terça-feira, 8 de março de 2011

Colômbia - de Cartagena das Índias a Bogotá

Colômbia – de Cartagena das Índias a Bogotá

A minha conversa com o Samuel, jovem francês que conheci no Hostal Musicology, em Bogotá, ilustra ao extremo o absolutamente errado preconceito que existe em relação à Colômbia…
Dizia-me ele que a família se despediu dele com o dramatismo de ser o último adeus, na certeza de que não o voltariam a ver com vida. Mas pior do que esse receio instintivo da família, foi a experiência na embaixada francesa, em Bogotá. Procurou os serviços da embaixada para se aconselhar sobre o país (segurança, zonas de interesse, sugestões e recomendações de quem está no terreno). Para surpresa dele, não o receberam – não sei se esperava uma recepção VIP do embaixador! – restando-lhe consultar o site da embaixada de França na Colômbia. Dizia-me que o mapa do país surge com duas cores: vermelho e verde. A verde as zonas seguras e visitáveis; a vermelho, as zonas perigosas, a evitar. O primeiro grupo resumia-se a Bogotá e Cartagena; o segundo, todo o resto do país!!
Em suma, o rapaz estava desorientado, sem saber o que fazer no mês e meio que conta passar por cá…
Recomendação: esquece tudo o que ouviste dizer sobre a Colômbia. Vem, vê, sente e tira as tuas próprias conclusões.

“Sin my amor”; “Sin amigo”; “que poso regalarte”; “ola my amigo”; “para servirlo, caballero”; “a la orden”; “con mucho gusto”; “acá lo esperamos”; “vuelva pronto”… Não, não são as expressões do dicionário nem a síntese do meu vocabulário espanhol.

Primeiro achei que seria linguagem artificial para seduzir o turista. Depois pensei que seria apenas em Cartagena. Mais tarde, suspeitei que seria apenas um grupo mais “letrado” ou “educado”. Finalmente fui percebendo que esta é a linguagem padrão que os colombianos usam, não apenas no tratamento aos turistas, mas no comum dia-a-dia. E mais dos que estas, e outras, encantadoras expressões, é a amabilidade, a delicadeza, a solicitude, a disponibilidade e, acima de tudo, a naturalidade com que se me dirigem. E o mais impressionante, é que este é o padrão “mínimo”, generalizado de norte a sul, do litoral ao interior, dos locais mais turísticos à mais remota e descolorida banca de beira-de-estrada…

Sobre Cartagena das Índias, pouco tenho a acrescentar às fotos do post anterior…é uma cidade encantada, encantadora e encantatória. São as cores deslumbrantes das ruas floridas, serenas, pequenas, familiares, vivas. Os jardins e praças repletos de gente – e não apenas turistas, apesar de os haver em demasia, para o meu gosto – onde se cruza o vendedor de gelados, de raspados, de sumos naturais e frutas coloridas, de arepas e outras iguarias de sabores, cores e aromas intensos. Os pátios, as portas, os postigos e as aldrabas, as varandas e varandins. São os restaurantes, os ateliers, as lojas de artesanato, de joalharia, de comes e bebes. São os jogadores de xadrez, de damas, de gamão. São os músicos e performers, que aparecem quando o sol desaparece, enchendo de ritmo, e ao som da rumba, as praças e jardins. É a história em cada esquina, na praça dos escravos ou das alfândegas, na casa do famoso pirata Francis Drake, de Simon Bolívar ou de Garcia Marques. É a colossal muralha, que demorou mais de um século a ser construída, e tantas vezes foi atacada e arruinada por franceses, holandeses e ingleses. É o enorme forte de San Filipe. É a cor e a luz e a luz e a cor, que se fundem e confundem, numa orgia de tonalidades quentes. É o mar catártico e infinito, sereno mas insondável. Esta é a espuma de Cartagena das Índias. Porque a alma e o coração da cidade, estão lá enraizados, incrustados, indivisos. E para os partilhar, são indispensáveis todos os sentidos, em total alerta e simultaneidade…
Antes de deixar a cidade, circundei mais uma vez, agora de bicicleta e com todo o equipamento, a imponente muralha. Devagar, à luz dourada do suave amanhecer. Uma última mirada, uma despedida serena, uma nostalgia antecipada.
Segui a estrada 45A, mais costeira e mais secundária que a irmã 45, em direcção a Barranquilha, à ilharga do Atlântico. E basta deixar as muralhas de Cartagena para cairmos noutro mundo. Num mundo de prédios incaracterísticos, no bulício dos carros ruidosos e impacientes e, não muito longe, nos bairros de lata e madeira, com ruas pejadas de lixo e cheiros imerecidos. Felizmente também ficam rapidamente para trás…

A canoa parece ser um utensílio vital nesta zona de aluvião…


…Tanto serve para pescar


…como meio de transporte

A estrada é completamente plana e a vegetação verdejante, ou não fora toda esta costa zona de aluvião, inundada a maior parte do ano. Talvez por isso, são raras as povoações e muito poucas as casas ao longo da estrada. Claro, de quando em vez há umas “villas” e aldeamentos turísticos junto ao mar, mas mesmo esses rareiam.
Até Barranquilha não há nada de excitante a assinalar. E em Barranquilha ainda menos! É uma cidade grande e feia. Moderna nos seus prédios de betão e trânsito intenso e apressado. O centro “histórico”, onde pernoitei, é mais um daqueles mercados enormes, com bancas de madeira ocupando passeios e parte das ruas, onde se vende de tudo. O lixo amontoa-se por todo o lado e os odores são condizentes. Ao que consta, a única atracção da cidade é o Carnaval, que dizem rivalizar, em dimensão, com o do Rio…
Depois de passar o enorme rio Magdalena, que cruza quase todo o país, de sul para norte, pude, finalmente, repousar da confusão e sordidez da cidade, e deixar-me absorver pela paisagem tranquila de Ciénaga – não da povoação, que essa dista mais de 50 kms, mas das enormes lagoas com o mesmo nome.

Serenidade rústica

Quando olhei o mapa pela primeira vez, pensei tratar-se de uma ponte com 30 ou 40 kms. Só depois reparei em pequenos contornos de terra que extravasam ligeiramente o traço vermelho da estrada, que separa o Atlântico, da lagoa de Ciénaga Grande de Santa Marta.

Na frescura da manhã, o encanto é redobrado

São muitas dezenas de quilómetros de uma serenidade imperturbável…à esquerda, a vastidão azul de céu e mar; à direita a vastidão azul e verde do céu e da vegetação densa; à esquerda e à direita, lagoas de diversas dimensões e formatos, salpicadas de branco por milhares de garças empoleiradas em troncos de arbustos petrificados. Por vezes, surge do nada uma carroça, puxada por um cavalo a trote. Aqui e ali, dois ou três homens estão sentados na berma da estrada, junto de grandes caixas de esferovite. Afinal são pescadores e as caixas estão a abarrotar de peixe. Esperam uma boleia de regresso à aldeia…


Milhares de graciosas Garças, salpicam de branco o azul da água e o verde das árvores

A mancha verde desaparece paulatinamente, dando lugar a uma estreita língua de terra ladeada de água. A actividade piscatória é completamente artesanal e as “casas” erguem-se sob estacas, acima do infinito espelho de água. O acesso faz-se por longos pontões de madeira, com aspecto frágil e arcaico, ou em canoas não menos rudimentares. O tempo parece não ter passado por aqui…

Em Pueblo Viejo, vai e vem, de carga às costas

Em Pueblo Viejo, as casas não tem apenas vista para o mar…erguem das suas entranhas

Em Puebloviejo, sinto a contradição simplicidade e da miséria…enquanto um grupo de jovens, em trajes coloridos, se exibe no meio da estrada, procurando fazer parar o trânsito e angariar fundos para a rainha do carnaval, ao lado joga-se uma partida de futebol 11, com árbitro e foras de jogo. O recinto parece um campo de batatas acabado de lavrar e as nuvens de pó quase não deixam ver a bola. Também não deve ser muito importante, pois cada vez que bate no solo, muda de direcção…E quem não joga nem assiste ao jogo, nem recolhe fundos para o carnaval, paira inerte à porta de “casa”, à ilharga de magotes de crianças que brincam nas ruas empoeiradas…

Pueblo Viejo - recolha de fundos para o carnaval

Em Pueblo Viejo, o mar é generoso

Deixo Ciénaga, e a sua frota de coloridas bicitaxis, vendedores de peixe e animação musical, com as ruas a fervilharem de gente, e rumo a Santa Marta, a primeira cidade fundada pelos espanhóis na Colômbia, e onde o Libertador expiou os derradeiros dias.

Bicitaxi, em Ciénaga

Ao contrário do percurso anterior, não tem qualquer romantismo nem singularidade. Mesmo Rodadero, pequena estância balnear local, me parece demasiado igual a qualquer outra povoação de veraneio.
Como segui a estrada costeira, por Rodadero, avisto Santa Marta do alto de uma colina. A cidade fica num vale, cercada pela baia de águas azuis e uma pequena cordilheira montanhosa. Vista de longe, não é bonita. Tem uns prédios anarquicamente espetados do meio do tecido urbano e na periferia, mesmo aos meus pés, uma extensa zona de barracas…Decidi logo ali que não pernoitaria na cidade e rumaria a Taganga, uma pequena aldeia uns kms mais a norte, à distância de uma curta, mas grossa, subida.
A caminho de Taganga passei pelo centro de Santa Marta, que me pareceu muito bonito, impecavelmente recuperado e preservado, de pequenos e antigos edifícios brancos. Mas já tinha decidido ir para Taganga e assim foi. Numa rua bem quente e muito menos atraente que o pequeno centro, parei junto a um vendedor de água, sentado à sombra de um pequeno guarda-sol. Mas na Colômbia, quando se pára, mesmo para o simples acto de comprar 3 bolsas de água fresca e atestar a garrafa, a paragem pode prolongar-se inesperadamente. A primeira coisa que o Mário, o vendedor de água, fez, foi franquear-me o banco à sombra para eu repousar e me refrescar um pouco. E enquanto esticava as pernas e respirava, o Mário, ao sol e de pé, já se vê, contava-me a vida dele: que é pintor, mas como o dinheiro que faz com as obras que pinta não chega para sustentar a família, vende água pela cidade; tem dois filhos pequenos (já não recordo as idades), muito inteligentes e que adoram conhecer e viajar; vive numa casa de renda, muito pequena mas muito bonita; tem 41 anos, a mulher é muito bonita e os filhos são como ela (claro!)… e como eu ia para Taganga, ofereceu-me uma água para a subida, “que bem vai precisar”. Sempre a sorrir, sempre com uma amabilidade e simpatias tocantes. Apertámos as mãos e desejou-me boa sorte para todo o “recorrido”, como se fossemos estimados amigos de infância…

Taganga, aldeia escondida do mundo

Afinal a subida não é nada de especial…inclinada, é certo, por uma estrada muito estreita e péssimo piso, mas pouco mais de um quilómetro. E quando termina a subida, logo se precipita numa descida com um miradouro sobre Taganga, a baia e a montanha. O miradouro debruça-se sobre a acentuada baia, em forma de ferradura, de águas serenas e intensamente azuis, em forte contraste com a aridez da montanha envolvente.

Em Taganga, os barcos de pesca artesanal ocupam todo o areal

O topo da baia é circundado por meia-lua de areia, poiso de inúmeras pequenas embarcações coloridas e a povoação estende-se pelo exíguo espaço entre o mar e a inóspita montanha, que lhe dá um ar de refúgio e a isola do mundo.
Taganga é estranha, pois apesar da enormidade de turistas mochileiros, parece manter uma genuinidade de aldeia piscatória, com os miúdos a jogarem à bola na praia, os pescadores a chegarem nos pequenos barcos e venderem a pescaria no areal, famílias a passearem, namorados derretidos pelo poderoso sol poente.


Em Taganga as crianças bricam até ser noite


…e sol poente dá mais colorido às cores

Despedi-me cedo do mar – que não sei se é Atlântico se Caribe – e, pela primeira vez nesta viagem, voltei para trás, pela mesma estrada, até Ciénaga. Gostaria de ter prosseguido ao longo da costa caribenha, quase até à fronteira com a Venezuela, e descer pelo Valledupar, do outro lado da Serra Nevada de Santa Marta, que me dizem ser lindíssimo, mas tenho um compromisso com um companheiro de Viana do Castelo, que chegará a Quito dentro de uma semana e com quem conto pedalar uma temporada…e não o quero fazer esperar muitas semanas!
Há dois eixos viários que cruzam a Colômbia de norte a sul: um mais a Oeste, centrado na estrada 25, de Barranquilha, passando por Medellin e Cali, até à fronteira de Ipiales, com o Equador; e outro mais a Este, por vezes nas proximidades da fronteira com a Venezuela, ao longo da estrada 45, de Santa Marta a Bogotá, continuando um pouco mais para sul, mas sem continuidade para o Equador. Esta via percorre a vasta planície situada entre a cordilheira central e a oriental e a paisagem é enormemente diversificada (por certo a outra também o será, mas foi esta que escolhi, por me levar directamente a Bogotá).

Na Estrada 45, o meu mapa da Colômbia ajuda-me a fazer amigos

A estrada 45 tem duas faixas de rodagem, uma em cada sentida, bermas grandes, quase sempre com bom piso, e uma quantidade de tráfico pesado, por vezes, infernal. Sendo Santa Marta uma cidade portuária e Bogotá a maior cidade do país, com mais de oito milhões de habitantes, o fluxo de mercadorias entre estes dois pontos é brutal e praticamente todas circulam por via rodoviária. Apesar disso, nunca me senti inseguro ou ameaçado pelo trânsito, e os momentos de maior suspense foram criados pelos condutores de autocarros em ultrapassagens estupidamente arriscadas. Paradoxalmente, e já noutros países vivi o mesmo, são os motoristas de autocarros, que transportam dezenas de vidas, os mais perigosos na estrada…

Na estrada 45, perto de Rio Frio, os bananais vão alem do infinito

Depois de Ciénaga, a imponente Sierra Nevada de Santa Marta contrasta com a infinita planície verdejante, dominada pela monocultura de bananais. Durante muitos quilómetros, parece só existirem três elementos no universo: o céu azul, a montanha escarpada, nos seus 5775 metros de altitude, e as palmeiras verdes da planície.

Na estrada 45, perto de Rio Frio, há homens esquecidos

A vastidão reinante é raramente interrompida pela ténue presença humana, com vendedores ambulantes à beira da estrada e muito pequenos povoados, o mais das vezes orientados para o negócio com os camionistas, principalmente pequenos restaurantes, “hotéis”, “talleres”, “montallantas” e “lavaderos”.
Os bananais dão lugar à ganadaria, por vezes intercalada com palmeirais (para a produção de óleo de palma) e coqueirais. Mas a actividade dominante é mesmo a pastorícia, com grandes manadas de vacas pastando na planície, que se perde no sopé da enorme cordilheira oriental. Tudo numa escala enorme, quilómetros e quilómetros, muito para além do que a vista abarca e a imaginação alcança. A diversidade das culturas é acompanhada pelo exuberante colorido das árvores, em tons de amarelo, verde, branco, violeta. Os bucólicos entardeceres começam a ser temperados por impiedosos aguaceiros, deixando no ar um rasto magnético de luz e o cheiro denso da terra húmida, no fim de um dia de intenso calor.

Estrada 45, Aracataca. A chuva dá mais brilho ao colorido da natureza

Estrada 45, Santa Rosa Lima, entre a planície e a montanha

As povoações vão ficando para trás. Umas na memória, outras no paladar e outras ainda, no coração. Pelas pernoitas em modestíssimos alojamentos, mas invariavelmente carregados de simpatia, como em Lommas de Bálsamo, San Roque ou La Esperanza. Pelos incríveis pequenos-almoços, com sumos naturais deliciosos, servidos num jarro de litro!! Sempre pela amabilidade e afecto que senti ao longo da estrada…

Estrada 45, San Roque. À espera de Ghodot…



Estrada 45, de San Roque a Curumaní

Em San Alberto, a estrada 45 bifurca. Pela direita, segue a 45, mais directa a Bogotá e sobremaneira mais fácil, já que evita o Canyon de Chicamocha (ou Pescadero, como também é conhecido), e pela esquerda a 45A. Como “em caso de dúvida, vou pela esquerda”, esta vez não foi excepção, até porque dúvidas não tinha – queria visitar San Gil, Barichara, talvez Tunja, e Villa Leyva, povoados coloniais que não iria perder.

Estrada 45, em San Alberto o gestos são tão doces quanto os gelados


…e os carros, das cores do arco-íris e de antes do tempo

Estava um calor abrasado(r) e, ao inflectir para a esquerda, um vendedor de gelados, daqueles que transformam a bicicleta em triciclo e instalam um pequena caixa térmica à frente, chama-me. Na verdade ainda pensei ignorá-lo, fingir que não o ouvi, pois certamente queria bombardear-me com perguntas sobre a viagem e, com este calor, não me apetecia. Mas lá virei a cabeça e ele acenou-me para lá ir (ainda por cima tinha de ser eu a deslocar-me, pensei). Depois de me apertar a mão, abriu a caixa dos gelados e estendeu-me um dulcíssimo gelado de manga, de fabrico caseiro, já se vê, envolto numa película de plástico transparente e com o pauzinho artesanal. Ainda lhe perguntei se podia pagar-lho, mas respondeu-me com um sorriso feliz, que nem pensar, era “regalo” para me refrescar de tanto calor. E lá foi e eu lá fui, por caminhos que não mais se cruzarão, apenas na memória simples destas palavras singelas.

Estrada 45, Curumaní

Já lá iam três dias e quase 400 quilómetros percorridos ao longo da estrada 45, sempre rolando em planície, umas vezes com a cordilheira oriental a aproximar-se da estrada, trazendo maior imponência e diversidade à paisagem, outras vezes afastando-se e levando consigo a linha de horizonte para o infinito. Mas o mapa não deixava dúvidas e estava para breve o ataque à montanha. Seria entre Aguachica e Bucaramanga, a capital de Santander.



Estrada 45, de Aguachica a San Alberto

Como queria chegar a Bucaramanga no dia seguinte, decidi avançar o mais possível hoje, entrando alguns quilómetros na montanha. Pouco depois de San Alberto a estrada começa a subir, mas moderadamente. No máximo, poderia alcançar La Esperanza, dificilmente Primavera, uma larga dúzia de quilómetros, com elevado desnível, depois.


Estrada 45, perto de La Esperanza (perdida)

O conta-quilómetros apenas indicava 83, o sol ia alto e sentia-me bem, mas decidi parar junto ao hotel Oasis, em La Esperanza, para sondar o local. Estavam dois rapazes perto da porta e perguntaram-me o que queria. Lá disse que estava na dúvida entre pernoitar ali ou em Primavera e logo um me disse que em Primavera não havia alojamento. Algo duvidoso, perguntei-lhe se era mesmo verdade e ele respondeu com ar meio surpreendido meio ofendido, que não havia qualquer hotel ou alojamento em Primavera. Aproximei-me da porta do “hotel” Oasis, e apareceu à porta uma miudita aparentando uns doze anos, seguida de duas ligeiramente mais velhas. Toda expedita, pergunta-me o que queria e lá fui dizendo que pretendo um local para dormir. Eu demorava propositadamente a conversa, a resposta e a encostar a bicicleta, à espera de um adulto com quem falar, mas a miúda dirige-se-me carregada de energia e pergunta-me se quero mesmo um quarto. Repito que sim e pergunto-lhe se é com ela que trato do assunto. Responde-me com toda a naturalidade que sim, para a acompanhar. Mostra-me o quarto – minúsculo, sombrio e com uma pequena janela para o corredor escuro. Questionei-a se não havia mais nenhum, e disse-me que havia outro mas estava reservado… Confirmei que ficava e já ela arrastava uma ventoinha para o quarto e mandava as outras miúdas irem buscar papel higiénico, toalha e sabonete, para aprontarem o quarto…
O maior prazer do fim do dia era mesmo um banho, quente ou frio, tanto fazia, e repousar um quarto de hora. Mal regressava do banho e acabava de me vestir, bateram-me à porta, chamando-me pelo nome. “Um momentito”, respondi. Esperavam-me à porta uns doces olhos castanhos, uma cara infantil com um enorme sorriso. Pedia-me para ir com ela, e acompanhei-a pensando que me quisesse mostra algo na aldeia. Mas conduziu-me à porta ao lado, onde três miúdos se sentavam em redor de uma mesa. Estenderam-me de imediato umas fotocópias em inglês e pediram-me com a maior das naturalidades se os ajudava a fazer o trabalho de casa de Inglês! Fiquei um bocado atrapalhado, pois o meu inglês continua mau e o espanhol pouco melhor, mas lá fui buscar o portátil, que ajuda com os sinónimos, e sentámo-nos os cinco a fazer os trabalhos de casa.

Estrada 45, La Esperanza, trabalhos de casa (antes da professora aparecer)

A coisa avançava devagar, mas avançava, com a participação deles. Daí a pouco perguntam-me se gostava de coca-cola. Percebi que queriam agraciar-me com a bebida e disse que gostava mas não queria nada. Perceberam logo que eu estava a “fazer cerimónia”, e disseram que iam comprar para todos, era só para saberem se eu também gostava. Quotizaram-se e daí a pouco apareceu a garrafa de coca-cola com 5 copos. Propus um brinde e os rostos deles iluminaram-se de alegria. A meio do animado trabalho, aparece uma senhora à porta, fez uma qualquer pergunta e foi-se embora. Não prestei atenção, pois pesquisava sinónimos e as melhores correspondências em espanhol, mas às tantas percebi que estavam completamente desconcentrados e alheados do trabalho, contrariamente ao que acontecia antes. Armei-me em professor e perguntei se não queriam acabar o trabalho. Então um dos miúdos pergunta-me se sabia quem era aquela senhora que tinha ali aparecido. Respondi que não fazia ideia e ele diz, com um ar muito sério que era a professora de inglês!! Consegui conter uma gargalhada… Fizemos uma pausa e tentei tranquilizá-los, dizendo que tinham de explicar à professora que eu apenas ajudara, que eles tinham participado activamente, demonstrando-lhes que dominavam o tema. Lá se acalmaram e terminámos o trabalho, não sem que antes outra miúda da aldeia trouxesse a notícia de que a professora ia anular aquele trabalho e fazer outro…
Ante os mil agradecimentos, cumprimentos e sorrisos cúmplices, pediram-me os contactos e dei-lhe e-mail, endereço do facebook e telefone de Portugal…
Jantei no restaurante em frente, fui comprar fruta à mercearia da esquina, passear no pequeno parque e ver um bocado de futebol no ringue anexo ao parque. E em todos os lugares as pessoas me tratavam com simpatia e deferência – acho que já toda a aldeia sabia do português da bicicleta que estava alojado no Oasis e tinha ajudado a fazer os trabalhos de casa aos miúdos…

Estrada 45, La Esperanza, o meu auditório preferido

Regressei à pressa ao quarto, fugindo de uma trovoada “daquelas”. Tinha-me sentado na cama e ligado o computador para escrever um bocado, e batiam-me à porta de novo. Desta vez era a Senaida, a administradora do hotel, como gostava de se designar. Sentados no chão e no pequeno sofá do estreito átrio/corredor, esperavam-me nove pessoas da aldeia que “queriam muito conhecer-me e falar comigo”. Fui bombardeado com as mais diversas perguntas, sobre a viagem, a vida pessoal, família, emprego, tipo de mulher preferida, etc., sem faltar uma proposta de casamento, com a promessa da noiva me ensinar a cuidar do milho e todos os labores locais. E, em coro e repetidamente, pediam-me para ficar uma semana ou pelo menos mais um dia na aldeia, que me iam preparar a melhor comida que eu já tinha comido, mostrar a vida da aldeia e do campo, etc.. Houve um momento em que a Senaida disse que só eles é que faziam perguntas, para eu fazer também. Só fiz uma e ficou sem resposta, pois mal terminei, caiu-me em cima mais uma avalanche de perguntas. A Paola, a miúda que me tinha ido “buscar” ao quarto para os trabalhos de inglês, só me fazia perguntas sobre universidades, em Portugal e nos Estados Unidos… iria estudar para Nova York, afirmou com segurança e naturalidade.
A noite já ia longa, especialmente para as quatro miúdas que tinham de se levantar às 6h30 para irem à escola, quando me pediram os contactos. Nem precisei de abrir a boca, pois a Paula, já tinha memorizado tudo, inclusivamente o telefone de Portugal, e dizia. E quando se despediu, pediu-me, com ar sério, para não mudar de telefone, pois quando fosse a Portugal queria visitar-me e precisava do contacto…
A Juledi e a Maira, as duas filhas da Saneida, pediam-me insistentemente se não tinha algo que lhes “regalar”. Uma coisa material, alguma coisa que se pudesse tocar. Ora eu sou viajante, e de bicicleta, viajando com o mínimo possível…lembrei-me, então de duas tartarugas que comprei no México: uma de peluche, que viajava comigo na bicicleta; e outra de madeira, muito colorida, que era para oferecer, mas em Portugal. Fui buscar as tartarugas e foi inesquecível a reacção das miúdas…
Mas ainda tinham de me bater à porta uma terceira vez…eram elas. “`Vinham regalar-me” um pequeno urso cor-de-rosa e uma rã. Não, na verdade vinham “regalar-me” um momento dos mais sublimes e inesquecíveis que posso imaginar…
Perdi o conto às pessoas que me acenavam, à medida que ia deixando as casas da aldeia para trás e enfrentava a dura subida…

Estrada 45, de La Esperanza a Primavera a paisagem cresce

Quando cheguei a Primavera, recordei mais uma vez o dia de ontem e regozijei com a decisão tomada. Principalmente pela experiência, única, que vivi e que, estou seguro, perdurará por muito tempo em mim, mas também porque o percurso intermédio era de grande dureza, pouco recomendável para um fim de dia – para além de confirmar a inexistência de qualquer alojamento, como o miúdo tinha afirmado.

Estrada 45, de La Esperanza a Primavera - segundo pequeno almoço

Esperava uma jornada difícil até Bucaramanga, mas não tão dura. Contava com umas três subidas fortes, mas perdi o conto às vezes que encharquei e sequei a camisola. A grande vantagem, é a diversidade visual, não só porque a paisagem na montanha é muito diferente do vale, mas porque a própria visão é completamente diferente. Recordo uma zona em que se sucediam o que parecia ser enormes “piscinas” de águas verdejantes, numa paisagem igualmente verdejante e sumptuosa. Percebi depois que são tanques de criação piscícola …

Estrada 45, de Primavera a Bucaramanga, aquicultura


Estrada 45, de Primavera a Bucaramanga, festival de frutas e sumos naturais



Estrada 45, Rio Negro (perto)

Talvez uma dúzia de quilómetros antes de Bucaramanga, no topo do que julgava ser a última subida do dia, quase fui abalroado por dois jovens de motorizada. Afinal queriam apenas conversar comigo e tirar (muitas) fotografias. Ambos licenciados (ou bacharéis, pouco importa), amigos de longa data, vinham juntos do trabalho, partilhando a motorizada. O Andrez é o mais expansivo e baixote. Parecia um miúdo, tal a excitação…Às tantas, quis que lhe tirasse uma foto montado na bicicleta e quase me mandava tudo ao chão, pois não chegava sequer com os pés aos pedais. Como vi que não desistia, lá lhe baixei o selim e tive de fotografá-lo de todos os ângulos… Combinámos encontrar-nos em Bucaramanga para tomarmos “uma cervejita” como dizia na sua voz fina. Trocámos números de telefone, não fôssemos desencontrar-nos, e lá prosseguimos, cada um ao seu ritmo.
Bucaramanga, vista de norte, fica no topo de um morro altíssimo. Ainda mais alto, porque a estrada desce acentuadamente antes de iniciar a cavalgada para a cidade. Não estava de todo nos meus planos aquela derradeira subida. Já não sentia energia nem ânimo, mas não tinha escolha. Comecei a subir devagar e começo a ver miúdos em sentido contrário, descendo vertiginosamente em pequenas bicicletas. Pouco de pois, vejo-os subir agarrados à carroçaria de camiões. Naquele momento, se tivesse essa possibilidade, teria feito o mesmo. Mas passavam por mim “demasiado” depressa e se tentasse agarrar-me a um, com aquele diferencial de velocidade, era queda certa. Tive que cerrar os dentes, fixar o olhar dois metros à frente da roda e concentrar-me em tudo menos na fadiga que sentia. Em rigor, este tinha sido o primeiro dia de “montanha” na Colômbia, talvez a introdução aos Andes. Sabia que os próximos dias, semanas, meses, seriam assim e muito mais duros, mas foi principalmente o factor surpresa, da subida para a Cidade, que me desgastou.
E como combinado, mal larguei a tralha numa residencial, já o Andrez e o Frederico estavam à minha espera para uma cervejita, que se multiplicou por várias…
A carrera” 15 tem duas faixas em cada sentido, mas para utilização exclusiva do “metrolina”, o metro de superfície. Em vários recantos, e no pequeno passeio central, que separa os dois sentidos de trânsito, dormem algumas dezenas de jovens em chocante estado de degradação física. Diz-me o Mário, um pachorrento colombiano que passeia numa pequena Honda, que são viciados em drogas, mas que não roubam nem fazem mal; pedem e as pessoas têm pena deles, dando-lhes “limosna”.
Cruzando a cidade pela tranquila “carrera” 15, estava longe de imaginar a intensidade de tráfego àquela hora da manhã de sábado, especialmente para entrar na cidade, com duas filas compactas. Em contraste com o fim do dia de ontem, a estrada não pára de descer e deixo rapidamente Bucaramanga para trás. Sem saudades, nem uma única imagem atraente…
Um táxi amarelo está parado na berma da estrada e o taxista, jovem, tem a mão de fora, descaída e como que a sinalizar para abrandar, mas o movimento era tão ténue, que mais parecia estar distraído. Passei irritado, por me obrigar a entrar na faixa de rodagem de tráfego intenso, mas nem cem metros adiante e o taxista está a circular ao meu lado. Era um rapaz novo e perguntava-me para onde ia. Claro que havia carros a apitar atrás dele. O diálogo assim era difícil e pediu-me para parar adiante. Segui-o devagar e quando encontrou um espaço suficiente no passeio, parou e eu secundei-o. Afinal tinha-me visto ontem na estrada e hoje, por coincidência, voltou a cruzar-se comigo e não resistiu à curiosidade. Depois de me desejar boa sorte na viagem, regressou ao pequeno táxi e prosseguiu. Não muitos quilómetros adiante, parei num quiosque para comprar água e quando ia arrancar, lá estava ele de novo a acenar-me e dizer adeus…
Ficam rapidamente para trás os últimos vestígios da cidade feia, e a estrada regressa à frondosa vegetação tropical. Sucedem-se os restaurantes, cabanas, parques, ou discretos “paros” turísticos, que mencionam, invariavelmente, na lista de atractivos, piscinas naturais.
Após Los Curos a estrada inicia uma descida mais ou menos vertiginosa, com curvas fechadas, muitas delas de 180º. A paisagem muda brusca a radicalmente. Pala primeira vez desde Cartagena, os prados coloridos de pastagens viçosas, os montes verdejantes, as árvores frondosas, desapareceram da linha de horizonte, dando lugar a uma majestosa cordilheira rochosa, árida, de vegetação rasteira, castanha da cor da sede. No vale cavado e sinuoso, corre o rio Chicamocha, que dá nome com o Canyon, e os arbustos verdes que o ladeiam, realçam a aridez do lugar. As suas águas são avermelhadas, pejadas de sedimentos da cor da terra por onde corre. Até Pescadero a estrada não pára de se afundar. São quinze quilómetros de constante descida, contornando muros verticais cavados na rocha escarpada, num labirinto que parece não ter fim, muito menos saída.


Estrada 45, Canyon Chicamocha, também conhecido por Pescadero

O pequeno povoado de Pescadero fica encravado entre as duas paredes do desfiladeiro e é com surpresa que vejo os habituais vendedores ambulantes oferecendo fruta, doces, bebidas. Compro um quilo de siruelas (curiosamente aqui siruelas são ameixas e não o fruto doce e delicado, com o mesmo nome, que comi no México) e prossigo. Poucos metros depois surge a ponte sobre o Chicamocha, dando início a uma subida interminável.
A sinalização da estrada indica o km 53…



Estrada 45, Canyon Chicamocha. Entre montes e camiões, sentia-me o rei do asfalto

O rio corre cada vez mais distante, mais fundo. A estrada sobe paulatinamente, cavada na encosta íngreme. De quando em vez, nalguma curva mais favorável, avista-se a ferida da estrada na montanha, lá longe, a perder de vista… O sol cai a pique sobre o Canyon, abafando tudo, num silêncio só quebrado pelo constante bramido dos camiões que se arrastam numa lentidão sofrida, qualquer que seja o sentido da viagem. Apenas três kms percorridos, surge uma pequena tienda na berma. Tem um pequeno telheiro coberto de colmo e aproveito-o para fugir do sol. Um dos vários polícias presentes, diz-me que a subida termina ao km 46 (7 kms apenas, portanto), o que é animador.

Estrada 45, Canyon Chicamocha. Vira o disco…

A subida é relativamente suave e, não fora o sol impiedoso, até se poderia considerar fácil. À medida que avanço, vai-se definindo bastante ao longe, na encosta à direita, o que parece ser uma linha de teleférico. Que estranho… mas é mesmo. Os “ovos”, muito ralos, vão subindo e descendo lentamente. Devem ser kms de cabo e de percurso, pois o vale é enorme e o declive também.
Agora vai-se abrindo a encosta à esquerda. Estico bem o pescoço para poder ver o que parece ser o topo, com os camiões a passarem constantemente a curva que os leva para o outro lado da montanha, desaparecendo do campo de visão. Actualizo os cálculos e concluo que é impossível estar correcta a informação que me deram mais abaixo. Já lá vão seis kms e o percurso visível é muito superior a 1 km… A estrada muda de direcção, “virando” costas ao rio e partindo encosta fora. O declive aumenta, a temperatura também e o trânsito de camiões é infindável.

Estrada 45, Canyon Chicamocha, do outro lado da montanha…

Chego à curva que conduz ao topo visível da escalada e tenho duas surpresas: a paisagem a ocidente é ainda mais brutal que a oriente, com o leito do rio a perder de vista na profundeza do vale, de encostas totalmente áridas, secas e esculpidas em estranhos montículos sem vida; a estrada, depois dos 180º da curva/miradouro, continua a perder de vista e a subir. Foi um rude golpe na moral, esta descoberta…
Felizmente o declive abrandou e retomei o ritmo lento. Pouco depois fiz nova “paragem técnica”, desta vez só para me refrescar com umas bebidas frias. O percurso tinha tanto de belo quanto de assassino…rolava entre 6 e 7 kms/hora, num esforço contido, pois avistavam-se vários kms de subida ao longo da falda da serrania. Finalmente avistei o parque de Chicamocha. Finalmente, porque há vários kms, e certamente uma a duas horas antes, na outra vertente da montanha, o teleférico parecia estar poucas centenas de metros à minha frente e o parque, olhando para cima, estava bem à vista e, aparentemente, muito perto em linha recta. Aproveitei a vista fabulosa que o miradouro proporciona, para respirar e retomar ânimo. Entretanto dois tipos aproximam-se para a conversa recorrente. Aproveitei para perguntar quantos kms faltavam até ao topo da subida e, apesar de não estarem de acordo entre eles, lá consensualizaram em redor dos 5. Eu já não dava qualquer crédito às previsões, era mais para me distrair…
De regresso à estrada, comecei a consciencializar-me que não chegaria a San Gil. Seria um esforço excessivo…alem do mais, não fazia ideia como seria o relevo nem sequer quantos kms distava, pois já tinha percebido que a distância do mapa estava errada. A melhor alternativa a San Gil deveria ser Aratoca, uns 15 kms depois do parque Chicamocha.

Estrada 45, Canyon Chicamocha. O topo é sempre mais acima…

Apenas por volta do km 33 da estrada 45A, cerca de vinte kms depois do início, a estrada suavizou. Nem os sete kms mencionados pelo polícia, pouco depois de iniciar a subida, nem os 10 kms que um trabalhador da estrada me referiu em Pescadero, nem as distâncias intermédias que me foram referindo ao longo da subida…o que mais se aproximou deve ter sido um velhote em los Curos, que disse ser uma hora em autocarro… Na verdade não tenho por hábito perguntar sobre a estrada que me espera, mas esta subida era demasiado badalada e eram as pessoas com quem falava que adiantavam cenários terríveis sobre a dita.
Para variar, Aratoca fica no fim de uma descida acentuada, embora curta. Passei a povoação ainda com a expectativa de chegar a San Gil, mas logo após o entroncamento para a aldeia, a estrada empinou mais uma vez e ao fim de uns 200 metros voltei para trás.

Estrada 45, Aratoca - Cabanas de ...

…quarto colorido

Definitivamente ficaria em Aratoca. A uma centena de metros da estrada há umas cabanas lindíssimas, num espaço verde irresistível, geridas por uma mulher jovem e cuja beleza nada fica a dever à do local, para além de uma simpatia extrema e um sorriso luminoso. Pensei que seria um balúrdio, mas afinal custava apenas 20 mil pesos (8€). E a aldeia, que ficava a menos de um km, também respira calma, tranquilidade, com centenas de pessoas de todas as idades pela rua, nas soleiras das portas, nas mercarias ou sentadas nos bancos de jardim do enorme largo fronteiro à igreja. Mais uma vez invejei a vida pacata, tranquila, e ao ar livre, desta gente.

Estrada 45, Igreja de Aratoca

Depois de duas escassas subidas, a estrada desliza suavemente por vales verdejantes e silenciosos até San Gil. Uma curva da estrada escancara portas e janelas, mostrando uma grande mancha vermelha no meio de um vale verdejante. São os telhados de telha de canudo encarnada, mas também as paredes de muitas das casas, em tijolo igualmente vermelho. É mais o efeito surpresa e o contraste de cores, que a beleza absoluta do povoado, na verdade pouco atraente, pelo menos à distância.

Estrada 45, San Gil visto de fora

San Gil parece uma montanha russa, com algumas ruas de tal forma inclinadas que até a pé são difíceis de percorrer...A praça central e os edifícios circundantes são cativantes, bonitos e bem preservados, mas à medida que nos afastamos, a cidade não tem qualquer encanto. Bem, não é bem assim…o parque el Gallineral é de uma beleza serena e luxuriante – idílica mesmo. Carreiros discretos serpenteiam pelo denso e diverso arvoredo, conduzindo-nos até às margens do rio Fonce, passando por pequenas pontes suspensas, por recantos de exuberantes flores, terminando numa enorme piscina de água natural, rodeada de árvores majestosas que lhe emprestam sombras refrescantes. O chilrear estridente de aves coloridas, mistura-se com o canto infindável de cigarras e grilos, amenizado pelo murmúrio das águas, deslizando por pequenos riachos até se juntarem ao caudaloso e barrento Fonce. Parece inacreditável que este espaço encantado receba a presença de tão poucos curiosos, para gáudio meu…

Estrada 45, San Gil - parque El Gallineral (barbas de viejo)




Estrada 45, San Gil - parque El Gallineral

San Gil intitula-se a capital do turismo de Santander. As actividades de outdoor são o forte, com o rafting em destaque. O rio Fonce proporciona rafting de nível 4 e 5 – o máximo da escala. Mas existem diversas outras actividades, desde o slide, rapel, BTT, “torrentismo”, pára-quedismo, etc.. Atraía-me a possibilidade do rafting, mas era um dia inteiro e não muito barato, pelo que optei por ir visitar a aldeia de Barichara – uma povoação colonial, fundada pelos espanhóis em 1705.
Em boa hora tomei a decisão, pois a aldeia é mais uma pérola irreal neste país surpreendentemente belo e de enorme diversidade. Não só está impecavelmente limpo e completamente preservado, como, contrariamente a muitas outras aldeias ou cidades coloniais, é de uma tranquilidade e genuinidade absoluta, amplamente habitada, praticamente só por colombianos e sem a presença descaracterizante, quando excessiva, de turistas. À beleza absoluta do povoado, junta-se uma localização esmagadora, com uma vista majestosa para a Cordillera los Cobardes e o Parque Nacional Natural Serrania de los Yaviguies…

“Pequena” amostra de fotos de Barichara…












Fim das fotos de Barichara…

Ao deixar San Gil, ainda não tinha decidido se o próximo destino seria Tunja ou se optaria por um atalho que me levaria directamente para Villa Leyva. Gostava de ir a todo o lado, visitar cada canto, cada recanto, deixar-me surpreender por outras Baricharas e, melhor ainda, ficar por lá até me sentir saciado. Mas mesmo uma viagem de…muitos meses, tem limites e tenho de ir fazendo opções…além do mais, a cada dia que passa sinto que voltarei à Colômbia. Mais do que o México, a Colômbia é para repetir.

Estrada 45, a caminho de Arabuco

Depois de ter transposto mais um dos já habituais cerros, mergulhei num vale lindíssimo, daqueles com paredes escarpadas erguidas ao céu azul, onde nos sentimos infinitamente grandes e infinitamente pequenos. Só eu e uns pares de vacas, em equilíbrio periclitante, tal o declive onde pastavam…Quando o vale começou a abrir, deparei-me com um reboque parado na berma da estrada. O condutor esfregava as mãos negras de óleo a um trapo da mesma cor. Mandou-me parar e fui obediente. Falámos da minha viagem e da Colômbia. Entre outras opiniões, sugeriu-me que visitasse a catedral do sal, em Zipaquirá, e que entrasse em Bogotá pela autopista, que tem bermas grandes. Como parecia conhecer bem a zona, perguntei-lhe como era o desvio em Arcabuco para Villa Leyva, pois no meu mapa a estrada surgia a branco, não dando para perceber se era asfaltada ou em terra. Recomendou-se que não fosse por aquela estrada, mas por Tunja. Perguntei porquê, pois eram umas dezenas de quilómetros mais, se a estrada estava em más condições. Senti alguma hesitação e desconforto na resposta, mas lá me disse que não era pela estrada, mas sim pela zona e pelas pessoas que a habitavam. Era uma zona perigosa, insegura e não ma recomendava. Agradeci e lá prossegui para Arabuco. E em Arabuco, nem hesitei, virei à direita e fiz orelhas mocas à recomendação anterior. Tinha dificuldade em perceber como é que de repente poderia haver um “microcosmos” em que as pessoas, sempre tão amáveis, tão delicadas, tão simpáticas, se transformavam em perigosas.

A caminho de Villa Leyva

Se a estrada anterior já era solitária, este pequeno desvio para Villa Leyva era o pasmo absoluto. Uma zona quase despovoada, completamente rural, escondia entre duas cordilheiras enormes, onde a cultura de batatas quase ombreava com a pastorícia. Ainda por cima, a estreita estrada de asfalto era quase sempre a descer. À medida que fui penetrando no vale e vendo os raros habitantes, especialmente miúdos regressados da escola, percebi o receio e sugestão do camionista. A população é praticamente toda indígena…também aqui, um afável, prestável e amistoso colombiano, não resistia ao preconceito.
À entrada de Villa Leyva há um complexo turístico que me pareceu paradisíaco e que anunciava zona para camping. De repente a vontade de acampar superou a de dormir bem no coração da vila colonial, que imaginava cheia de charme e alma. Parei e a senhora da recepção disse-me que eram 60 000 pesos para acampar (24€! – o máximo que já tinha pago para dormir na Colômbia, foram 20 000 pesos…). Fui-me embora incrédulo…
Villa Leyva é mais uma aldeia colonial, de casas antigas imaculadamente brancas, com varandas, grades, portas e janelas de madeira, ruas empedradas, tudo impecavelmente limpo. Mas o que distingue Villa Leyva, por exemplo de Barichara, é a enorme praça central. Um espaço magnifico, circundado de casas baixas, como, aliás, todas as outras. Apesar da extraordinária beleza serena, não me “agarrou” como Barichara…talvez fosse apenas um estado de alma, ou talvez já estivesse com a fasquia muito elevada, ou talvez tenha a ver com as pessoas e a vida da aldeia. Aqui, apesar de aldeia, tem mais espírito de “cidade”, com pessoas mais apressadas, muitas lojas e comércio, bastante turismo… não tem a alma aldeã, ou pelo menos não lha descobri – excepto ao jantar, numa tasca familiar, fora do centro histórico, onde comi um magnífico jantar por 5000 pesos…

Algumas fotos de Villa Leyva





Fim das fotos de Villa Leyva



Próximo de Villa Leyva…momentos que (pre)enchem

A caminho de Bogotá, e antes de entrar na enorme zona urbana da capital, ainda comi as melhores arepas do mundo, em Sutamarchán, passei de raspão na desinteressante Cuiquinquirá, e cruzei Ubaté, a “capital lechera da Colômbia”, onde todos vivem da teta da vaca…que são aos milhares, nas verdejantes planícies.



Chiquinquirá


Aldeia de Tausa

…Ah, e visitei a catedral do sal, em Zipaquirá. A catedral não impressiona. A mina, sim, nos seus labirínticos e intermináveis túneis enormes…



Zipaquirá - Catedral de Sal

12 comentários:

  1. Já tinha grande curiosidade em relação à Colombia.

    Conseguiste incrementá-la fortemente.

    JMorgado

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  2. Obrigado.As cores e o passeio.Lindo.
    Um abraço.
    Durães

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  3. Idílio, por coincidência saiu há dias o livro da Ingrid Betancourt. Envio-te o link: http://www.publico.pt/Mundo/entrevista-a-ingrid-betancourt--escrevi-este-livro-ora-a-chorar-ora-a-rir_1483075 . Há, sem dúvida, várias Colômbias, e tu tiveste a sabedoria de encontrar a mais bela. Beijos

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  4. Caro Idílio, pelos vistos a Colômbia tem mais do que café, "pó branco" e ... Shakira! A pedalar assim na alta montanha ainda te arriscas a vencer a camisola verde da volta a Portugal. Não abuses do dopping, pois ainda podes acusar positivo nalgum controlo... Como agora te cansas mais, também podes aproveitar para escrever e fotografar mais nos períodos de descanso. Nós, os teus leitores neste rectângulo deprimido, agradecemos! Ah! O benfica voltou às vitórias... Abraço, Palhares

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  5. pois, deixei-me atrasar no ritmo idiota dos dias todos iguais :-(... a ideia deste comentário era agradecer o descritivo do Panamá e as sensações que me tinhas feito recordar do país do "tal canal", mas já vem abolutalmente fora de tempo... Também vinha dizer que a profusão de fotografias e a ausência do texto eram um bom teaser para o livro que aí vem, mas este post lá me estragou a teoria ;-), não há condições!... Mas, apesar do atraso, este é mais um post que merece leitura lenta, perdi-me de inveja (no bom sentido!) só com as fotografias... *s, cuida-te! e vê se não repetes a graça das "orelhas moucas"... é o que dá criares um blog! ficas a dever isso a ti e a quem te segue de longe...

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  6. Hoje, por sorte, ouvi em directo a tua intervenção na rádio. Só a ler o blog já te começava a imaginar um "monstro sagrado" :) Foi excelente ouvir o Idilio. Grande abraço e Boas pedaladas!

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  7. Já tinha ouvido relatos de viajantes que deitavam por terra todos os mitos relacionados com a Colômbia. Depois deste post, convenceste-me: tenho quase mais vontade de visitar este país que regressar ao México. Comovente relato em La Esperanza, ainda te enraízas num qualquer canto perdido dessa tua viagem...um daqueles lugares paradísiacos que só se descobrem se soubermos fazer orelhas moucas :-)
    Força para essas montanhas. Só conheço um pouco do que é lutar com o pico Veleta...e imagino o pesadelo que devem ser essas tuas subidas.

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  8. Caro, mais uma vez obrigado pelas excelentes e detalhadas descrições. Faz parecer que estamos lá consigo.

    Seria excelente no final da sua viagem disponibilizar informação sobre trajetos, custos em cada país, custos de manutenção etc...

    Boa viagem e cá estarei para ler as suas crónicas.

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  9. O título do teu post podia intitular-se "a demolição dos preconceitos". Espero que continues a derrubar muitos mais na tua jornada. Grande abraço e força para as "contagens de montanha" que se avizinham,
    Luís M.

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  10. Caro Idilio,
    para alem de te acompanhar através do blog, sou tambem teu ouvinte na rádio, entre as 6,30 e as 7 horas de Portugal, uma vez por semana.
    Quero agradecer os excelentes momentos de grande prazer que usufruo por qualquer uma destas formas de contacto.desejo-te força para alcançares os objectivos. Obrigado e continua.Espanha da Silva

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  11. Fantástico relato, Idílio! Muito obrigado!
    Deixo no entanto uma sugestão: dividir estes posts extensos em fracções mais pequenas - facilita a leitura e é mais fácil de acompanhar =)

    Coragem e boas pedaladas!

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