Se os Suíços ofereceram ontem o jantar, o mínimo que podia fazer era pagar eu o parque, e foi o que fiz. Quando assomaram os narizes fora da tenda, olhar ensonado, já eu estava de “malas aviadas”. Mesmo assim tomámos o pequeno-almoço juntos. Equacionei esperar por eles e irmos juntos até Smithers, mas desisti da ideia quando o Lukas disse que ainda demoravam cerca de hora e meia até arrumarem tudo…cá para nós, não percebo porque raio desmontam a tralha toda das bikes, todos os dias…eu mantenho sempre os alforges colocados, excepto quando dou alguma limpeza à Dempster (acho que é um bom nome de guerra e, ao mesmo tempo, uma justa homenagem à “nossa” primeira estrada, pelo que, a partir de agora, Dempster também é nome de bicicleta…) ou arrumo a tralha toda, o que é raro...
Até Smithers são 30 kms e o meu objectivo para hoje era mesmo chegar o mais rapidamente possível. Queria dar uma revisão à Dempster, pois anda há uma semana a queixar-se fortemente de artroses e reumatismo. E eu não quero cá queixinhas. Se tem problemas de saúde, resolvem-se. Também previa passar algum tempo na biblioteca, para pôr os meus amigos resistentes à prova, com mais um capítulo.
A paisagem mudou e a estrada também: “normalizou-se”. Ganhou trânsito, faixas de rodagem, cores das marcações, abundantes placas de sinalização, “rest area”, pequenos povoados, quase sempre com estação de serviço, incluindo mercearia. E surgem as primeiras áreas de cultivo, essencialmente cereais e pastagens. Ainda assim vão emergindo ao longe cadeias de montanhas esbranquiçadas da neve, lagos, agora o mais das vezes propriedade privada e integrados nas quintas.
Chegado a Smithers fui directamente à McBike, a loja que me tinha sido recomendada pelo Bob. O dono – Peter Crouse – foi simpático, falou com o mecânico e combinámos que passava por volta das 5h.
Depois de dar uma volta pela cidade e comer qualquer coisa, fui para a biblioteca – mais uma que nem vale a pena comentar, pois cada uma me parece melhor que a anterior… Passei 3 boas horas de volta das electrónices: mail, blog, facebook. A parte boa é que durante esse tempo sinto aproximar-me dos meus amigos. Vejo-os e ouço-os através das mensagens simpáticas e dos comentários ao blog…
Pelas 5 horas lá estava de novo na McBike, na expectativa de ver o que me esperava: suspeitava que ia ter uma boa conta e assim foi. Mudança de corrente, cassete e pedaleira média (já agora para os entendidos, passou a ter 34 dentes em vez dos 32 da velha…). Conta feita, 240$...
Como Smithers não parece ter nada de interesse para ver, decidi percorrer os cerca de 15 kms até ao parque de campismo de Tyhee lake. Fica numa pequena elevação, junto à vila de Telkwa, e é um parque fantástico, de floresta densa, selvagem, junto ao lago de água espelhada, onde não faltam os patos do postal e é permitido nadar.
Já tinha jantado e recolhido á tenda para as notas e afazeres nocturnos, mas tive de sair para ir buscar o ciclómetro. E nesse lapso de tempo fui surpreendido pelo meu vizinho do “quarteirão” ao lado – James Nielson – a convidar-me para jantar. Ainda procurei recusar, pois já tinha jantado (na verdade, em Smithers fui à “casa do pesado” e pequei duas vezes: um double big mac meal e uma coca-cola…e no parque de campismo voltei a jantar), mas pareceu tão desapontado com a minha recusa, o tom de voz com que disse a ementa (batatas, cogumelos, legumes, bife, vinho e cerveja) era tão triste, que não consegui recusar…
O Jim, “como a mãe o trata”, está a passar férias só, pela primeira vez em 30 anos. A mulher e as duas filhas “lindas, que todos dizem irão ser modelos”, foram noutra direcção. Não se calou durante o jantar…parecia andar em busca de si próprio, de um rumo para a vida. Percebia-se que estava a detestar as férias sozinho, que tinha saudades da família, dizia coisas para se convencer a ele próprio, nem esperava que eu respondesse ou sequer comentasse o que dizia. Parecia um homem vergado e derrotado. Se eu imaginasse alguém à beira do suicídio, pensaria em alguém como ele…Até que se calou e passou a palavra para mim. Falámos do Canadá, da beleza e da simpatia. Do mundo, da pobreza, da 2ª guerra mundial e da construção da Alasca Hwy. Fomos bebericando vinho e eu comi-lhe o queijo todo…é impressionante o que posso comer... E despedimo-nos com votos de boas férias.
De Telkwa a Burns lake
No dia seguinte parti cedinho, como gosto. Tinha decidido mandar finalmente fora o relógio e as calças de plástico velhas, pois tinha comprado umas verdadeiramente à prova de água e, espero, respiráveis. Decidi deixar as calças sobre a mesa de campismo, pois alguém as poderia aproveitar…já o relógio, iria repousar para sempre no fundo do lago Tyhee. A partir de agora, não há datas, nem dias da semana ou do mês…as horas serão mais solares e físicas e menos institucionais.

Telkwa, nas imediações do parque de campismo, ficou-me como a povoação mais simpática que encontrei até agora ao longo da Yellowhead. Situa-se na margem do rio, com casas pequenas, ajardinadas, cuidadas nos pormenores, um pequeno passeio com bancos de jardim frente ao rio e, no fim da aldeia, duas pontes: uma para a linha ferroviária, outra para a rodovia, ambas com ar antigo, rústico…
Pedalei distraidamente quase até Huston. A paisagem mais próxima da estrada é predominantemente cultivada – forragens, parece-me. Ao longe as montanhas mantêm a presença mais discreta. Poucos kms antes de Huston, mesmo junto à “rest area”, passa por mim uma auto caravana – era o James. Era previsível, pois regressava a casa, em Fort San James… Passou, apitou e virou para o parque, à esquerda da estrada. Também me encaminhei para lá e aparece todo esbaforido, com as minhas calças na mão dizendo que eu me tinha esquecido delas e que estava muito preocupado em conseguir entregar-mas. Nem tive coragem para lhe dizer que as queria mandar fora…guardei-as e agradeci. Mas a surpresa não tinha acabado…tinha preparado o pequeno-almoço e trazia-me um taparwere cheio: ovos, bacon, batata, cebola – aquelas mistelas que fazem. Como já sentia apetite e pensava almoçar em Huston, caiu que nem ginjas. Agradeci mais uma vez e cada um seguiu o seu caminho, não sem que antes me tivesse dado um cartão com o telefone e pedido para lhe telefonar quando regressasse a casa, daqui a 1 ano ou 2. Só para saber que tinha chegado bem…
De Huston a Burns lake foi ainda uma longa jornada… mas com o vento a ajudar, lá cheguei. Praticamente não havia visibilidade com o fumo dos incêndios na zona…acampei no parque municipal, mesmo “com os pés no lago”.
De Burns lake a Vanderhoof, com água na boca e bife na brasa
A noite foi muito fria, mas o dia acordou ensolarado. O efeito era uma densa e misteriosa evaporação nas águas geladas do Burns lake, que quase me entrava pela janela…
Estava com expectativas de que Fraser Lake, o próximo povoado no meu caminho, tivesse algo especial…o lago é muito grande e esperava algo que não sei definir. Mas não. Desilusão total, não sei se pelo frio e vento forte que persistiam…almocei apressadamente num parque de recreio, junto ao lago, e continuei.
Até Vanderhoof, quase não se via a estrada, tal a densidade do fumo dos incêndios circundantes... de resto, aumentavam as explorações de madeira, com fábricas, camiões carregados, cheiro a madeira e a serradura.
Em Vanderhoof passei pelo pequeno museu e respectivo café, tomei um chocolate quente e fui directo para o parque de campismo. Depois de montar a tenda e tomar banho, desta vez de chuveiro, com água quente, sem limite de tempo nem custo adicional, fui à povoação, logo ali, a cerca de 1 km. Desde manhã que geminava na minha cabeça a vontade de comer um grande bife – ou naco – de vitela na brasa. Quando fui às compras de manhã, em Burnes lake, olhei para a secção da carne e ficou-me gravado um enorme bife bem vermelho…e ficou a fermentar na memória até à noite. A embalem mais sedutora tinha dois nacos enormes – 640 grs – e foi essa que comprei. Faltava a bebida… não é fácil arranjar bebida alcoólica por aqui, ainda por cima fresca. Vende-se em estabelecimentos especializados e rareiam, ou estão mais disfarçados. Depois de alguma persistência, tinha tudo o que queria para o banquete.
Chegado ao parque, acendo o barbeque com a madeira que por lá rebusquei, e já crepitava abundantemente quando passa uma carrinha lentamente junto à minha clareira. Faz marcha-atrás e já estava a antever o problema… veio o responsável do parque, com ar sério mas afável, e disse-me o esperado: que era proibido fazer qualquer tipo de fogo na British Columbia. A província estava a ser assolada por uma vaga de incêndios (mais de 350!) e era completamente proibido (já nem sei o montante da multa que me referiu…). Apaguei logo a fogueira com água e…adeus jantar!! Não podia ser. Não estava preparado para renunciar assim… decidi improvisar. O kit de culinária tem um tacho e uma caçarola mais pequena. E foi nesta coisa, onde cada bife se contorcia para caber, que acabei por “grelhar” na “chapa” o meu delicioso jantar…
Daí a pouco surgiu de novo o responsável, agora para cobrar o parque. Diz que o preço é 25$, mas dado o meu curriculum (já venho de Inuvik, atravessando boa parte do Canadá e com o objectivo de chegar à Patagónia), só pago 10$!
De Vanderhoof a Prince George, um dia para os amantes (só) da bicicleta
De Vanderhoof a Prince George, fica-me na memória como um dia de puro ciclismo. Pedalar, pedalar, pedalar. Galgar quilómetros atrás de quilómetros. Bater o “recorde” da melhor média. Sentir as pernas quentes e o coração em ritmo acelerado. Tudo isto porque nada vislumbrei no caminho que me prendesse o olhar ou qualquer outro sentido… em todo o dia, tirei uma foto, por simbolismo, à entrada de Prince George…
A cidade é horrível, as casas parecem armazéns. Apenas os parques de recreio, verdejantes, grandes, bem equipados e estrategicamente colocados, especialmente um ao longo do Fraser river, valem a pena.
De Prince George a Ancien Cedar Forest, da intempérie ao primeiro teste mecânico
Ontem decidi comprar um termómetro…mandei fora o relógio mas comprei um termómetro e o resultado não podia ser pior: juntou-se o frio psicológico aos 8º que ainda se fazem sentir às 9 da manhã e à chuva, e o resultado foi partir apenas às 11h, e com as luvas pela primeira vez calçadas. Isto para além da tenda molhada…
Toda a manhã pedalei com frio e a apenas três quilómetros da rest area onde contava almoçar, abrem-se as portas do céu e despejam uma torrente de água e granizo sob a minha cabeça. Mal tive tempo de enfiar as novas calças impermeáveis, que passaram no teste às mil maravilhas…o espírito do viajante é sempre este: encarar pela positiva as piores provações. Assim já sei que tenho umas calças adequadas para quando a chuva for sistemática…
Cheguei à rest area e enfiei-me na casa de banho à espera que a chuva abrandasse. Depois lá saquei dos apetrechos indispensáveis ao almoço e preparei o meu repasto. Mesmo ao meu lado estava uma caravana estacionada. Uma cabeça masculina emergiu, esticou-se na minha direcção e ofereceu-me um café. Claro que não me fiz rogado…só o facto de estar quente já o tornava divinal. No fim ainda me ofereceram uma barra energética…a família, especialmente o filho jovem, estava eufórica porque tinham nascido dois labradores durante a viagem de férias – ainda tinham os olhos fechados, como pude comprovar.
Prossegui sob nuvens carregadas entremeadas com alguns raios de sol que, quando duravam uns minutos, faziam brotar da estrada ondas de nevoeiro, no efeito divertido. Procurava um sítio para acampar – já sabia que tinha de ser campismo selvagem, pois não havia qualquer parque nas imediações… e de repente, um furo na roda de trás. Nem queria acreditar…fim do dia, ameaça de chuva, frio, as coisas molhadas e um furo… Bem, não vale a pena queixar-me. Furos é o melhor que posso esperar e é bom contar com umas dezenas. Desmontar a tralha toda da Dempster, e trocar de câmara-de-ar, que tinha um lanho! Reparei que o pneu já estava a ficar gasto e achei por bem trocá-lo também – até porque ficava mais leve.
Meia dúzia de quilómetros depois, agora sem conta-quilómetros, pois na anterior operação mecânica danifiquei de vez o fio, havia uma sinalização para o Ancien Ceder Forest. E foi para aí que me dirigi. Tinha toilette e mesa de pic-nic, era o local possível…
Estava com o “tacho ao lume” e lá vem mais uma carga de água! Foi recolher tudo a correr e esperar que a massa completasse a cozedura na água fervente. A assim foi: massa “al dente” e só queria deixar que o dia se esvaísse noite fora…
E um novo dia lá vem…mas mais para a tardinha
O dia acordou com a mesma cara com que se deitou, o que não era o mais simpático. A estrada era uma pequena clareira na floresta densa de ambos os lados da estrada. Com mais subidas que descidas, com o vento mais contra do que a favor. Não sei se pedalava dentro de nuvens, de nevoeiro ou ondas de evaporação. Não se via nada a mais de 200 metros, nem tanto. Não sei onde, mas “aprendi” que nevoeiro não dá em chuva, que manhã de nevoeiro resulta em tarde soalheira. E assim foi! Estava com cerca de 50 kms percorridos e o sol começa a espreitar timidamente. Uma coisa curiosa é que se há sol, a temperatura sob de imediato bastante. Mal desaparece por trás de alguma nuvem mais densa, e arrefece instantaneamente. Isto faz com que a temperatura do corpo a pedalar oscile imenso…e raramente tire o corta-vento e ande apenas em t-shirt ou camisa.
Uma placa indica Lasalle lake – recretional area. Uma descida, curta mas acentuada, e surge num sorriso o lago espelhado de verde, abrigado, em silêncio absoluto. As indispensáveis mesas de pic-nic privilegiadamente colocadas no bordejo da água, a toilette e o depósito do lixo. Não imagino melhor local para almoçar…desfrutei daquela beleza com um sorriso de prazer, vaidade e…egoísmo.
Pedalei duramente durante a tarde. Tinha de chegar a McBride, mas o vento forte e constantemente de frente era um adversário físico e psicológico temível. Quem anda de bicicleta sabe do que falo…mas mais uma vez é preciso entrar no jogo com ar arrogante, mesmo que o coração esteja pequenino e amedrontado. Os kms foram ficando para trás, um de cada vez, é certo, e não aos cinco, como acontece quando o relevo e vento são favoráveis.
A paisagem começa a mudar de novo. As montanhas regressam, cada vez mais imponentes e agressivas. As montanhas são o abrigo dos deuses e a sua criação. As montanhas chamam por nós, pelos nossos passos. As montanhas escondem o que se esconde para lá das montanhas e por isso aguçam a curiosidade e desafiam-nos. As montanhas têm sempre mais um “degrau” para subir e enquanto esse degrau não for subido, não conheces o segredo da montanha. O seu segredo só é desvendado quando se atinge o topo. É por isso que gosto das montanhas. Porque são misteriosas, reservadas e agressivas até ao último degrau. E depois submetem-se a teus pés!
Vinte kms antes de McBride deslizo suavemente em descidas contínuas pelo vale cavado, primeiro fechado nas montanhas, depois abrindo-se suavemente para uma planície verdejante.
A povoação parece simpática e alegre naquele cenário de montanha e planície. Há cavalos e vacas a pastarem, rolos gigantes de forragem espalhados pelo campo, máquinas agrícolas em movimento. As pessoas com que me cruzo acenam. Sinto-me de regresso ao local de onde não cheguei a sair, apesar dos 700 kms percorridos na longa Yellowhead.
Tenho de referir o parque de campismo em que pernoitei: o Beaverview. Uma vista deslumbrante para as Cariboo Mountains, um relvado fabuloso por onde se estendiam as tendas (apenas a minha, aliás!!), os habituais lavabos impecáveis, internet wireless na própria tenda! e a simpatia da dona e recepcionista…
O sol trouxe as montanhas de volta e, com eles, a poesia desceu ao homem
Com o Mont Robson por meta, e a cerca de 100 kms, um amanhecer de ouro e azul e o parque de campismo a convidar a ficar, fui deixando a manhã avançar pé-ante-pé. Fiz tudo devagar, propositadamente devagar, gostosamente devagar, saboreando os momentos que se arrastavam preguiçosos – eles ou eu, ou ambos. E quando parti, também o fiz devagar, por uma estrada rural que vai aos Ss, beijando ora o rio Fraser, ora a Yellowhead, nunca esquecendo os acessos às casas e quintas (ranchos, como cá se chamam) que se vão sucedendo em recantos misteriosos, por trás de sebes de enormes pinheiros verdejantes. Uma tranquilidade absoluta. Um convite constante à observação, à contemplação, à preguiça, ao estar.
Foi assim até Dunster. Aí ainda equacionei deixar a Yellowhead e seguir a estrada rural paralela, mas do outro lado do Fraser, junto à linha do comboio. Algo me chamava para lá e para lá me direccionei, mas por azar estava em obras e eram só camiões de brita a passarem.
Com o passar dos kms, o regresso do silêncio, a força da paisagem, o peso da montanha e a aproximação ao Mont Robson sinto-me ser transportado de novo para outra dimensão. Sinto a paz, a tranquilidade, a liberdade invadirem-me e expandirem-se em mim. Eliminando todos os sintomas de fadiga, de rotina, de ausência. Sinto-me regressar. Sinto a energia em cada poro. Tenho um novo olhar, uma nova alma.
Chego a Tête Jaune Cache, onde a estrada 5, vinda do sul e de Vancouver, se extingue e se funde com a Yellowhead. Sinto aquele ponto como um algo metafísico. Para mim, aquela é a porta de entrada nas Rocky Mountains canadianas, apesar de saber que as Rockyes são minhas companheiras de viagem há muitos kms, muitos dias, com outros nomes, mas a mesma alma, a mesma espinha dorsal a mesma força e imponência.
E começa a surgir na estrada uma sinalética nova que inicialmente me assusta: são as segundas vias no mesmo sentido, com vários kms de comprimento. São indício de subidas com o mesmo tamanho: 5 kms; 3 kms; 2,7kms. Até ao Mont Terry Fox Provincial Park, foi sempre a subir…10 kms? Talvez mais…
Terry Fox merece um parêntesis (desculpem, mas sabem que para além da bicicleta, o atletismo é-me cada vez mais querido…). In brief, como se diz por cá, o Terry tinha apenas 18 anos quando lhe diagnosticaram cancro nos ossos, sendo-lhe amputada a perna direita. Em 1980, com uma perna artificial, iniciou a travessia do Canadá, que designou de “maratona da esperança”. O objectivo era angariar fundos para a investigação e combate ao cancro. Corria cerca de 42 kms por dia (uma maratona), tendo percorrido o Quebec e Ontário. 143 dias depois de ter começado e 5373 kms percorridos, teve de parar, pois o cancro surgiu noutra parte do corpo. Morreu com 22 anos…mas nunca deve ter estado mais vivo que hoje, pois corrida Terry Fox realiza-se em 53 países, incluindo Portugal, tendo como objectivo a recolha de fundos para a investigação e combate ao cancro…
O Mont Robson, o pico mais elevado das Rocky canadianas, tem 3954 metros. O Mont Robson Provincial Park é património da Unesco. E ao longo do Berg trail, de que percorri apenas os primeiros 7 kms, apeteceu-me gritar à Mãe Natureza como a amava e como lhe estava grato pelo seu génio e generosidade. Por me permitir aqueles momentos, aquela beleza e aquela emoção.
Apeteceu-me pensar que se tivesse um local assim, só para mim, lhe proporia casamento para toda a vida e prometeria amá-lo cada dia e cada hora…apeteceu-me ser romântico e simples e apaixonado pela vida e, acima de tudo, pela natureza. Apeteceu-me deitar-me ali e rebolar-me ao longo daquele trilho, ora fofo ora pedregoso, colar-me àqueles cedros centenários e majestosos e abraçar neles a natureza toda, lançar-me nas águas geladas e azuis, ou verdes, ou brancas, ou todas as cores e sem cor, e sentir o milhão de lâminas picarem-me cada célula do corpo até deixar de sentir a dor do gelo, e olhar aqueles montes e aquele lago onde se miram, vaidosos e imponentes, e roubar-lhes a alma. E depois voltei, sabendo que não tinha satisfeito nenhum dos meus desejos infantis. Voltei com a certeza de que ali permanecerei para sempre.
Olá Jasper, dos lagos de todos os verdes, dos verdes de todas as cores, dos montes de todos os tons, relevos e texturas, dos recantos de todos os silêncios, da beleza que, de tão bela, questiona a própria beleza.
Hoje nem sei se havia subidas ou descidas. Parece-me estranho que, estando em pleno coração nas Montanhas Rochosas, não tenha de subir. Parece-me estranho que, não estando muito calor, me apeteça despir. Parece-me estranho que, não sentindo qualquer cansaço, transpire em abundância, a ponto de me correr o suor pelas lentes dos óculos de sol. Parece-me que há algo errado, ou comigo ou em meu redor. Olho com atenção se trago toda a bagagem na bicicleta, pois parece-me leve como uma pena. Olho para as pernas e para o tronco e confirmo que não cresceram de ontem para hoje. Então porque será que me sinto flutuar, pairar na estrada, assobiar e cantarolar!? Só pode ser magia. Magia que emana da natureza ao meu redor e que decidiu acolher-me e proteger-me. Paro constantemente para tirara fotos e depois apago-as porque sei que são impuras e imperfeitas – uma aberração, uma ofensa: a alma não se captura. E então decido não tirar mais fotos hoje…Excepto quando não conseguir resistir!! Só ao lago Moose, e no máximo 50! E ao lago Lucerne, e só uma. E ao lago Yellowhead (sim não é só a estrada que tem esse nome…), e poucas, e aos outros cujo nome vou omitir para não ofender nenhum esquecido. E aos picos dos montes que se sucedem: todos com nome próprio, todos muito acima dos 2500 metros, todos a disputarem o céu às nuvens e às aves. Todos a olharem do alto para uma miniatura silenciosa que se move suave e lentamente, em êxtase… era eu e a Dampster, que está tão silenciosa e cooperante, apesar de mais um furo hoje. Anunciou-o timidamente, quando acordei de uma soneca no lago Lucerna e me preparava para os últimos 35 kms até Jasper…onde chegámos ao anoitecer e com mais um fuso horário: e vão 3.
As fotos vêm na próxima sessão...