sexta-feira, 8 de abril de 2011

Equador - I

Equador - De Tulcán a Mendez, na "fronteira" amazónica

Após a agitada manifestação do lado colombiano, a entrada no Equador foi tão pacífica e banal como comer uma sandes e beber uma cerveja em qualquer café. Havia um casal à minha frente e outro depois de mim, ninguém mais.
Não fazia ideia que a moeda em curso no Equador era o dólar. Como tinha umas sobras do Panamá, não tive de entrar no jogo do câmbio de moeda e avancei rapidamente para Tulcán, a primeira cidade deste lado da fronteira.
À entrada da cidade abateu-se uma monumental carga de água, mas como a barriga estava a dar horas e havia um tasco mesmo numa esquina, aproveitei para fugir à chuva e repor as energias. Pior foi a ementa, pois parece que era quarta-feira de cinzas e não serviam carne – nem peixe! A única opção era arroz com ovo estrelado e … uma salsicha – que não é carne nem peixe, já se vê!!
O almoço e a trovoada terminaram em simultâneo e lancei-me, apressado, a caminho de San Gabriel. Na verdade sentia demasiado justo o tempo para o percurso, tanto mais que a saída de Tulcán prolonga-se por uma longa, e nada fácil, subida. Mas se o mapa e as informações que me deram estiverem correctas, vencida a encosta, será sempre a descer até San Gabriel.
No topo da colina, acabada de transpor, abre-se um ondulante vale verdejante, que se estende por encostas suaves até desaparecer nos cumes agrestes das montanhas longínquas. Pequenas parcelas geométricas de terra negra, são profusamente cultivadas, essencialmente com batata, curiosamente em distintas fases do ciclo produtivo, dando uma enorme diversidade de tons, cores e texturas à paisagem.
Ao longo da descida para San Gabriel, tive poucos olhares para apreciar a paisagem, fosse pela descida constante e acentuada, a exigir concentração, pela chuva miúda toldando a visibilidade e pela pressa de chegar antes do anoitecer.

San Gabriel – monumento ao ciclismo

Deixei San Gabriel com a luz fria da manhã mal nascida, pois queria garantir que chegava a Otavalo, onde o Luís Hilário me espera há uns dias. À saída do povoado, um estranho monumento metálico homenageia o ciclismo e os ciclistas, que parecem ter tradição no local. Na realidade, ontem surpreendi-me com a quantidade de ciclistas jovens, crianças mesmo, que pedalavam em sentido oposto ao meu, subindo com afinco a longa montanha, em direcção a Tulcán. Muitos iam acompanhados de bicicleta, ou mesmo de mota, por adultos, que presumo seriam treinadores…

Antes de iniciar a descida para El Juncal

A estrada continua com o mesmo perfil do fim do dia anterior, com longas e suaves descidas, contornando planaltos e encostas verdejantes, que se perdem nas nuvens esbranquiçadas. Mas nas imediações de El Juncal, a faixa negra do asfalto precipita-se num mergulho vertiginoso de curvas e contracurvas, só se detendo no fundo do vale, junto ao pequeno rio que atravessa El Juncal.

Em El Juncal a paisagem muda drasticamente. A aridez substitui a sumptuosidade verdejante

A paisagem muda brusca e drasticamente, com o vale a afunilar de encontro a ravinas áridas, de vegetação rasteira e descolorida. Curiosamente, os próprios habitantes são negros e muitas casas de adobe. Uns quilómetros adiante surge el Chota, com coloridos placards anunciando o carnaval e “reafirmando nuestra identidade coangue”. Os “bonecos” que ilustram o placard são igualmente negros, dissipando qualquer dúvida sobre as raízes africanas desta pequena comunidade.


A caminho de Ibarra, a estrada serpenteia por sendas, montes e vales, com o regresso da cana-de-açúcar e vales verdejantes

Ibarra surge no fim de um ziguezaguear, montanha arriba, sob o sol tórrido do meio-dia. Mas transposta a cidade, Otavalo fica à distância de um sprint de 25 quilómetros.
Encontrar o hotel El Rincon de Belén foi fácil, pois a vila é pequena. Deveriam ser umas 4 horas da tarde e o Luís repousava na penumbra do pequeno quarto.
Conheci o Luís Hilário em 2000, na Travessia a Portugal em BTT, organizada pela Ciclonatur – um passeio fantástico com partida de Rio de Onor, no coração do Parque Natural de Montezinho, junto à fronteira com Espanha, percorrendo todo o interior de Portugal, pelos caminhos mais remotos, os povoados mais esquecidos, as gentes mais humildes, as paisagens mais selvagens que se podem ainda encontrar num Portugal desconhecido e esquecido, até desaguar em Sagres, numa tarde soalheira de Junho. Para mim, o Hilário era aquele miúdo (de 26 anos) que, no fim de uma subida de Barca-d’Alva para Castelo Rodrigo, se senta num tufo de erva fresca, saca da mini escova de dentes e respectiva pasta, e põe-se a escovar os dentes, a meio da tarde, no pico do sol de Junho, na passagem de um vinhedo para as encostas de centeio e oliveiras…
Uns anos depois, “cruzámo-nos” na “estrela da estrela”, em nova aventura ciclística de um dia, num desafio impar – Covilhã-Torre-Manteigas-Torre-Seia-Torre-Covilha.
Apesar de já lá ir uma década, o tempo parece não ter passado por este rapaz de 36 anos, esguio, franzino, magro – o perfil típico do homem das bicicletas.
Na verdade, na Travessia o Luís andava sempre (ou quase) com os “Javalis” – o grupo rápido – e eu só por uma vez tive a veleidade de os acompanhar. O ritmo deles não se compadecia com o meu gosto pelas fotografias, pela paisagem, pela brincadeira, pela “preguiça”…
Foi por mera coincidência que eu e o Luís nos cruzámos na “linha do Equador”. Eu planeei a minha viagem sem saber dele e com ele aconteceu o mesmo. Mas um amigo comum, também com raízes na Travessia, fez a “ponte” e, já eu pedalava há umas boas semanas, quando recebi uma mensagem do Luís dando conta do seu projecto – de Quito a San Carlos de Bariloche, na Argentina. Apesar dele ser “javali” e eu mais tartaruga, claro que teria a sua piada fazer as coincidências acontecerem e pedalar uma temporada em conjunto. Inicialmente pareceu-me impossível os “nossos tempos” cruzarem-se: ele iria comprar a passagem para aterrar em Quito a 20 de Fevereiro e eu, ainda a pedalar nus EUA, não fazia ideia de quando chegaria a “mitad del Mundo”. Enfim, fomos mantendo o contacto, enquanto eu deslizava para sul, e no Panamá percebi que talvez fosse mesmo possível: duas ou três semanas de atraso pareciam possíveis de acomodar pelo Luís.
Pedalei um pouco mais rápido do que queria na Colômbia e nos últimos dias no Panamá; o Luís deu uma “volta de adaptação” pelo Equador, subindo até Otavalo e, no dia 10 de Março, foi com alegria que nos abraçamos no Rincon de Belén.

Festejos do dia da mãe, em Otavalo

Otavalo e a zona circundante, é conhecida turisticamente pelo artesanato, acolhendo uma das maiores – se não a maior – feira do género da América Latina. O colorido dos tecidos, colares, pulseiras, instrumentos musicais, quadros, chapéus e toda a diversidade de vestuário que apinha o mercado e as ruas envolventes, mistura-se com as cores e adores dos frutos, vegetais, legumes e tudo o mais de que se enche a pequena vila. Homens, mulheres e crianças vestem trajes típicos, vistosos e coloridos, de bordados garridos e colares dourados, com o inseparável chapéu andino na cabeça. Claro que não conheço os detalhes das indumentárias, mas sei que apresentam características distintas para diferentes “etnias”, estado civil e até estrato social…


Cores de Otavalo

Depois de um dia de repouso, para me recompor do esforço dos últimos tempos na Colômbia, deixámos Otavalo por uma estrada “aventureira” – rumávamos a San António e ao monumento simbólico da “Mitad del Mundo”, mas por um percurso secundário. Foi o primeiro dia a pedalar com o Luís e se as paisagens não desiludiram – como nunca desiludem neste país de vulcões, vales e montanhas verdejantes, que prendem o olhar e paralisam a respiração – o percurso teve fases de dureza extrema.

De Otavalo a Mitad del Mundo, por caminhos um pouco mais agrestes…

Pela “calçada romana”, de fazer ranger o dente


Pelo lamaçal, atolado até ao eixo (felizmente o pescoço está muito mais acima)


Bons dias e chegue-se para lá…

Recordo uma “calçada romana”, entre San José de Minas e Perucho, onde a humidade, o declive e as pedras lisas da “estrada”, faziam as rodas patinar e a tracção reduzir-se. Desde o vulcão Atitlan, na Guatemala, que não me recordo de ter empurrado a Dempster à mão, encosta acima, mas teve de ser... Depois seguiu-se uma descida em terra e lama, até Perucho. Nessa altura, confesso ter pensado que a nossa “sociedade” não iria prolongar-se muito tempo, pois eu gosto de caminhos duros, gosto de subir, gosto de transpirar e olhar o mundo – especialmente a natureza – de cima, mas não estou aqui a fazer BTT…estou a fazer cicloturismo, com 50 kgs na bagagem!
Parámos em Perucho para comer algo e o Luís esqueceu-se da mochila no café. Felizmente a saída da povoação é a subir e, escassas centenas de metros adiante, o jovem empregado do café alcançou-nos, ofegante, com a mochila nos braços…
Subindo, rolando e descendo, por terra e asfalto, circundando montes, colinas e vales, chegámos a Puéllaro, mais uma insignificante aldeia perdida na paisagem montanhosa. Lanchávamos do que havia e dissemos que pretendíamos ir para San António de Pichincha – Mitad del Mundo. Então, o casal de idosos, donos da tienda, indicaram-nos o caminho a seguir: descer ao rio, pela estrada de terra, e subir a montanha em frente, onde se observavam, à distância, sucessivos Ss, a perder de vista. Acho que nos deram também uma estimativa do tempo necessário até Mitad del Mundo, mas já tive oportunidade de testar o erro das estimativas de quem nunca montou uma bicicleta, muito menos com largas dezenas de quilos na bagagem e, normalmente, é superior ao próprio valor estimado…

Como o elevador estava avariado, a única solução era mesmo subir pela “escada”…

Certo é que depois de entrar na estrada de terra, mergulhar para o rio sem nome e passar a ponte encravada no fundo do vale estreito, inicia-se uma subida interminável, em constante zig-zag, onde quase não passam carros, carretas, ou qualquer outro veículo. Pedala-se, pedala-se, vai-se vendo o rio desaparecendo nas profundezas do vale, já se vê de cima, na encosta da outra margem, a estrada por onde descemos; nessa mesma encosta sobe, paulatinamente, a estrada de asfalto que se dirige a Quito, mas deste lado, à nossa frente, a linha do horizonte está cortada por uma impressionante cordilheira. Não se percebe por que lado vai a estrada esgueirar-se: se sairá pela direita, num declive talvez mais suave mas numa extensão medonha; se virará à esquerda, de encontro à montanha, que parece intransponível. A luz é cada vez mais ténue, o sol há muito que perdeu a força para lutar com as nuvens e levar a melhor. Arrefece muito com a altitude e o fim do dia. Pedalo em “piloto automático” e o Luís vem um bocado atrás. Finalmente vislumbro uns telhados metálicos e um cume que me parece ser a porta para o “além”. Não me engano, visto o corta-vento e espero o Luís, que não tarda.
San António de Pichincha surge no fim da descida, ao lusco-fusco, ao fim de uma etapa tão longa, quanto dura, quanto diversa, quanto intensa.

Este mundo está mesmo torto…

Mitad del mundo é um pequeno complexo turístico. Para além do monumento, erguido, ao que parece, uns duzentos ou trezentos metros a sul da verdadeira linha do equador, há um pequeno museu e vários estabelecimentos de atracção turística. O corredor que nos conduz ao monumento, é ladeado pelos bustos dos homens que integraram a missão francesa, liderada por Charles-Marie de la Condamine, que, em 1736, estabeleceu a localização da linha equatorial. Terá falhado meros trezentos metros…Na “real” linha do equador, há umas “avarias”, sendo a mais vistosa – embora não a tenha “testado” – consiste em deitar água num “funil” e vê-la escoar-se rodando em sentidos opostos, consoante o lado da linha em que se está (hemisfério norte, ou hemisfério sul).


Quito – La Merced


Quito –Igreja de San Francisco

Quito impressionou-me essencialmente pelo centro histórico – classificado pela UNESCO – pela proliferação de igrejas e edifícios religiosos, impecavelmente restaurados e preservados; pela brutal ostentação e sumptuosidade dos seus interiores, com mármores e talha dourada inigualáveis; pelas praças e largos, amplos, limpos e enquadrados por edifícios baixos e antigos; pela animação e vida que transborda pelas ruas, becos e praças; pelo branco que tinge todo o centro da cidade. Em suma, pela viagem ao passado, que se respira, que se vê e se sente.

Quito – teatro ao ar livre em tarde de domingo

Mas Quito também surpreende pelos espaços verdes, pelas ciclovias, pelas avenidas que fecham ao Domingo, em prol e benefícios dos passeantes, dos ciclistas, dos atletas e de todas as pessoas, famílias inteiras, que enchem os jardins e ruas, em lento convívio, fazendo pic-nics, assistindo a pequenos espectáculos ao ar livre, numa vivacidade alegre, colorida, multi-geracional e social…





Quito, pacato e antigo

Preparava-me para deixar o hotel Andino, quando surge na recepção um homem grisalho, de barba, baixote e atarracado, com cara sorridente e bem disposto. Cumprimentou os (poucos) presentes e estendeu-me também a mão, num cumprimento cordial. Como viu as bicicletas recheadas e preparadas para partir, perguntou de onde era. Quando lhe respondi que era português, o sorrido abriu-se ainda mais, o olhar iluminou-se e acrescentou com grande satisfação: “eu falo português”! E continuou, com um sotaque carregado, mas em português correcto, contando que tinha um “filho adoptivo” português, que vive em Portugal, em Santa Maria da feira, e não teve outro remédio senão aprender português. É um homem de negócios, com escolas espalhadas por vários países, incluindo o Equador, é doutorado na área do Turismo e é um dos consultores do governo brasileiro para os jogos olímpicos de 2016. Rapidamente a conversa derivou para a política e para a economia e pôs-me a par das últimas notícias sobre uma greve enorme em Portugal, com 300 000 manifestantes em Lisboa e 100 000 no Porto; sobre o rating da Grécia, que baixou para B- (próximo da falência); os mortos do Japão. Tive de o interromper e dizer-lhe que estou de férias e não quero saber de nada do que se passa no mundo…mas não consegui evitar que me desse o seu ponto de vista sobre a crise financeira internacional. A culpa foi do Clinton (“de quem os europeus tanto gostam”, ironizava), depois o Bush tentou tratar a crise com uma aspirina e agora o Oibama (sim, Oibama, e não Obama), mais uma vez, “de quem os europeus tanto gostam”, quis tratar a crise com um saco inteiro de aspirinas e está a matar os doentes…”mas são só mais três anos e depois exportamo-lo para a Europa com uma condição: nunca mais voltar”, rematou.
Claro que já só queria ver-me livre deste fala-barato de ar simpático, mas conservador e reaccionário…
Iríamos deixar Quito em direcção a oriente, à Amazónia, seguindo talvez a rota mais remota e isolada do Equador. Deixaríamos a cordilheira andina temporariamente, esperando regressar em Cuenca, depois de passar acima dos 4000 metros, descer talvez aos 500 e voltar aos 3000… Era um carrossel que conhecíamos grosseiramente, apenas dos mapas, mas a vontade de “cheirarmos” a Amazónia e os Shuar, testar a mecânica (do corpo e das bicicletas) e sentir como reagia o corpo, e a cabeça, à altitude mais a sério (eu já passei os 3800 na Colômbia, mas o Luís ainda não andou lá perto), fazia disparar a adrenalina…

Deixar Quito, foi uma aventura com adrenalina à flor da pele…

Na avenida 6 de Dezembro, há um acesso bem sinalizado para Cumbayá. Por sinal, o acesso está cortado ao trânsito por uma mota da polícia e uma cancela de ferro, mas como há espaço para uma bicicleta passar, decidimos seguir a rota idealizada, pela estrada 28. Poucas centenas de metros adiante há um túnel e ambas as faixas têm trânsito em sentido contrário ao nosso. Enquanto hesitamos sobre que fazer, acenam-nos do outro lado da estrada, chamando-nos. Lá conseguimos esquivar-nos ao trânsito compacto e atravessar as duas faixas de rodagem. O segurança da empresa que explora aquele troço de estrada, indicou-nos uma estrada estreita que passa por cima do túnel, junto à encosta, e que parece ser transitável em bicla. Lá fomos, mas poucas centenas de metros adiante a estrada desembocava num carreiro de terra, bordejando entre a encosta à esquerda e um precipício à direita. Mas pior que o piso, o desnível e a vegetação fechada, foi quando chegou ao fim. O carreiro terminava numa escada de ferro com uma vintena de metros, muito inclinada, estreita, toda retorcida e com os degraus de madeira a desfazerem-se. Que raio de maneira de começar o dia…Tive de desmontar o atrelado e descer com a Dempster às costas, num estafante exercício de equilibrismo e contorcionismo. O Luís seguiu-me as peugadas, com a tralha às prestações…

…por single trecks e escadas

Até Cumbayá, a estrada desce vertiginosamente e Quito fica rapidamente para trás. Na realidade, os primeiros vinte quilómetros são praticamente a descer, baixando dos 2850 metros a cerca de 2200…
Mas se o provérbio diz que quanto mais alto se sobe maior é o trambolhão, aqui a coisa funciona mais ou menos ao contrário: quanto mais baixo se desce, maior terá de ser o coração, porque os 4065 metros do alto de la virgem – Reina del Paramo –, não cedem nem um centímetro.
Após Pifo, a última povoação digna desse nome, a estrada não mais deixará de trepar pelas encostas verdejantes da serrania. Umas vezes contorna suavemente os montes, em curvas e contracurvas abertas, outras vezes parece aborrecer-se e empina-se em declives de fazerem parar as rodas, disparar a pulsação e escorrer o suor em bica, outras, ainda, perfura a rocha, desenhando agressivas escarpas.


De Pifo ao alto de la virgen, pedalamos entre o céu e a terra, deslizando pelas encostas suaves de cores fortes e electricidade no ar…

As encostas íngremes, ora surgem retalhadas em profusos rectângulos cultivados, ora se apresentam agressivas, inóspitas, selvagens e inacessíveis, invariavelmente numa paleta ilimitada de tonalidades de verde.

Enquanto a chuva não se abate sob as cabeças, cantoneiros com quem partilho as bananas, cuidam da estrada…


Com a subida tudo muda, principalmente a paisagem, que se torna mais agressiva e indomável

Á medida que o dia avança, que a estrada se aproxima dos picos montanhosos, que as montanhas se perdem nas nuvens, cada vez mais densas e escuras, a temperatura baixa e o frio ambiente choca desagradavelmente com o calor do corpo, em esforço. Já não percebo se tenho frio se calor, se pedalo para aquecer, por hábito ou porque tem de ser. Mais uma vez, não se vislumbra por onde raio há-de a estrada sair deste labirinto de montanhas. O sulco na encosta, em frente, sobre o lado esquerdo, seria demasiado violento para ser a saída. Pelas indicações do mapa, devem faltar apenas uns cinco quilómetros para o topo. Mas cinco quilómetros podem significar mais uma hora. A estrada é mais sinuosa que nunca e entra nuvens adentro. A visibilidade é quase nula, as arestas dos cumes desapareceram no meio da bruma cor de leite, o esforço já não dá para manter o corpo quente, mas sinto que o cume não pode estar longe. Pode esconder-se mas não pode fugir. Começa a cair granizo. Primeiro são pérolas pequenas e ralas, depois intensificam-se e magoam. Umas placas de sinalização surgem à frente do nariz, no meio das nuvens, do granizo e da fadiga. Um pequeno edifício oval, em pedra, emerge na berma da estrada. É a meta e o meu refúgio. É a capela da virgem, que se esconde, sorridente, por trás do gradeamento de ferro, de olhos postos nos abundantes e inodoros ramos de flores. A bicicleta cabe à justa debaixo do pequeno átrio florido, e ali nos resguardamos, perante o sorriso indiferente da virgem, à espera que o Luís chegue.

Depois da última provação – uma granizada gelada – fiz as pazes com a natureza. Mas sejamos precisos, não são 4000 metros! são 4065, palavra de mapa e GPS!

O Luís é muito rápido a descer. Eu, enregelado, sinto o corpo tenso, carregado de adrenalina e sigo-o à distância, vendo-o desaparecer em cada curva e aparecer na recta seguinte. Em poucos minutos descemos os dez quilómetros até Papallacta. Quase não dá para olhar a paisagem, os cumes recortados contra o céu sombrio. Aqui e ali emerge um raio de luz, incendiando de amarelo um cerro distante. No vale profundo, surgem agora nuvens de vapor. Uma placa indica “termales Jamanco”. Deve ser o pequeno complexo termal de que nos falaram em Quito.

Início da descida para Pappalacta

As instalações são novas, o quarto espaçoso e confortável, não servem refeições, mas tudo isso é irrelevante, pois lá fora há um conjunto de piscinas com águas de várias cores e temperaturas à escolha. E então aquele duche inicial, em que a água quente cai com força sobre o corpo, numa massagem capaz de fazer erguer um cadáver.

Com o sol radioso da manhã a incendiar o vale, era impossível resistir ao pequeno-almoço no único “restaurante” de estrada

À luz fresca da manhã, o estreito vale por onde ribomba o rio Papallacta, adquire um brilho diáfano; as cordilheiras que delimitam a reserva Cayambe-Coca, a norte, e Antisana, a sul, erguem-se aos céus num traçado sinuoso e agressivo, criando um universo que exclui outros universos. A faixa negra da estrada, contorce-se em constantes curvas e contracurvas, desaparecendo no declive acentuado de cada colina, para despontar fugazmente largos metros mais abaixo.


A estrada desaparece entre o céu azul, as nuvens esfarrapadas, o verde denso e fresco da floresta, ao som do murmúrio do rio…


Papallacta aparece encravada na cordilheira. É um povoado pequeno, de edifícios incaracterísticos. Apesar de – ou por – se localizar num local tão isolado e luxuriante, tem uma grande ETAR, a primeira que vi em toda a América Latina.
A vegetação das encostas é mais viçosa, verdejante e profusa que nunca, ou não estivéssemos numa zona de floresta tropical húmida. As árvores não parecem de grande porte, mas atropelam-se umas às outras, em busca de espaço para abrirem os braços e estenderem as suas cabeleiras folhosas ao sol, que escasseia. A diversidade das tonalidades de verde, põe-nos a cabeça à roda.


Até as lamas parecem deslumbradas com a força da natureza

A descida é tão rápida e a estrada tão sinuosa, que se torna arriscado espraiar a vista e procurar sorver toda aquela torrente de pureza, de frescura, de cor, de perfume…apenas uma estreita faixa de terra, no centro do vale, é explorada por micro-agricultores, e somente dedicada ao pastoreio. É, por isso, rara a presença humana, o que amplia o prazer dos momentos e o sentimento de exclusividade, de pertença… é como se, momentaneamente, todo aquele universo fosse exclusivamente meu. E por isso canto, assobio, grito e escuto o silêncio, seguro de não importunar nem ser importunado.
Baesa é um pequeno parêntesis no bucolismo da paisagem e uma pausa nos 44 quilómetros de descida. Sim, 44, a somar aos 11 do fim do dia de ontem, perfaz 55 quilómetros de descida contínua. Por cá, e não é de hoje, as subidas e descidas medem-se em dezenas de quilómetros e milhares de metros de desnível. Recordando o alto de la Virgem, antes de Papallacta, ao fim do dia de ontem, os seus 4065 metros de altitude são um pouco mais de duas serras da estrela, com marco geodésico, claro!!
O dia terminou na pequena e feia povoação de Archidona, ao fim de nova descida de mais de trinta quilómetros, a cerca de 600 metros de altitude, no meio de um dilúvio de água que gorou o plano de ir pernoitar em Tena.


No sítio mais recôndito e escabroso, surgem caras que parecem familiars – é a globalização estúpido, não há como escapar-lhe, mesmo nos confins do mundo

Contrariando as indicações dos mapas, a estrada 45 é impecável, com piso asfaltado de fresco, bermas razoáveis e muito pouco tráfego. Para trás ficou a alta montanha, a cordilheira andina e os vulcões, dando lugar à planície amazónica. Claro que, de quando em vez, surgem umas colinas de respeito, mas normalmente são curtas e não fazem mossa em corpos e espíritos à espera do pior.

Travagem de emergência, antes que me fure alguma roda…

Território Shuar, as povoações são diminutas, raramente têm um “comedor” e as escassas “tiendas” oferecem muito pouco – umas bolachas e batatas fritas, refrigerantes, água e nada mais. A população é quase exclusivamente indígena – Shuar – fala um dialecto próprio (achuar) e vive, sem excepção, em casas de madeira de aspecto miserável. Regra geral são muito reservados, pouco comunicativos, a roçar o hostil. Grande parte das crianças e jovens, nos seus uniformes claros e escuros, parecem frequentar as escolas. Mas ao longo da estrada vêm-se inúmeras crianças com ar desleixado, desprotegido, descalças ou de galochas, arrastando-se em brincadeiras, ou ajudando os mais velhos, junto às casas enlameadas.

Miúdos Shuar – na “fronteira” da Amazónia

A chuva é quase permanente e quando não está a chover, as nuvens espessas e a neblina opaca flutuam de encontro à densa floresta tropical, toldando o horizonte. Os rios correm aos tropeços, rugindo nos leitos demasiados exíguos para a torrente de água barrenta que jorra das encostas, das bermas da estrada, dos aquedutos, e cai com estrondo na corrente. A humidade densa deposita-se no corpo quente, formando uma pasta de suor, que escorre copiosamente por todo o corpo, encharcando t-shirt e calções. Quando a chuva é forte e se torna necessário vestir o equipamento à prova de água, bastam escassos minutos para ficar completamente ensopado em suor…ainda não decidi se prefiro encharcar-me com a chuva, se com o suor…

Os rios caudalosos, soltam rugidos surdos que ecoam nos vales abafados

Tena, Puyo, Macas e Méndez, são as povoações de maior dimensão ao longo desta linha divisória, porta de entrada na amazónia. São pequenas, pacatas e de pessoas amáveis. Mas não lhes encontrei qualquer encanto digno de registo…um parque verde, um jardim tropical, um rio selvagem à ilharga, mas nada que rivalize com a natureza circundante, essa sim, luxuriante e surpreendente.

Um pouco de cor...

11 comentários:

  1. ando a tentar ligar-te desde 5ª à noite, já não estás no Perú? tudo correu bem com o PSV, o Manuel Coelho da Namíbia quer as tuas fotos no círculo Ártico e na ponte de San Francisco (mas esta na linha do Equador é fabulosa)

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  2. Estes relatos deveriam ser antecedidos de um sério aviso "As imagens, e prosa, que se seguem podem matar... de inveja."
    Que tudo continue a rolar...

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  3. sinto que saí de um carrocel alucinante que me deixou tonto de altitude...Depois de tanta curva, subidas e descidas infindáveis, por vezes até alombando com o meio de transporte às costas, debaixo de chuva, lama e suor, fiquei exausto. E nem provei o "conjunto de piscinas com águas de várias cores e temperaturas à escolha" para poder descontrair - onde está esta foto? :)
    Quito apetece mesmo e concordo com o Zé, a tua foto da linha do equador está bem conseguida para futuras utilizações. Prazer em conhecer o Luís e parabéns aos dois pelo passe de 4065m que não deve ser brincadeira nenhuma.

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  4. Caro Idílio, envergar a camisola do gloriosa "en la mitad del mundo" constitui, sem dúvida, uma metáfora interessante! Contudo, os últimos dias têm sido bastante aziagos desde que o emblema dessa ilustre camisola "perdeu a Luz"... O "azul" e os tons escuros tomaram conta de Portugal. Se calhar fazes bem não querer saber notícias do mundo. Por isso pedala, pedala e escreve mais: faz-nos chegar novas paisagens, novos cheiros, novos sítios e latitudes... de futuro. Já agora, se vires por aí os abutres do FMI não lhes digas que és português! Ainda te impõem um plano de austeridade. Um grande abraço, Palhares

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  5. Mais uma excelente crónica a terminar a primeira "metade" da viagem.

    Equador

    Que a segunda metade nos enriqueça como a primeira

    JMorgado

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  6. sr.Idilio,mais uma vez obrigado pela excelente viagem que nos propociona.è td muito verdadeiro,muito genuino e muito intenso.Melhor só se fosse uma crónica diária.Boa coragem.HSFernandes

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  7. Amiguinho,

    vejo que continuas a divertir-te em grande, mesmo com todas as subidas e descidas e as dificuldades que se te apresentam...que bom!!!
    Delicio-me a ler as tuas crónicas, apesar de andar um pouco atrasada na leitura. Mas, hoje consegui ter tempo para ti, depois de ter actualizado os menus do Rei, as contas do Rei, e finalmente o inventário...
    Ando numa "roda viva" pois no proximo dia 21 de Abril faremos 3 meses de casa e iniciaremos nesse dia o Menu de Primavera.
    É verdade que a minha vida mudou radicalmente, mas Amiguinho para que fiques descansado...estou feliz disso podes ter a certeza!!!

    Ah, e não te esqueças a tua refeição de boas vindas será no Rei, disso não te escapas.
    Beijos

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  8. Caro amigo, pela descrição parece que decidiram tornar a viagem (ainda) mais radical com umas pitadas de BTT. Espero que continues a viagem com a mesma determinação. Nós por cá continuamos com sol e calor, é o que nos vai valendo para não desanimar. Um grande abraço,
    Luís M.

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  9. Meu caro IF. Nem o Jacques Anquetil conseguia apanhar-te tal é a energia que transmites nas tuas descrições de espaços e pessoas que vais encontrando por terras de Bolivar e da Grã-Colômbia. Nós cá pelas terras de Viriato vamos lutando contra os Hunos e agora contra os cantores da Kalevala que nos querem expulsar do Euro! Até quando. Escrevo-te por outro problema. Como não estás cá ainda não me fizeram a avaliação do comportamento de 2010....!!!
    Força companheiro e vai enriquecendo a nossa cultura. Um abraço. Zé Mouronho

    p.s. se o FMI perguntar pelo responsável das contas nacionais até 2010, o que digo?

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  10. Entraste no meu terreno favorito!
    Para o ano fazemos juntos a américa do sul!
    Um abraço e responde ao meu email.

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  11. Efectivamente, está a ser difícil acompanhar o teu ritmo!... crónica magnífica da Colômbia! Espero que o Ministério de Turismo deles esteja de olho em ti, valeste por não sei quantas campanhas de marketing!!! Cansei-me literalmente com a crónica do Equador, não pelo aborrecimento da narrativa, mas pela adrenalina na mesma ;-)... tem uma Páscoa especial! e documentada...*

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