quarta-feira, 13 de abril de 2011

Equador II - De Mendez a La Balsa (fronteira do Peru)

Equador - de Mendez a la Balsa, na fronteira peruana

Em Méndez a rota volta a inverter-se. Devemos ter atingido o ponto mais baixo e deixaremos a plana bacia amazónica para rumar às montanhas, à cordilheira andina, tendo como destino Cuenca. Tínhamos pensado seguir ainda umas dezenas de quilómetros para sul, pela estrada 45, até Plan de Milagro, 11 quilómetros a sul de Limón, e iniciar aí a ascensão aos andes, mas em Méndez convenceram-nos a não o fazer, especialmente devido ao mau estado da estrada – de terra, pedra e muito degradada com as chuvas, isto para alem de passar de novo acima dos 4000 metros…
Deixámos Méndez manhãzinha, depois de um bom pequeno-almoço – sabíamos que iríamos precisar de muita energia. Os primeiros 5 quilómetros foram suaves, mas foram os únicos do dia. O Luís, quando olhávamos o mapa no dia anterior, dizia com voz satisfeita: porreiro, a estrada segue sempre junto ao rio Paute. Ainda lhe disse que assim era, mas para a nascente… infelizmente as cores do mapa, indicando a altimetria, não deixavam grandes dúvidas.

À saída de Mendez, deixando o rio Paute cada vez mais afundado no vale

O rio Paute corria de facto à ilharga, sempre à nossa direita, cada vez mais distante e diminuto. As casas desapareceram rapidamente da paisagem e quando aparecia alguma perdida junto à estrada, não se percebia se estava abandonada ou era habitada. Por vezes, o contador da electricidade cravado numa parede, indiciava que estaria ocupada, mas custava a crer, tal o ar abandonado, degrado e inóspito. A floresta bravia crescia por todo o lado, perdendo-se contra o céu toldado de nuvens, nevoeiro e neblina. Nós arrastávamo-nos montanha acima, rolando por vezes a 4 ou 4,5 quilómetros por hora. O trânsito era escasso e principalmente de camiões. Não tardou muito nós próprios entrarmos dentro das nuvens, perdendo qualquer noção visual do mundo que nos rodeava. Era fácil adivinhar a floresta por todo o lado, mas se o declive da estrada deixou de ser perceptível á vista, às pernas não deixava qualquer dúvida. Com vinte quilómetros percorridos, a fome começou a anunciar-se. Tínhamos bananas, meia dúzia de pequenos croissants e um saco de 12 “pães de hambúrgueres” – que em boa hora comprámos em Méndez . Quando o Luís sugeriu que atacássemos as bananas, ouvi um tropel encosta abaixo – era um homem que descia com o cavalo à ilharga. Chegou à estrada, montou e desapareceu nas nuvens, à nossa frente, ficando apenas o ressoar dos cascos fustigando a estrada, durante um bom par de minutos. Pensei que talvez fosse indício de alguma povoação milagrosa e adiei o almoço de bananas. Mas o silêncio absoluto voltou às nuvens e, pouco depois, lá atacámos o mais frugal almoço nas fronteiras do Equador.

Pedalar nas nuvens, é algo inesquecível…

Descer à terra, é sentir o afago materno

Não tardou que as nuvens desatassem num choro compulsivo, largando grossas lágrimas que não podíamos evitar. O objectivo de chegar a Sevilha de Oro – o primeiro povoado onde poderíamos encontrar alojamento – há muito que estava arreado. Hoje já só esperávamos chegar a Guarumales e que aí houvesse algo para comer e beber. Para dormir, haveríamos de descobrir uma berma da estrada acolhedora. A tarde esgueirava-se velozmente pelo meio das nuvens e da chuva e de Guarumales nem sombra. Mas, algures, apareceu na berma da estrada uma mulher andina, daquelas a quem a chuva não molha, o sol não tisna, o frio não tolhe. Caminhava com passadas curtas, nas suas pernas baixas, saia verde-escuro, camisola rosa, duas longas tranças negras sob o redondo chapéu claro. Perguntei-lhe se não havia uma tienda ou pueblo cerca e disse-me que sim – a 3 minutos!! afirmou. Fossem 3 ou 13, a notícia era a mais desejada do dia. Acho que a estrada era de terra e enlameada, mas já não estou seguro – se não era assim agora, foi-o antes ou depois e sê-lo-ia repetidamente de novo, especialmente no dia seguinte… Poucos minutos depois surgiu do meio das nuvens, primeiro música, intercalada com uma voz masculina ao microfone, depois uma cobertura metálica, depois alguns carros e motas estacionadas e, finalmente, uma “cancha desportiva”. Perguntei à primeira pessoa que vi onde havia uma tienda e indicaram-me o quiosque de apoio ao recinto desportivo. No minúsculo interior havia cerveja, coca-cola, sumo, batatas fritas e umas bolachas. Claro que sonhava com uma sopa ou uns ovos mexidos – para não pensar mais alto – mas contentei-me com o que havia…

Casas onde habita gente “cristã”…

Prosseguimos sem destino definido, com as nuvens de chuva por companhia e a estrada de terra enlameada sob as rodas, sempre a subir, sempre a empinar. Poucos quilómetros depois surge, finalmente, uma placa indicando Gurumales, à direita, fora da estrada. Ignorámos a indicação, pois sabíamos que era pouco mais que uma aldeia fantasma, e prosseguimos de dente cerrado. Mas umas centenas de metros adiante, junto à estrada, havia uma, digamos, doçaria! Tinha leite e iogurte, mas o que nos regalou foram umas tacinhas de doce de leite e iogurte “artesanal” com fruta. Adoçámos o estômago e a alma, demos corda aos sapatos e entramos de novo na chuva, nas nuvens e na estrada enlameada, a pique. Numa mistura de suor e chuva, cheguei ao cume da subida e, à direita junto à estrada, apareceu o fantasma de uma casa. Estava em construção, mas já tinha parede e tecto. Foi fácil convencer o Luís que esta era a nossa melhor opção para passar a noite e esperar um dia novo…
Claro que a empregada não varreu o chão e o pó abundava. Claro que a chuva era muita, mas não havia água, nem torneiras, nem ribeira perto. Claro que as janelas deixavam passar o vento forte, o que foi óptimo, pois secou toda a roupa que apanhou pela frente, dando-lhe um tom de pó de cimento, já se vê… claro que o chouriço minhoto, que o Luís ainda tinha no fundo de um alforge, dissipou qualquer réstia de fadiga ou descontentamento; e a bolonhesa knorr, estava de fazer babar um camelo ao fim de um mês sem beber. E não é que ainda tinha duas mangas deliciosas para sobremesa!? Não podia imaginar melhor repasto nem melhor preparação para o dia seguinte!
Choveu abundantemente toda a noite e a água abatia-se ruidosamente sobre o telhado de metal, causando uma sensação contraditória: por um lado, quanto mais chovesse durante a noite, menos prenhas estariam as nuvens no dia seguinte, diminuindo as probabilidades de continuar; mas por outro lado, à medida que a noite avançava sem o temporal dar sinais de abrandar, ia crescendo o receio de que a noite parisse um dia igual…

Tudo é intensamente efémero, tudo muda a uma velocidade ciclópica, excepto a nossa vontade e determinação, que resiste a tudo!

O dia amanheceu sem chuva, com nuvens esbranquiçadas pairando alto, sobre as montanhas em redor. Ontem não se viam “dois palmos à frente do nariz”, mas hoje dá para perceber que pernoitámos no topo de um morro, começando a jornada com uma descida abrupta, na estrada de terra bem encharcada. Lá longe, no fundo do vale projectado contra a montanha verdejante, avistam-se minúsculas camiões, máquinas e cisternas, que vão crescendo á medida que nos aproximamos – é o estaleiro de apoio às obras de pavimentação da estrada.

As obras estão atrasadas…pelo menos um dia – deveriam ter sido concluídas ontem!!

Finalmente surge Amaluza, pequena povoação debruçada sobre o sempre presente rio Paute. Aproveitámos um dos dois restaurantes para tomar o pequeno-almoço e repor as vitaminas necessárias a mais um dia de montanha. Pouco depois surge o enorme paredão da barragem hidroeléctrica de Amaluza. O lago formado pela barragem, espelha o estranho e perverso efeito das barragens sobre os rios selvagens, com uma densa camada de algas cobrindo por completo as águas paradas.


Barragem de Amaluza – O estranho efeito das algas

Poucos quilómetros volvidos e surge novo paredão e nova barragem: desta vez é San Pedro. O rio descreve uma curva de 180º, trazendo consigo uma paisagem totalmente diferente. A montanha abre-se em encostas cada vez mais suaves, onde diferentes culturas e parcelas formam um gigante tabuleiro de xadrez, de formas irregulares, em diversos tons de verde, salpicados de casas e manchas de vacas pachorrentas.

…Que disfarce mais giro!

O vale muda com a curva do rio...




A curva do rio trás consigo um mundo diferente, mais suave, mais habitado, mais domesticado…

Mais uma vez, ao fim do dia abriram-se as comportas e a água desatou a cair com força. À passagem por Palmas, o inconfundível aroma quente e adocicado de uma padaria, fez-me esquecer a chuva e despertou-me o desejo incontrolável pelas gulodices da panificação. Com os olhos postos na chuva, que continuavam trauteando a sua melodia interminável de lágrimas e lamentos, deliciei-me com três croissants quentinhos, com vestígios de recheio de chocolate, comidos no interior morno da padaria.



Para onde olhar?

Perto de Sevilha de Oro, já a chuva se tinha retirado, deixando nos céus uma carapaça de nuvens desmaiadas, trespassadas pelos raios tíbios do sol poente, dois homens gesticulam na berma da estrada. De garrafa e copo em punho, acenavam enfaticamente para parar e tomar um trago. O Luís ia adiante e passou rápido, mas eu antecipei o convite e detive-me a tempo. Com grande alarido e entusiasmo, não sei se movido a álcool, um dos homens estende-me o copo e o outro verte uns bons goles de aguardente de cana, sugerindo adicionar uma outra bebida tingida de rosa. Aceito a sugestão e junta apenas uma colher dessa segunda bebida. Perante a satisfação e alegria de ambos, bebo um longo trago e faço o AH! da praxe. Repito duas vezes e despeço-me entre elogios e agradecimentos. A mistura não me pareceu muito forte, mas senti uma agradável sensação de calor no estômago.
O hotel de Sevilha de Oro estava momentaneamente fechado e o Luís, cheio de pica neste fim de dia, sugeriu que seguíssemos para el Pan, uns dez quilómetros (seis a subir) adiante, onde pernoitámos numa “espécie” de hotel, pois a aldeia é minúscula e não tem qualquer estrutura para receber turistas.

A natureza está sempre a fazer das suas…

A ligação de el Pan a Cuenca é um passeio tranquilo, com mais descidas que subidas. O mosaico verdejante de pequenas parcelas cultivadas e vacas salpicando as encostas, dá lugar a uma paisagem menos telúrica, mais árida, acastanhada. Os vestígios da urbe não tardam, com o trânsito a aumentar e alguma construção desordenada e dispersa ao longo da estrada.
Cuenca adivinha-se nos bairros compactos de pequenos edifícios, dispostos geometricamente em filas sucessivas, separadas por ruas estreitas e degradadas. Os telhados de brilhante telha vermelha, dão-lhe um tom algo agressivo e um pouco kitsch.
O centro da cidade foi-me um pouco difícil de digerir e não conseguiu entusiasmar-me… Para alem da profunda disparidade entre a rua Simon Bolívar e o resto do centro antigo, formando dois mundos distintos quer em termos de arquitectura, de preservação e de vida, não consegui gostar dos edifícios “rococó”, da heterogeneidade das cores e dos contrastes da construção. Talvez as minhas expectativas andem demasiado altas e o facto da cidade ser “património da humanidade”, as tenham elevado ainda mais… Na verdade, apenas os edifícios religiosos, em particular a pequena, mas tão colorida, catedral velha, parecem merecedores da distinção.

Cuenca – pátio interior

Perguntei no posto de turismo se não havia nenhuns eventos culturais por aqueles dias e a empregada deu-me um pequeno panfleto promocional de uma série de peças de teatro, em exibição nos dias seguintes. O bilhete/convite era obtido por troca com um livro infantil “em bom estado de conservação”. Como não tínhamos livros, decidimos ir às compras e pensei mesmo em oferecer não um mas dois ou três livros. Na realidade o custo de vida no Equador é muito baixo: pernoita-se num hotel razoável por 10 dólares, almoça-se (sopa, prato e sumo natural) por 2 dólares, 3 mangas (enormes e deliciosas) ou um fantástico ananás, não custam mais de 1 dólar, meia dúzia de bolos/croissants, têm o mesmo preço… Quando cheguei à livraria e comecei a folhear livros infantis, vi um pequeno número a lápis, escrito na contracapa: o principezinho – 10; Robinson Crusoe – 12; os Três Mosqueteiros – 12; etc. Pensei que não devia ser o preço mas alguma referência interna, só que num dos livros o número estava antecedido do $... era, portanto, o preço. Fiquei, de facto, surpreendido e caiu por terra a intenção de levar dois ou três livros à troca por um bilhete para o teatro. Fiquei-me pelo Principezinho… Já o Luís, pagou quase 24 dólares pelo pequeno “o melhor do mundo são as crianças”, do Fernando Pessoa!
Talvez pareça um bocado sovina, mas o que me chocou, foi o pequeno Principezinho custar 5 almoços, ou quase 15 quilos de mangas!! – já nem quero pensar no do Pessoa…
Antes de retomar a viagem para sul e para a fronteira com o Peru, decidimos ir fazer um percurso de comboio, que promete muita adrenalina e vistas fabulosas: descer de Alausi ao Nariz del Diablo, no que designam o “trajecto de comboio mais difícil do mundo”.

As cores dos trajes, especialmente femininos, ferem a indiferença

As mais de quatro horas de autocarro, de Cuenca a Alusi, mostram o Equador Central, mais habitado, mais cultivado, com maior diversidade, que o Equador remoto que percorri a oriente. A cordilheira central é imponente, com relevos, declives e precipícios de suspender a respiração, embora vista do interior de um autocarro, se torne demasiado distante, apenas paisagem… Os meios de cultivo são totalmente arcaicos – enxada, bois e charrua – embora tenha dúvidas sobre a possibilidade de utilizar tractores em semelhantes desníveis. As parcelas de terra são pequenas, formando uma gigantesca manta de retalhos, com todas as tonalidades e formas geométricas, pelas encostas fora, cultivadas até ao topo. Homens, mulheres e crianças, de trajes coloridos, chapéus de coco na cabeça e enxadas nas mãos, sulcam, quase de gatas, a terra negra e fofa. Parece um estranho equilíbrio este, um equilíbrio de pobreza, de carências, de dureza, de luta, de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, de orgulho, de firmeza, de beleza, de harmonia. Que perda, se se perder. Que perda quando se perder, pois não há dúvida que se perderá… terá de ser uma questão de tempo apenas.

Andrés – artesão de Alausi

O comboio tem hora marcada para as 11h da manhã: “em ponto”, antecipa o empregado da bilheteira, recomendando que estejamos ¼ de hora antes no cais de embarque.
A locomotiva a diesel, solta um profundo rugido, larga uma espessa e prolongada nuvem de fumo e logo se acalma, no som regular de pistões a martelarem. O cais está cheio, com mais estrangeiros do que equatorianos. As três carruagens são de madeira, limpas, com ar novo e cuidado. Os lugares são marcados e cada carruagem tem um guia. Às 11h em ponto estão todos nos seus lugares, a locomotiva solta dois prolongados apitos, que ecoam por todo o vale, e põe-se em marcha. Apesar do esforço do guia da carruagem, poucos lhe prestam atenção e a ordem para não colocar nenhuma parte do lado de fora do comboio é imediatamente esquecida ou ignorada. Cabeças, braços, mãos com máquinas fotográficas em punho, atropelam-se nas janelas abertas…

O início suave da viagem ao nariz del diablo

A descida começa suave, com duas ou três curvas de 180º, pela encosta verdejante. Rapidamente estamos a correr junto ao rio, que se afunda mais depressa que a linha do comboio no vale abrupto. A linha é estreita e, cavada na encosta íngreme, parece desnivelada. As curvas parecem terminar num precipício mas, no último momento, lá surgem mais uns metros para respirar. Lá em baixo, largas dezenas de metros abaixo, quase invisível da encosta, vislumbra-se a linha. Vai descer em zig-zag, talvez de recuas, talvez dê um trambolhão, ou um salto mortal, e aterre de pé sobre o patamar inferior…


Por vezes é impressionante o desnível dos três patamares da linha…

São 500 metros de desnível em cerca de 12 kms de linha, sulcada na montanha, talhada na rocha, incrustada no vazio, suspensa no nada. Foram vários milhares de mortos, principalmente afro-jamaicanos – onde é que já vi este “filme”! – que explodiram com a dinamite que levavam consigo, montanha abaixo para a fazer explodir. Por cada morto, havia uma indemnização de 2 libras a pagar… barata a feira. O Nariz do Diabo já está estropiado. A linha já passa de uma narina à outra, com dois patamares diferentes. O comboio muda três vezes de direcção, parece que anda tonto, para trás e para a frente. Finalmente estamos no fundo do vale, lado a lado com o rio, encravados no coração das montanhas, no triângulo formado por tês cordilheiras a perder de vista.



A viagem que nos transporta ao nariz do diabo, na realidade leva-nos para fora do mundo, para o coração da montanha, para o universo dos sentidos

As linhas de comboio do Equador foram (todas!) declaradas património de interesse histórico e turístico e estão em recuperação. Em 2014, a maioria deverá estar a funcionar para aproveitamento e exploração turística – a “revolucion ciudadana” está em curso, como não se cansam de anunciar os inumeráveis cartazes espalhados por todo o país! Não sei de onde vem o financiamento, não conheço o défice nem a dívida do país, mas a sensação que fica é que realmente está em curso uma revolução nas vias de comunicação…
Deixo Cuenca em direcção ao sul, à fronteira peruana de la Balsa, nas imediações de la Chonta. A única cidade digna da designação, que se atravessará no caminho, deverá ser Loja…

Pela estrada do sul…

A estória do Sul e dos cinco dias de Cuenca a Zumba, perto da fronteira peruana, escreve-se com chuva, nuvens e nevoeiro; com muita lama e pouco pó; com rios, ribeiros e riachos caudalosos, ruidosos, barrentos, alguns passados a vau; com subidas a 16%, em pisos de cascalho, terra e lama; com descidas de partir os braços, paralisar os dedos e deglutir os travões; com montanhas que não cabem no olhar, vales que se afundam no vazio, silêncios que engolem a terra; com casas que não são possíveis, mas onde vivem mortais – crianças, velhos e adultos, cães, galinhas, patos … – de longos e coloridos estendais, piscando o olho ao sol; com borboletas coloridas flutuando ao sabor do vento, desenhando arco-íris em ziguezagues estonteantes; com pássaros desconhecidos, uns soturnos, outros exuberantes, uns garridos, outros discretos; com grilos, cigarras e demais insectos, que não se calam à nossa passagem, pois devem recear, mais que tudo, o peso do silêncio; com arvoredos, árvores, arbustos, de todos os tamanhos, tons, folhagens e ramagens, umas empertigadas ao céu, outras corcundas, umas de fruto, outras não sei, mas vejo-as aparecer no meio das nuvens, na linha do horizonte, definida pela mais alta montanha, ou em cima de um pedregulho que emerge das águas revoltas do rio.
A estória do Sul escreve-se com o olhar. O olhar dos magotes de crianças que andam a pé 9 quilómetros por dia, para irem à escola (do Canadá a Belavista, por exemplo). De galochas calçadas, sacola a tiracolo, por vezes uma fisga na mão, o pente adornando o bolso da camisa, chova ou faça sol, com frio ou calor... Orgulhosos e inseguros, soltam um: “hello, how are you?” Mas já não conseguem acompanhar o simples “what are you doing?” ou “how hold are you”. Hesitam quando lhes pergunto se querem tirar uma fotografia, mas atropelam-se numa correria quando lhes digo se querem ver a foto (no pequeno visor da máquina) – e os olhos incendeiam-se e o riso ilumina quando se reconhecem no mini-ecrã: seis dedos atropelando-se no visor. E quando se reúnem em volta da bicicleta, primeiro a medo, depois quase devorando-a, tocando no conta quilómetros, apertando os travões, fazendo rodar os estranhos pedais de encaixe, esticando-se para conseguir ver o mapa, correndo atrás de mim quando arranco, agarrados à bandeirola do atrelado ou empurrando durante uns metros…
A estória do Sul escreve-se com homens, explosivos, máquinas e camiões que rasgam a montanha, esmagam a floresta, amordaçam rios, levando a estrada mais longe – dizem que até ao Brasil, através do Peru, pela amazónia adentro…
A estória do Sul escreve-se com suor, que ferve nas subidas e gela nas descidas; com roupa que se molha e não se seca, que cheira a suor, mas cheira bem, que se encharca e nos encharca, mas que mantém a ilusão de protecção da chuva e de resguardo do frio nas descidas; com correntes, mudanças e travões que resmungam, rangem, gemem e choram, mas resistem (ainda e sempre!?); com bananas, bolachas, migalhas de “roscas” – que parecem cavacas – e de bolos – que parecem de novo farinha; com quartos partilhados com vários insectos, camas que parecem ter colchões, mas nem esteiras são, banhos de água fria, para não criar maus hábitos, pois, felizmente, a água da chuva não é quente!
A estória do Sul escreve-se, acima de tudo, com os sentidos – com todos os sentidos; com os músculos – muitos músculos; com a imensa força do querer, que é tão único, tão grande e tão sólido, quanto o Sul, ou não seria possível resistir-lhe.
A estória do Sul escreve-se sempre amanhã, pois hoje continuo pelo norte…

As fotografias do sul talvez se repitam constantemente, talvez nada acrescentem aos olhares do norte, talvez não espelhem a singularidade e grandiosidade do sul. Mas isso é seguramente falha das fotografias, do fotógrafo, do viajante, porque o sul, este sul (e o que espera por amanhã), não cabem em fotografias nem em filmes, nem em descrições, narrativas ou romances…


Sem título?


À saída de Oña, depois, durante e antes da chuva como companhia…


Os planaltos infinitos, mudam com as “estações” do dia


Aqui ainda não chegou a “revolucion ciudadana” – ou será esta a verdadeira!? abastecimento de água à aldeia



Procissão de angariação de fundos para a festa, em Saraguro


A caminho de Loja


Nas proximidades de Loja, surpreendidos pela noite

e pelas muitas, e inesperadas, subidas


Almoço tranquilo no simpático “complexo” VidaAventura, de Tunga a Vilcabamba


Vilcabamba, um mar de sossego no coração verdejante das montanhas do sul


A estrada de asfalto ficou definitivamente para trás…


Vigilante surpreendido


De Vilcabamba a Valladolid, a chuva, o nevoeiro e a lama das estradas


foram o sal e a pimenta que faltava para temperar o relevo alucinante do caminho



Os povoados são cada vez mais distantes, mais remotos e mais pobres. Casas isoladas na montanha, parecem milagres, ou maldições


Mas é sempre possível um olhar colorido, ainda que naiff


De Valladolid a Zumba, largos troços da estrada estão em obras. Felizmente a zona era plana, mas a emoção e boa disposição nunca faltaram – nem a simpatia e incentivo dos trabalhadores…







Quando as obras e a lama ficaram para trás, a adrenalina não diminuiu, apenas mudou de tom…


É impossível não sentir um mundo a ficar para trás…


…e outro abrir-se à nossa frente. Miúdos que fazem 9 kms para ir à escola e voltar – chuva, faça sol, frio ou o que der na gana ao San Pedro


A última do dia… daqui apenas se vê(?) a descida, mas garanto que a subida foi um pouco mais extensa e dura.


Deixando Zumba e rumando à fronteira de la Balsa, ainda havia muito a destilar


Pelo caminho não há só montanhas e verde…


Até custa a crer, mas é mesmo verdade. São casas habitadas…


Adeus Equador (la Chonta)…


Olá Peru (la Balsa)…descobre as diferenças…

8 comentários:

  1. Chego outra vez exausto ao fim de mais um episódio, o corpo enregelado de tanta chuva nevoeiro e lama. Valeu o descanso na viagem de combóio pelo nariz del diablo. As vistas alucinantes fizeram-me logo lembrar uma outra que fiz no México, Sierra Madre, pelo Copper Canyon e que mais parecia um carrocel num parque de diversões fora de escala.
    Desejos de boa continuação com menos chuva e mais alcatrão, já que as subidas e descidas deverão ser uma constante. Da vossa tenacidade já espero tudo...mas espero que não esteja nos vossos planos pedalar o inca trail para machu pichu ;-)

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  2. Caro Idilio, esta (etapa)terá sido, a meu ver, a mais difícil. A natureza caprichou em dificuldades e o homem deu uma ajudinha... fizeram mal a alguém.
    Tenham uma Boa Páscoa.

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  3. "As linhas de comboio do Equador foram (todas!) declaradas património de interesse histórico e turístico e estão em recuperação. Em 2014, a maioria deverá estar a funcionar para aproveitamento e exploração turística – a “revolucion ciudadana” está em curso, como não se cansam de anunciar os inumeráveis cartazes espalhados por todo o país! Não sei de onde vem o financiamento, não conheço o défice nem a dívida do país, mas a sensação que fica é que realmente está em curso uma revolução nas vias de comunicação…"
    Ao ler este comentário, faz-me lembrar a linha do Tua, tal e qual. Uma das linhas de caminho de ferro mais sui generis do mundo. Aqui paira a "revolucion (EDP)".

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  4. boa tarde sr.Idilio.se conseguiu resistir a estas concições climatéricas,já nada o consegue deter até ao final,muito bem.já está de parabens.È tudo muito intenso,muito real e verdadeiro.Fantástico.Boa continuação.

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  5. A força e coragem que transmite são o testemunho do que pode um Homem quando acredita. Mais uma vez obrigado.

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  6. Que etapa e fotos extraordinárias.

    Que tenacidade.

    Agora vem o Perú. Os declives serão semelhantes, mas talvez com menos lama.

    JMorgado

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  7. Olá "Peruquiano". Pedala devagar e vai-nos dando relatos daquilo que encontras. Um abraço.

    zé mouronho

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  8. Apeteceu-me escrever: fotos incríveis de paisagens impossíveis de descrever... mas na verdade a prosa melhora a cada quilometro e numa ou noutra passagem, quase nos sentimos aí.
    Boas pedaladas e muitas saudades! Abraço. PS: hoje, quando deram a entrevista habitual, já tinham começado a "jantar" ;)

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