidade muito limitada…opto pela diversidade: uma banana de qualidade/paladar, um abacate, duas laranjas diferentes, três goiabas, a papaia mais pequena e uma lima para acompanhar…


Cores e aromas

Desde que descobri as goiabas, não quero outro perfume. Uma em cada saco e desapareceram os cheiros que sempre se instalam em quatro meses de viajem…agora é um gosto abrir qualquer saco…a próxima experiência é na tenda e talvez mesmo no saco cama!! (infelizmente nos ténis não dá mesmo jeito…).
A independência anda por aí, de mãos dadas com a revolução. Os cartazes abundam: 200 anos de independência, 100 anos de revolução. Tierra e Libertad! Que viva Zapata! José Maria Morelos, Miguel Hidalgo, Emiliano Zapata, Lázaro Cárdenas. São tantas a s povoações com estes nomes, que se torna impossível utilizá-los como referência geográfica… Creio que há mesmo povoações que têm um nome oficial mas que adoptam localmente o destes Heróis…

Festejos da revoluçäo

Puerto Vallarta é um nome sonante na costa ocidental mexicana…a Bahía de Banderas dá-lhe as praias de águas azuis, ou verdes, ou brancas ou da cor do nosso olhar. A Sierra Madre del Sur, empresta-lhe a verdejante encosta que a protege e esconde do mundo. O rio Ameca traz-lhe a frescura e os segredos da montanha; nas suas margens, sob as frondosas árvores, estende-se um interminável colorido de artesanato, restaurantes, cafés, pequenos ateliers, cantos e recantos de onde nos olham diversas estátuas e criações artísticas. Não falta o John Huston, na sua cadeira de realizador, nem a casa da Elisabeth Taylor, que se terá apaixonado pela cidade…
Mas chegar a Perto Vallarta de bicicleta não é tarefa fácil…as ruas do centro da cidade são autênticos cartões de ovos, com o pavimento típico de seixo. Um ciclista nunca poderá esquecer a sensação terrível, das pernas, aos braços e mãos, mas com particular incidência no já sofrido rabo…a própria bicicleta gemia em todas as articulações, e não era reumatismo...


Puerto Vallarta

O hotel Jasmim fica no coração da cidade, na zona turística, mas não é turístico. Na recepção, a Nena, chegada de férias no dia anterior, 63 anos, sorriso fácil e voz tranquila, anunciou o preço de 500 pesos, mas tinham uma promoção para seniores, com idade superior a 60 anos. Respondi-lhe, a rir, que tinha 65 anos e o Brian devia ser ainda mais velho. Ela pegou na calculadora, tirou 20% aos 500 pesos e mostrou-me os 400 pesos do resultado. Eu não estava bem a acreditar, mas disse de imediato que fechávamos negócio…

Puerto Vallarta - Malecon

Não fosse a abundância de turistas, canadianos e americanos, e seguramente Puerto Vallarta seria uma cidade onde gostaria de despertar qualquer amante do mar, da praia, da floresta, da montanha, mas também da languidez, da tranquilidade, do calor, do sotaque espanhol, da tez morena mexicana, dos aromas dos frutos e da gastronomia, do colorido mercado, do charme das praças, quiosques, restaurantes e bares, das ruas inclinadas pela encosta íngreme, ladeadas de casas brancas em recantos improváveis e equilíbrio instável. Da vida lenta do Malecon, onde se come, bebe, passeia. Mas fundamentalmente onde se está, se conversa e se namora desde tenra idade...


Malecom

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Baja California Sur

Baja California Sur

Parece que durante a noite a terra girou ao contrário…o vento é forte e frontalmente contra! A estrada inflecte para nordeste, em direcção ao vulcão las três virgens, subindo paulatinamente sob o sol quente da manhã. Até o trânsito me parece antipático. Talvez pelo parco jantar de ontem, não sinto a energia habitual e custa-me enfrentar a dureza do percurso… A cada curva espero que a estrada inflicta para Este, para o vento ser menos adverso. A cada subida espero que seja a última. É um jogo que só posso ganhar mas está a dar luta. O vulcão aproxima-se muito lentamente e já lhe conheço três faces…
Uma derradeira subida e estende-se meus pés a vasta planície de cactos, com uma pequena elevação onde se ergue o rancho las três virgens. As duas ou três casas à beira da estrada – todas elas loncherias ou taquerias – são uma verdadeira miragem. Paro na primeira, refresco-me e descanso um longo par de minutos…

San Ignacio - Las Tres Virgens


San Ignacio - Las Tres Virgens

Cuesta del Diablo parece a designação certeira para a aridez, as escarpas, precipícios, falésias, que se estendem até ao Mar de Cortez, que alcanço pela primeira vez. A costa é pouco atractiva por enquanto: muito lixo, alguns estaleiros decadentes, outros abandonados, carros que parecem desintegrar-se a qualquer momento, desaparecendo envoltos na nuvem de fumo e horrendo cheiro a gasóleo.

Santa Rosalia - Coesta del Infierno

Entrar em Santa Rosalía é entrar numa cidade fantasma: enormes armazéns abandonados a desmoronarem-se; estruturas metálicas gigantescas, completamente enferrujadas e degradadas; estaleiros em ruínas. Afinal são os restos mortais da antiga estrutura de exploração e expedição de minério, especialmente carvão. Se ao menos os abutres também digerissem os restos mortais destas “criaturas” que os humanos construíram, exploram e abandonam, virando pura e simplesmente as costas…
Mas Santa Rosalía tem um coração bom…Num pequeno vale, completamente encravado entre as montanhas e o mar, estendem-se não mais de seis ruas coloridas, perpendiculares ao mar. Na rua principal pode degustar-se, ver e cheirar o que a Baja California tem de melhor: as conversas arrastadas à sombra das árvores, na soleira de uma porta ou na mesa de uma loncheria; a música desordenada e estridente, que brota de coluna penduradas nas paredes da farmácia, cafés, salões de beleza, etc.; comer deliciosos tacos de pescado, marisco, cabeza, guisado, ou “pratos à séria”; parar numa neveria, perdermo-nos a olhar para as cores e tentar a combinação perfeita de gelados; escolher uma sombra na única praça e observar dois miúdos a desafiarem-se em habilidades, um com skate, outro em trotineta.

Santa Rosalia

Pensava fazer campismo selvagem em San Lucas, uma dúzia de kms a sul de Santa Rosalía, mas existe um parque de campismo mesmo em cima da praia, frente à Isla San Marcos. O parque parece abandonado, degradado, com uns casebres, que devem ter sido casas de banho, fechados. Instalo-me a três metros da água espelhada do canal San Marcos e, pela primeira vez, decido não utilizar a cobertura da tenda. Assim fico ainda mais perto do céu, da terra e dos seus elementos vivos. Um grupo de pelicanos castanhos pesca em acrobáticos e ruidosos mergulhos, enquanto uma enorme diversidade de aves mais pequenas sobrevoam o canal em insaciável busca de alimento. Uma águia pesqueira espreita a sua oportunidade, do alto do cacto. O sol cerra lenta e subtilmente os olhos…

San Lucas - campismo



San Lucas


San Lucas

Mulegé tem o exotismo do oásis que surge de surpresa, após mais uma sequência de áridas montanhas; das palmeiras verdejantes chocando com o castanho árido das colinas que as circundam; do espelho intensamente azul que serpenteia o vale, fundindo-se no braço do oceano que visita tranquilamente a aldeia; das casas pequenas, coloridas, com varandas de ferro ou madeira e pequenos pátios e jardins; dos pequenos negócios familiares, onde proliferam aromáticos comes e bebes. E tem os turistas pachorrentos que descobriram Mulegé e parecem ter adoptado e ter sido adoptados pelos Mulegés.

Melegé

Pensava fazer apenas uma pausa para almoçar, refrescar-me e descansar um pouco, mas os tacos de marisco estavam tão frescos e apaladados, a Tecate tão fria e leve, a sombra da esplanada tão fresca, o sol, a dois metros, tão abrasador, as conversas ao lado, tão descontraídas e cantantes e a fugaz aparição da deslumbrante filha da dona do restaurante, aprisionaram-me toda a tarde à mesa…

Quando o sol mostrou sinais de fadiga, procurei a praia para aí acampar. Mas no caminho não resisti ao sorriso do Manuel, um mexicano pequeno e franzino, de olhar vivo, voz cantante e convincente, que me sugeriu pernoitar no seu “lindo parque de campismo”: Huerta de Don Ignacio. Quando escolhi o lugar em que ficaria, junto às laranjeiras e palmeiras, à sombra de um grande chapéu de folhas de palmeira, disse, orgulhoso e feliz, que tinha escolhido o mesmo lugar de um casal de Suíços, há poucos dias, e de uns alemães há não muito tempo – todos de bicicleta. Parecia ser a escolha comum dos amantes da bicla…
Ainda dei uma saltada à praia e passei meia hora de olhos fechados a observar o céu azul, a sentir o suave bater das ondas, a ouvir as aves esvoaçando e mergulhando, acrobáticas, nas águas, em busca do seu quinhão da natureza. E desejei que este pequeno lapso de tempo e espaço fossem infinitos. Mas quando regressei à Huerta de Don Ignacio, levei-os comigo e temos mantido a proximidade e cumplicidade…talvez a felicidade seja apenas um estado de alma, uma percepção íntima e talvez seja mais fácil de alcançar na unicidade dos elementos do que na sua multiplicidade…ou talvez seja apenas a Tecate.

Melegé

Deixei Mulegé e a Huerta de Don Ignacio ao som de “bonne courage” de uma dupla de miúdas francesas que chegaram ao parque já anoitecera. Estão a estudar seis meses no México, ao abrigo de um programa de cooperação académica, e aproveitaram uma semana de férias para conhecer a Baja Califórnia Sur. Parece-me que dormem no próprio carro alugado, mas não deixo de sentir um pouco de inveja pelo seu espírito aventureiro em tão tenra idade… De França ao México e do México à dura Baja California, parece-me um desafio afoito…
Mulegé é a porta exótica da Bahía Concepcion.
Na Bahía Concepcion o azul da água azul, é mais azul. A areia branca das praias de areia branca, é mais branca. A verde vegetação verde, é mais verde. O silêncio que brota da natureza em silêncio, é mais silencioso. O aroma fresco que a fresca brisa transporta das águas mais azuis, através da vegetação mais verde, no silêncio mais silencioso, inunda o sequioso deserto. Eu, diminuto e gigante, procuro não incomodar, apenas partilhar em silêncio.

Puerto Buenaventura
Sentispak, Escondida, El Burro, El Coyote… A ordem não interessa. Os nomes também não, mas El Requeson não tem igual... Só os sentidos. Só respirar. Se os “lots for sale” inundarem de vez a Bahía Concepcion e, com eles, vierem umas centenas que seja de turistas americanos e canadianos e, com eles, unas dezenas de mexicanos ganharem para comprar carros novos, telemóveis novos, roupas novas e de marcas que desconhecem, jantar em restaurantes finos e até fazerem férias nos EU ou no Canadá, julgar-se-ão felizes, mas a Bahía Concepcion não lhes pode perdoar…

Praia Sentispack


Baia Conception
Mesmo no extremo sudoeste da Bahía Concepcion, fica Cadejé. Cadejé não existe – apenas existe no meu mapa. Cadejé é uma espécie de loncheria. Cadejé é uma ponte enorme que está a ser construída desde Junho e deve estar pronta em Dezembro. Para isso trabalham cerca de cinquenta homens, que se espantam quando lhes digo que está muito calor. Calor agora, não, que já estamos na época do frio. Calor foi até Setembro ou Outubro…Apesar de ter algum curriculum na matéria, não consigo imaginar o que seja trabalhar 9 horas por dia, naquele deserto, com 48º…
Quando parei em Cadejé e entrei no loncheria, não imaginava que os lugares estivessem todos ocupados, que o anexo no “quintal” também estivesse repleto de trabalhadores, comendo em silêncio. Atravessei a sala, disse “buenas tardes”, mas o que lhes fez levantar os olhares do prato e fixarem-me, foi o “provetcho”, alto e bom som. E todos devem ter dito “gracias”, a julgar pelo ruído das vozes. À empregada por trás do balcão, perguntei se havia comida para mim, ou se estes homens de trabalho – e virei-me para eles – tinham comido tudo – o que arrancou várias gargalhadas. A mulher, depois de consultar a cozinha, disse que só havia peixe frito com arroz e salada. E eu disse que não podia querer melhor refeição. Tinha era de esperar que algum dos operários terminasse para lhe tomar o lugar…e assim foi: um grande e fresco peixe frito, à mesa com dois trabalhadores da ponte, pelos quais fiquei a saber o antes relatado…

Perto de Loretto

O deserto é cada vez mais verde e os cactos disputam agora o território a diversas espécies. Começam a ver-se indicações na estrada de gado bovino. De quando em vez emerge do meio da vegetação um pequeno conjunto de casebres e por vezes até uma placa indicando “rancho…”. A sierra la giganta parece anã à distância de muitos quilómetros. O sol vai em sua busca e eu alarmo-me. Não é possível chegar hoje a Loreto, tenho de acampar em breve. A vegetação, densa e espinhosa, não parece querer facilitar-me a vida. De repente surge o meu anúncio favorito empoleirado numa casa solitária à beira da estrada: “TECATE”. Ok, deve ser no mínimo um café, na melhor das hipóteses um restaurante. Paro, entro e, por trás do balcão, sentado à mesa de plástico, o Barnabe come lentamente um taco e saboreia uma tecate. Parece espantado com aminha presença e quando lhe pergunto o que há para beber, interrompe a refeição, abre o frigorifico e diz-me que só há tecate. Respondo-lhe que está muito bem e só quero uma para já.

Casa do Barnabe - "mi casa es tu casa"
Enquanto abre a cerveja, vou-lhe dizendo que estou a viajar de bicicleta, que pensava chegar a Loreto mas ainda são 30 kms e já estou fatigado, se não posso acampar por ali.
Interrompe de vez o jantar e diz-me que posso dormir em casa se quiser. Trabalha por turnos e vai sair daí a pouco. A mulher não está hoje, mas posso dormir em casa ou acampar onde quiser. Aponta para um pequeno cubículo de blocos de cimento no exterior, e diz-me que posso tomar duche. Fica combinado que vou montar a carpa lá fora e que tomo conta da casa até amanhã: “mi casa és tu casa”, diz a rematar.
Escolhi um terreiro mais ou menos plano, de fronte para a sierra la giganta, onde o sol haveria de recolher-se. Depois da tenda montada, era irresistível a ideia de um banho refrescante. Dirigi-me ao pequeno cubículo e no interior havia uma sanita, uma barrica de plástico, com 300 litros de capacidade mas escassas dezenas de litros de água no fundo escuro e dois baldes de plástico – um de 5 e outro de 20 litros. Pensei que talvez fosse água apenas para despejar na sanita e houvesse outro local para o duche…
Quando o Barnabe regressou de recolher e fechar o rebanho de cabras, disse-lhe que sempre aceitava a oferta do banho e ia tomar um duche. Ele afirmou prontamente que sim, que estivesse à vontade, e apontou de novo na mesma direcção. Ok, já não havia dúvidas… um balde de 5 litros de água tépida pela cabeça abaixo, uma longa ensaboadela e novo balde de água. Uma preciosidade em qualquer deserto, onde a água ainda é extraída da terra por um pequeno moinho de vento…

A minha casa
O Barnabe foi-se embora por entre efusivos acenos e promessas mútuas de que “nos vemos manhana”. Fui buscar uma cadeira para junto da tenda e ali fiquei horas. A sentir o sol esmorecer; a ver a sombra da sierra la giganta estender-se pelo vale de cactos; acompanhando o mergulho do sol por trás de la giganta; tacteando a penumbra da noite a cobrir todo o vale; a ver chegar a primeira estrela cintilante; a sentir o frescura do mar, não muito distante, chegar de manso; a extasiar-me com a enormidade de estrelas que iam chegando, cada vez mais brilhantes e numerosas. E quando despertei para o meu ínfimo microcosmos, percebi que não tinha vontade de jantar, que me sentia alimentado e apenas comi uma sandes por pressão da consciência.

Como o Barnabé não chegava e o sol ia subindo rapidamente no horizonte, decidi continuar a marcha sem me poder despedir. Na realidade esperava que nos cruzássemos no caminho para Loreto e poder expressar-lhe mais uma vez a minha gratidão, especialmente pela naturalidade com que me acolheu e abriu a sua casa.
A paisagem continua verdejante, embora com ar agressivo, natural da vegetação endémica. Os cactos assumem várias formas e sobrepõem-se aos arbustos mais rasteiros, mas não menos agrestes, que povoam toda a planície. A sierra la giganta espreita ameaçadora. Um grupo de abutres em estranha pose, parecem petrificados no cume dos cactos mais altos. Em escassos segundos um carro cinzento aproxima-se e, acenando, o Barnabé passa por mim. Grito-lhe e ficamos ambos a acenar até desaparecer na próxima curva. Prossigo devagar a pensar naquele homem generoso que não será mais que um ponto cada vez mais ténue na minha caixa de memórias… a pensar que gostaria de ter encontrado uma forma inolvidável de o reter, de lhe explicar a singularidade da sua generosidade…
Loreto parece ser a porta de entrada de uma região turística, centrada no Parque Nacional Bahia de Loreto, que se estende até Ligüi e à Baia Blanca…
Nopoló, com campo de golf e respectivo aldeamento, é o ex-líbris para conquistar o turista americano, em fuga do inverno agreste. Parei na beira da estrada e do arbusto que fisgara, saiu o Charlie, um mexicano sessentão. Apresentámo-nos e ele começou a dissertar sobre o significado do meu nome em espanhol. Expliquei-lhe que em português tinha o mesmo significado e ele foi discorrendo sobre a origem da palavra. Perguntei-lhe o que fazia e mostrou-me o crachá que tinha pendurado no bolso da camisa: pintor da construção civil. Surpreendi-me com a relação entre a cultura que mostrara ter e a profissão que exercia e lembrei-me de um episódio semelhante, comigo próprio…Quis saber qual o percurso que faria no México e, quando lhe disse que iria passar por Chiapas, os olhos abriram-se mais, o sorriso ampliou-se, a voz assumiu um timbre mais firme e cúmplice e disse-me que tem um projecto de caminhar três mil quilómetros, desde a terra natal até Chiapas, como homenagem ao corajoso povo de Chiapas. E deu-me o contacto do Enrique, o director de um jornal local – Diario del Sur, que seguramente gostaria muito de me conhecer e falar de mim no jornal. Prometi-lhe que o contactaria e pediu-me para lhe transmitir a sua “paz e amizade”…

Perto de Liguini

Depois de ter bebido um litro de leite bem frio, em plena digestão do almoço, não me senti muito bem e decidi pernoitar em Ligüi. Antes de procurar a praia, parei na aldeia e perguntei pelo acesso à praia e se lá poderia acampar. A dificuldade foi deixarem-me seguir para a praia, pois cada um dos três homens, sentados em redor do pequeno barco, queria que pernoitasse em sua casa…

Deixei a praia de Ligüi pouco depois de o sol se erguer acima da linha do horizonte e apontar os raios dourados ao mar tranquilo e fresco da manhã. Atravessei a aldeia ainda adormecida, ante o olhar espantado de dois ou três miúdos fardados, aguardando o início das aulas, e um aldeão empoleirado num barco – que procurava recuperar.
Apenas três kms após Ligüi, a estrada iniciou a sua cavalgada tortuosa e impiedosa, não me deixando qualquer alternativa a não ser segui-la. Os kms passavam muito devagar…especulava sobre o que viria depois da próxima curva: se uma inclinação maior, se mais suave, talvez mesmo o fim da subida. Mas cada curva abria-se num sorriso irónico, para dar origem a outra, que observava mais acima, sempre mais acima. Algumas tinham marcas de morte violenta, mas não pareciam condoer-se ou sequer lamentar. O Mar azul ia ficando para trás, para baixo, para oeste. Os próprios cactos do deserto refugiavam-se em patamares mais abrigados, mais amenos, menos expostos à adversidade. Apenas a estrada negra, de risca branca ao meio, seguia intrépida montes fora. Os gemidos dos camiões descendo devagar, ecoavam no vale cada vez mais profundo, parecendo fazer vibrar todo o vale. Várias brigadas de trabalhadores definhavam perante o sol implacável, uns construindo ou reparando as bermas, outros cortando algum arbusto que teimasse em chegar-se ao asfalto, outros ainda construindo barreiras de protecção nas encostas. Invariavelmente diziam-me adeus, alguns entusiasticamente, e eu retribuía com umas pedaladas mais fortes e constantes “buenos dias” ou “que tal”. 5, 10, 15 quilómetros ficaram para trás, e com eles muito sal. Na verdade, após o km 10 o declive suavizou bastante, mas foi largamente compensado pelo calor…

Rafael - pós-cirurgia

Mais uma curva, mais uma subida, mais uma brigada de trabalhadores e um deles, de colete fluorescente e chapéu na cabeça, sai-me ao caminho de dedo estendido e a pedir ajuda. Primeiro não percebi o que queria mas pedalava tão devagar que ele deu dois passos ao meu lado e quase me punha o dedo nos olhos. O polegar direito estava envolto em sangue e perguntava-me se não tinha medicamentos. Fiquei intimamente grato pelo pretexto e parei junto ao grupo de cinco homens. Olhei para a ferida e brinquei com ele, dizendo-lhe que não me parecia que morresse nas próximas horas… Saco da mala de primeiros socorros e, por falta de prática, esparramam-se tudo pelo chão: pensos, gaze, algodão, adesivo, água-oxigenada, tintura de iodo, até o Elmetacine que estava no mesmo compartimento…Tudo de regresso à farmácia e começo, com ar de entendido, a tratar do dedo com a ponta cortada… sempre a brincar com ele, fi-lo ranger os dentes quando lhe limpei a ferida com um cotonete e lhe apliquei tintura de iodo. Daí a pouco já discutíamos futebol, com o patrão, um tipo novo, a dizer que o Cristiano Ronaldo é gay… perante os elogios e o ar admirado do grupo, ainda lhes disse que era médico e que tinham de me pagar o serviço, mas ficámo-nos por um reabastecimento de água que fizeram questão que aceitasse.
E como a terra é redonda e para baixo é a descer, um quilómetro depois iniciei uma descida para aí de trinta quilómetros, quase até Ciudad Insurgientes, onde cheguei exausto e sob um sol abrasado(r).
Depois do mais longo almoço até à data, o último percurso, até Ciudad Constitution, decorreu sem estória nem sobressalto, pela vasta planície abundantemente cultivada, sob os fortes odores do campo.
Como ontem tive de substituir dois raios partidos, e o curso de mecânica tarda em chegar, a roda de trás está feita num oito, muito empenada. Em Ciudad Constitution descobri a Bicicentro, do Rodrigo Colosio Ruiz, um antigo ciclista. Só estava o filho de 16 anos, também aspirante a ciclista mas que não percebe mais de mecânica de bicicletas que eu. Combinámos que voltava pelas 19h30, hora a que o pai já teria chegado e faria a reparação – entretanto descobri que o pneu de trás, o mais caro que havia na loja, nos EU, com apenas 1850 kms, está a perder o rasto aos bocados…
O Rodrigo Colosio tem perfil de ciclista – pequeno, magro, seco. Quando entra na loja digo-lhe que tenho muito trabalho para ele. E a resposta dele, o sorriso no olhar e o tom de voz, ficaram-me a martelar na cabeça: Sin, que bueno! Nunca ouvi alguém manifestar tal entusiasmo e alegria perante a “ameaça” de “muito trabalho pela frente”, especialmente às 20h… afinou a roda com um sorriso nos lábios e brilhozinho nos olhos, enquanto ia desfilando as suas memórias de ciclista profissional e falava das divisões entre os ciclistas no México, não esquecendo o Xepe Garcia, meu “velho conhecido” de Ensenada, - e ainda foi a outra oficina buscar um pneu para substituir o meu…

Antes de deixar Cidad Constitution, onde não encontrei qualquer atractivo digno de menção, decidi tomar um refresco no café do parque de campismo La Mission – onde pernoitara. Mas os flocos de aveia com banana que um mexicano atarracado devorava na mesa ao lado, lançaram em guerra as minhas papilas gustativas. O pequeno-almoço completo eram de 60 pesos, e aburguesei-me com um segundo…
A próxima recta são 55 kms, até Santa Rita. A estrada é plana, o sol escaldante e o vento fraco mas favorável.
Não muito antes de Santa Rita começo a vislumbrar uns pontos esquisitos na berma da estrada, que parecem mover-se…Poucos kms depois os pontos começam a ganhar a estranha forma de ciclistas. De repente apercebo-me que devo estar a alcançar um dos dois pares que me disseram estarem à minha frente uns dias. O Urehi e a Ueli (não garanto que sejam estes os nomes…) são um casal de suíços recem reformados, que se achou demasiado jovem para ficar em casa a ver televisão e decidiram viajar de bicicleta. Estão há 18 meses na estrada, da Suíça ao Médio Oriente, Ásia, América, seguindo-se Marrocos e de novo a Europa (Espanha, Portugal, França e Suíça). Da entusiástica narrativa, destaco o carinho com que falaram do Irão e Paquistão e dos furos que tiveram até à data: 8, os dois.
O percurso é muito mais remoto do que esperava ao olhar o mapa, tanto mais que La Paz e o turístico sul da península se aproximam…
Perto de El Ciento Veintiocho surge um pequeno café e aproveito para me refrescar e descansar um pouco. O dia tem sido duro, especialmente pelo calor infatigável… Peço uma água de 1,5 litros e sento-me numa das duas mesas da escassa sala. Em poucos segundos tenho a companhia do Carlos, um dos três filhos do casal dono do café. Tem sete anos, anda no segundo ano, gosta da escola mas quer ser “baquero”. Senta-se na cadeira frente a mim e começa por me interrogar sobre a minha viagem. Quando lhe digo que vou até à Argentina, parece perceber que é muito longe, não só pelo ar de espanto mas principalmente porque me pergunta porque não vou de avião, pois há um aeroporto em La Paz de onde partem aviões para todo o mundo e também para a Argentina…

Carlos
Mi recuerdo ... que fiz 4 pontos (basquetebol) num minuto
Rapidamente o Carlos toma a condução da conversa e começa a desfiar as suas “recordações”: “me recuerdo” dos quatro pontos em menos de um minuto que marcou no jogo de basquete; “me recuerdo” – e disserta sobre o 5º, 6º e 7º “cumpleanos” e o respectivo presente que os pais lhe deram; “me recurdo” – e desfia o nome dos cães que tiveram, descreve-os em pormenor e a forma como morreram; “me recuerdo” das férias no cabo – e disserta sobre a casa onde terá passado as férias, o número de divisões, o preço, os vizinhos…; “me recuerdo” dos cavalos que o pai tem e mesmo de um burrito que gosta de montar; “me recuerdo” do tio (não fixei o nome) que faz corridas de cavalos e que tem 8 galos de luta, muito fortes e bonitos, que ganham todas as lutas; “me recuerdo” e passa para as apostas nas lutas de galos, falando de alguém que perdeu todo o dinheiro que tinha e de outrem que ficou rico nas apostas; “me recuerdo” que aquele hombre grande que saiu agora (do café), é muito rico, tem 400 000 vacas e 500 bezerros. E quando o olhei com ar duvidoso e lhe perguntei se eram mesmo 400 000, baixou os olhos negros, fez um sorriso maroto e corrigiu para 40 000. E face à minha insistência, fixou o número em 4 000, mas centrou-se nos 500 bezerros. E uma hora depois, deixei-o a contar três ou quatro moedas esqueci sobre a mesa…


Las Pocitas - Restaurante Rossy
Las Pocitas é mais uma aldeia ínfima, perdida na persistência teimosa de quem não escolhe o lugar onde nasce nem corta as raízes que o amarram à terra. O restaurante Rossy era a minha única opção. O velho Eusébio parecia ser o decano da casa e foi a ele que pedi para acampar por ali. Como esperado, foi-me mostrar o que estava à vista – o “quintal” – e disse-me para acampar onde achasse melhor.
Na verdade o “quintal” não é mais que um terreiro, de tamanho razoável, resgatado ao matagal de cactos e outros arbustos rasteiros e de ar agressivo, onde se espalham carros velhos e suas partes, cães, galinhas e porcos, estes amarrados cada um a sua árvore. Acabei por montar a tenda à ilharga dos “banos”, da capoeira e demasiado próximo de dois porcos, que passaram a noite em grande agitação.

De Las Pocitas a La Paz é suposto ser uma jornada fácil, em terreno plano e talvez mesmo com aragem pelas costas. Olhando para o mapa, não existe qualquer povoado desde Cien (quilómetro cem da estrada) até La Paz. Mas estou habituado à falibilidade do mapa e acredito que não faltarão loncherias, taquerias e cafés até La Paz. O sol vai subindo e, com ele, a temperatura. A água vai diminuindo na garrafa de 1 litro até ficar vazia. Já lá vão 40 kms e nem uma casa. Continuo a pedalar pela estrada plana, de longas rectas e escassa vegetação. Não me lembro de um troço superior a 40 kms, em toda a Baja California, sem um local onde comprar bebida e algum tipo de comida, mas os quilómetros vão passando e nada. Começo a aceitar a ideia de que o mapa desta vez tem razão e que terei de chegar a La Paz com a água que tenho. E início o jogo: de 5 em 5 kms, um gole de água e de 10 em 10, um pouco mais…é uma sensação engraçada ter sede. Primeiro são os lábios a queixarem-se, depois a língua e o céu-da-boca secam; segue-se a boca toda; e finalmente estende-se à garganta e começa a magoar – falta de lubrificante(?). Nessa altura é bom que tenham decorrido 5 kms e melhor ainda se forem 10 – apesar da água morna ser apenas sofrível... mas o mapa estava de novo errado, e cerca de 30 kms antes de La Paz havia uma loncheria com água, sumos e coca-cola, tudo bem frio…irónico foi entornar cerca de um litro de água, que tinha poupado com dificuldade.

Estrada para La Paz

La Paz é uma cidade claramente virada para o turismo, com enorme presença de americanos. A cidade parece dividida em duas: O Malecon, junto ao mar, cuidado, limpo, com bancos, sombras, árvores, ladeado de casas vistosas, pintadas e recuperadas, inevitavelmente dedicadas aos negócios do turismo; e a zona interior, com todo o reboliço, cheiros, cores, anarquia e, por vezes, charme das demais cidades.

La Paz - Parque de campismo


La Paz - Malecon
Deixei a cidade ao entardecer, em direcção às praias e ao porto de Pichilingue. Já tinha o bilhete para o Ferry do dia seguinte e queria acampar numa das praias circundantes… Nesta altura do ano, as praias estão praticamente todas desertas. A playa el tesoro não era excepção e até tinha um pequeno conjunto de arbustos num dos extremos, junto á encosta. Além disso, o restaurante está a funcionar, mesmo sendo eu o único cliente. O enorme peixe, apesar de frito, com arroz e legumes, parece derramar a frescura do mar no prato. Da cadeira levemente submergida pelas pequenas ondas que rebolam até aos meus pés, observo um casal de noivos que obedece com ar enlevado (?) às ordens do fotógrafo, repetindo poses absurdas, sorrisos estudados, beijos sem mel nem fel…

Ferry Chihuahua Express

Como o dia é de descanso, pois o ferry para Mazatlan apenas parte às 20h, decido ir conhecer as praias seguintes: Pichilingue, Tecolete, Llitas. Em Tecolete, atraiu-me o restaurante La Concha. Talvez por ser afastado da “entrada”, talvez por não ter qualquer cliente. Perguntei se podia sentar-me e tomar uma cerveja e a sexagenária que lia uma qualquer revista cor-de-rosa, disse que sim. Afinal não estava só. Surgiu o Ivan, 23 anos, olhos cinzentos luminosos, cara arredondada e com um sorriso permanente, constituição atlética e mãos amputadas.
O Ivan nasceu na Argentina, de pai argentino e mãe israelita. Viveu em Israel 7 meses, onde vivem os pais e as irmãs. Aos 15 anos começou a percorrer o mundo a pé. Turquia, Grécia, Egipto e Israel. Vários países da Europa, depois. Regressou à América do Sul, onde já calcorreou a Argentina, Chile, Paraguai, Uruguai. Ao México chegou há um ano e tal, aqui a La Paz, e a família do La Concha gostou dele, “adoptando-o”. Montou a tenda e ficou até querer. Um dia disse que queria continuar a caminhar e foi-se embora. Caminhou um ano pelo México e regressou há poucas semanas a La Concha. A tenda está ali montada – um iglo bastante grande para um caminheiro – frente ao mar. Enquanto tomo a cerveja, vai preparar um chá. Faz impressão vê-lo sem mãos a executar as tarefas normais – como prepara um chá, apertar os atilhos dos calções… Em Janeiro vai caminhar para a China e depois segue para a Austrália. Viaja sempre com voos abertos, pois nunca sabe quando quer partir...diz ter percebido aos quinze anos que a vida é demasiado curta e por isso quer viver os dias todos …a caminhar por sítios diferentes. Almoço e durmo a sesta numa espreguiçadeira, frente à ilha Jacques Cousteau. O Ivan desaparece na água durante umas duas horas – também gosta de nadar…
Entrar com uma bicicleta no Chihuahua Star deve ser como uma sardinha entrar na boca de uma baleia…amarrava a Dempster no local indicado, quando chega outro ciclista com a bicicleta pela mão. Pergunta-me se pode encostar a dele à minha e subimos os dois no elevador. O Braian é americano, de Búfalo, tem 53 anos e está há 8 meses a pedalar. Subiu ao Canadá, desceu os EU, entrou no México em Tijuana a 18 de Outubro, percorreu a Baja California, quer chegar ao Panamá e regressar a casa pela costa Este. Vinha com outro tipo americano que teve um problema de saúde e ficou em La Paz a recuperar. Ainda não sabe como serão os próximos tempos, pois não fala uma palavra de espanhol e tinha combinado viajar com o David, que se desenrascava bem com a língua.