segunda-feira, 6 de setembro de 2010

"A estrada que vai para o inferno", a estrada mais bela do mundo

A estrada que vai para o inferno, ou Icefields Parkway, ou a estrada do gigante, ou estrada 93, ou a estrada mais bela do mundo. Escolhe a tua…

A informação do folheto turístico é que o parque de campismo tem quase 800 lugares, o que me deixou de imediato de pé atrás e sem qualquer vontade de cá pernoitar. Mas o adiantado da hora e a fadiga falaram mais alto. Puro engano! Devem ser dezenas de hectares, pois a sensação é de sermos meia dúzia de gatos-pingados, tal a dispersão. Mesmo nos duches, não havia qualquer fila ou sobrelotação…
Decidi ficar pelo menos um dia em Jasper. Da vila, pode dizer-se que é exclusivamente turística. As casas são, porta sim, porta também, todas dedicadas ao comércio, sejam os gifts, cafés, pubs, bares, restaurantes, lojas de roupa, agências de organização de eventos. Tudo arrumadinho, limpinho, organizado, florido e decorado. Um filme cor-de-rosa, adereços de lantejoulas, sorrisos em cada esquina. Por vezes em excesso…é a povoação típica de que não gosto, sem alma, sem personalidade, sem vida própria…é apenas um local de passagem e consumo, nada mais…


Beauvert Lake
Mas em Jasper existe muito mais que a vila. Existem imensos trilhos nas imediações. Uns só pedestres, mas a maioria são cicláveis. Foi por aí que me “servi”…entrei floresta adentro e comecei por explorar os lagos em redor, uma sequência formidável: Beauvert, Mildred, Anette, Edith, entre outros de menos nomeada ou cujo nome não retive. Para alem do sossego, dos recantos, dos bancos discretos e dispersos ao longo do percurso, dos caminhos estreitos, de terra, normalmente, mas por vezes de asfalto, da sinalização irrepreensível, até excessiva, as cores são realmente estonteantes, irreais. Todos os tons de verde e azul que consigamos imaginar, estão presentes e a multiplicar naquela palete divina. Mas o que me surpreendeu de verdade é que dei por mim a passar no meio de um discreto, mas enorme, campo de golfe, com os golfistas e respectivos caddys a esperarem para eu passar… e dei por mim a olhar para as placas sinalizadoras das habitações, ralas e quase fundidas com a vegetação, e no entanto cruzavam-se inúmeros trilhos de acesso público!! Já imaginaram esta partilha do património natural em Portugal!? Na Quinta da Marinha, por exemplo…somos muito à frente…condomínios privados é que é o futuro.


Beauvert Lake

Edith Lake
Prossegui para o Maligne Canyon, mas não me impressionou. É verdade que a força da natureza mostra ali todo o seu poder e persistência. Que a força dos elementos travam ali uma batalha de milhões de anos, com a água do rio Maligne a combater a resistência dos rochedos que procuram cercear-lhe o livre curso. Parece ser uma batalha sem fim, com os rochedos a contorcerem-se em recantos, curvas, precipícios, por onde a água corre em violento turbilhão. Mas já senti o poder do Fish River Canyon, o segundo maior do mundo. Já vi as pessoas a desaparecerem literalmente, tornando-se invisíveis na distância que nos separa do leito do rio…


Medecine Lake



Medecine Lake
Depois prossegui em direcção ao Maligne Lake, mas fiquei-me pelo Medecine. A maior diferença para os que tenho visto, é que este está enquadrado não pela habitual floresta densa e sumptuosa, mas por uma paisagem árida e agressiva, de rochedos esbranquiçados com os quais contrasta fortemente. Almocei em silêncio sobre um desses rochedos, como quando guardava as ovelhas: escolhíamos o maior rochedo para merendar…acho que era para nos sentirmos dominadores, mais fortes ou poderosos.
Entretanto as nuvens foram-se adensando rapidamente, formando um pesado manto negro com que taparam o céu. Regressei a toda a brida, pois não estava interessado em acabar o dia encharcado. Foram os 27 kms mais loucos e forçados de que tenho memória, suados até aos dedos dos pés. Abri a porta da tenda já sob o rugido furioso dos trovões mas apenas com escassas lágrimas abatendo-se sobre mim. Fiquei mais de quatro horas na tenda, brincando às fotografias e aos escritores, mas acima de tudo sentido os elementos em redor: é uma sensação indescritível viver um forte temporal, relâmpagos flamejando continuamente, qual fogo de artifício, sentir o solo a vibrar sob o corpo ao som do estrondo dos trovões entrecruzados, chuva a cântaros respingando por todo o lado, tudo isto à distância da fina membrana de uma tenda de campismo, neste caso um T0…

Os grossos pingos que se abatiam sobre a tenda, deslizavam dos ramos dos pinheiros que me deveriam resguardar. Levantei-me e a humidade era quase física, palpável. O plano hoje era visitar o vale dos cinco lagos, regressar ao parque, arrumar a tralha e ir a Jasper actualizar o blog e fazer algumas compras. Depois prosseguir para sul, pelo paraíso dos glaciares, das montanhas imponentes, dos picos nevados, dos lagos frios e translúcidos, dos rios selvagens, das quedas de água em fúria, dos pinheiros verdes e das flores selvagens salpicando as bermas da estrada 93 – Icefield Parkway, a estrada mais bela do mundo, como nos é apresentada nos folhetos turísticos. Ou “a estrada que vai para o inferno”, no dizer de uma octogenária da minha aldeia, que por cá passou com o filho, emigrante em Calgary…

Vale dos 5 lagos #2

Vale dos 5 lagos #3

Vale dos 5 lagos #3

Vale dos 5 lagos #4
O vale dos cinco lagos é mais uma dádiva provocatória da natureza. Deve ter surgido de um qualquer despique entre deuses pelas graças de uma princesa de sapato de cristal…o vale só é acessível a pé, a cavalo ou de BTT, mas neste caso é difícil, pois o piso é muito irregular, pedregoso, com raízes de árvores expostas à superfície e imensas árvores caídas, atravessadas no estreito carreiro. Andei mais com a Dempster pela mão ou literalmente às costas do que em cima dela. Mesmo assim gostei que fosse comigo, para partilharmos o encanto da manhã em silêncio. Há um carreiro de formigas contornando os cinco lagos, que se sucedem longitudinalmente. As cores mudam consoante a profundidade do leito e outras razões técnicas que desconheço...mas ouvir este silêncio em silêncio, sentir a textura do solo macio sob os pés, beber as cores do musgo, da água, das árvores, das sombras e das montanhas, deixar o aroma húmido da terra entrar no corpo e percorrer as artérias, é entrar na tranquilidade cósmica.

Parque de Campismo de Jasper
Só por volta das 2 horas deixei Jasper de vez. Agora era pedalar rapidamente pela estrada que vai para o inferno, até ao próximo parque de campismo, no lago Honeymoon. Mas é difícil avançar quando os sentidos, insaciáveis, querem alimento, que brota 360º graus em redor…A estrada contorce-se por entre indomáveis cumes montanhosos, cada um em busca de maior imponência e beleza. Só dos que ultrapassam os 3000 metros, contei 8. Chamam-se Edith Cavell, Fryat, Belanger, Brussels e por aí fora.

A estrada que vai para o inferno

A estrada que vai para o inferno
Também tenho alguma razão de queixas do relevo, pois estendeu-me algumas passadeiras fortemente onduladas pela frente, e do senhor vento, que decidiu ajudar à festa e empurrar-me para o ponto de partida.
Assim cheguei ao parque de campismo de Honeymoon. Para minha surpresa estava quase cheio. Imensa gente, incluindo muitos jovens em constante algazarra. Acampei no lugar contíguo ao Loe e Stephanie, um casal de franco-britânicos que iniciaram há 4 meses, em Montreal, a travessia do Canadá/Estados Unidos, junto à fronteira. Estão agora a terminar, com 9000 kms nas rodas e nas pernas. São um casal muito simpático, especialmente o Leo, nascido em Inglaterra mas a viver Toulouse. Deram-me algumas informações úteis, como os 6$ que é preciso pagar pelo visto na fronteira americana, a estrada dos Glaciar Nacional Park que está fechada a bicicletas das 11h às 16hm, as possibilidades de campismo junto às estações de serviço nos EUA.

Honeymoon Lake

Honeymoon Lake
Entretanto, havia romarias ao lago Honeymoon, pois o vento tinha feito uma pausa para descansar, deixando as águas do lago formarem o espelho perfeito onde todos queriam ver a própria alma. Azar, pois a única alma que se consegue ver é a do Deus da Montanha, das Nuvens, do Céu e das Florestas. As almas humanas tiveram de olhar para o umbigo e envergonharem-se da sua pequenez e vulgaridade…
Dormitava agitado, talvez pelo frio que não me deixava só, quando fui desperto por gemidos femininos de uma tenda próxima! Primeiro pensei que estava a sonhar, depois que estava num filme, depois, bem, depois não havia dúvidas, um casal de jovens fazia sexo puro e duro, a julgar pelos gemidos descontrolados da rapariga! O que se seguiu fez-me lembrar o campo no verão quente… Um grilo começa a cantar timidamente. Outro junta-se-lhe na cantoria, depois outro e outro, e às tantas é uma sinfonia onde todos os cantares se fundem e confundem num só, até serem interrompidos por qualquer som exterior que desafine (assuste os grilos). Foi mais ou menos o que aconteceu! Um coro geral de gemidos, agora masculinos e femininos, interrompidos pouco depois por sonoras gargalhadas, bocas, piadas! E à noite regressou o silêncio e tranquilidade.

Estava parado na estrada procurando aprisionar no quadrado da máquina fotográfica a alma dos montes em redor, quando o Leo passa por mim, sorridente e com ar de gozo, seguido da Stephanie. Partiram do parque de campismo depois de mim, dizem que andam devagar mas, com o seu ritmo certo, já me ultrapassaram…É verdade que parei nas Sunwapta Falls e eles não…e que paro dezenas de vezes para tirar fotos.
Seguimos praticamente juntos durante toda a manhã, almoçámos no miradouro que nos conduz o olhar até ao glaciar Stutfield, já nas imediações do Columbia Icefield, o maior glaciar da região, localizado na fronteira dos parques de Jasper e Fanff.
Retomei a marcha antes deles. A subida de 5 kms fez-me suar as estopinhas: a estrada iria atingir os 2030 metros no Sunwapta pass, pouco depois do Icefield Center…

A estrada que vai para o inferno
Estou no coração dos glaciares. A neve amontoa-se nos picos dos montes, ora branca como a neve, ora em tons de um azul incandescente, enfeitiçando o olhar. Cá em baixo, tudo parece pequenino, à escala dos brinquedos.
Em poucos kms ao longo da estrada, são 12 os glaciares, todos eles acima dos 3500 metros de altitude. O pai de todos, é o Columbia, com 3750 metros…

Imediações do Icefields Center

Imediações do Icefields Center
Parei no Icefield Center, onde tudo é demasiado caro e turístico… Quando via a exposição do 1º piso, aproxima-se um miúdo com ar de vinte e poucos anos e mete conversa comigo. “Hi Sir, how are you?”. Mal abri a boca a esboçar a resposta convencional e já me bombardeava com perguntas… tinha-me visto na estrada com a bicicleta e queria saber como tinha feito para a transportar para Jasper. Iniciámos assim uma conversa simpática, em que lhe contei de onde vinha e até onde tenciono ir. O olhar dele brilhava de espanto, mas não desarmou. Contou que esteve em Portugal há 2 anos, e fez de bicicleta, com um amigo, Lisboa – Bilbau, ao longo da costa portuguesa e espanhola, com passagem por Santiago de Compostela: cerca de 2000 kms que adorou…quis saber quanto ia gastar, como arranjei o dinheiro, quantos kms, quanto tempo, quais os países por onde passaria, se tinha um site ou blog…
Depois do chocolate quente, que custou os olhos da cara, regressei à estrada. Daí a 40 kms havia um parque de campismo (Rampart Creek) onde contava pernoitar. Se a paisagem anterior é fulminante, especialmente com a presença imponente dos glaciares, a seguinte confunde-nos o olhar e esmaga-nos os sentidos com uma sequência brutal de montes enfiados uns na raiz dos outros: é o Sunwapta pass, a 2030 metros de altitude, que separa os parques de Jasper e Banff. Mas separa também a corrente dos rios – o Bow river vai-me acompanhar por muitos kms e agora pedalo a favor da corrente! Para já são 8 kms de descida, por vezes alucinante e assustadora…não fora os alforges e bateria aqui o meu recorde de velocidade em bicicleta: cerca de 80 kms/h.

Sunwapta pass

Sunwapta pass
Até ao parque de campismo, os kms passavam velozmente, pois o piso ou era plano ou a descer. Há vários miradouros e vistas de parar o sangue nas veias e arrefecer o estômago.
À chegada ao parque, deparo-me de imediato com o Lukas e a Rebecca, o casal de suíços. Um pouco de conversa e ia acampar no lugar contíguo. Mas tinha-me caído uma luva que um casal de alemães encontrou e me veio devolver. No meio da conversa, disseram-me que já tinham dado a volta inteira ao parque e que, dos lugares vagos, o mais bonito era o 37. Despedi-me dos intrigados suíços e rumei ao lugar 37, a 5 metros do rio, cujo acesso era um carreiro estreito delimitado por duas fiadas de seixos. Lavei-me apressadamente nas verdejantes águas geladas e pensei que não iria conseguir voltar a sentir o corpo.

Como sempre, ou quase, choveu durante a noite e o dia amanheceu completamente encoberto, com nuvens e nevoeiro a fundirem-se num só. Apenas por volta das 9 horas consegui arrumar tudo e dirigi-me ao local dos suíços, para me despedir deles. Mas para meu espanto, estava uma invulgar concentração de bicicletas junto à cozinha colectiva, de onde uma ténue onda de calor amenizava a manhã gelada.


Família de ciclistas/aventureiros

Família de ciclistas/aventureiros
A primeira a sair-me ao caminho chama-se Mathieu, tem 4 anos, é francesa e corre em volta da cozinha, com um sorriso estampado no rosto vermelho do frio. Foge do irmão de 6 anos e meio…É uma família francesa de 6 elementos: os pais e 4 filhos, com idades entre os 4 e 16 anos. São de Grenoble, estão a pedalar há 3 meses no Canadá e têm mais 18 meses para chegar ao Ushuaia…a pequena Mathieu vai de atrelado com o pai, mas todos os outros têm de se transportar, pedalando.
Para mim foi o delírio. Aquele exército de bicicletas e ciclistas, no habitual colorido das roupas, alforges, bandeiras, etc. Tiradas as fotos da praxe, saímos todos juntos do parque mas em breve os deixámos para trás, pois fazem entre 30 e 60 kms por dia…Eu prossegui com o Lukas e a Rebecca.
Pouco depois do cruzamento com a estrada 11, o Lukas furou. E aí descobri que tem uns remendos fantásticos. Não é preciso pôr cola nem qualquer tratamento especial. Basta lixar um pouco a superfície da câmara e aplicar o remendo, após extrair a fina película que o protege. Aperta-se bem e já está! E funciona, pelo menos nos 2 dias seguintes, em que andámos juntos, não houve qualquer problema! Fantásticos! Tenho de comprar rapidamente…


A estrada que vai para o inferno
Após o almoço, surgiu a subida esperada e receada: Bow pass, a 2067 metros. Subimos calmamente, esperando pela Rebecca…

Bow pass
Mesmo no cimo surge o desvio para Peyto lake, um lago encravado entre montanhas. A água é de um azul opaco, denso, que me recorda a mistura de sulfato de cobre com cal, com que o meu avô curava a vinha há largas décadas… Infelizmente as nuvens e o nevoeiro iam-se adensando e acabaram mesmo por trazer com eles a chuva.
Até ao parque de campismo de Mosquito Creek pedalei furiosamente por entre bátegas de água gelada.

Peyto lake
Chegado ao parque, dirigi-me directamente para a cozinha colectiva. É um edifício de uns bons 80 metros quadrados, com um grande fogão a lenha ao centro e uma mesa e bancos de cada lado do fogão. Vi-me e desejei-me para conseguir acender uma fogueira, apenas com os panfletos turísticos que tinha dispersos e toros de madeira, molhados e grandes. Mas consegui e durou noite fora…acabámos por montar as tendas no parco espaço livre que ainda existia na cozinha, secar a roupa e calçado encharcados e nem pagámos…

A cortina de nevoeiro que nos rouba a paisagem em redor, foi-se entreabrindo timidamente, aguçando ainda mais a curiosidade sobre que belezas que escondia. Pelas escassas frestas, irrompiam montanhas imponentes debruçadas sobre a estrada. Ia aumentando a certeza de que o sol acabaria por levar a melhor e varrer o frio e o nevoeiro que nos atormentavam pela manhã. Só chegados ao lago Herbert, já nas imediações do Lake Louise, é que comecei a sentir as mãos dentro das luvas…

Mosquito Creek

Lake Louise
Lake Loiuse continua a ser um dos ex-líbris da Icefield Parkway. É um lago cor de esmeralda, encravado entre duas montanhas áridas – uma no topo e outra numa das margens – e uma terceira florestada. No topo por onde se acede, existe um hotel de luxo. Os parques de estacionamento estão sempre cheios e os turistas de todas as nacionalidades são demasiados para o meu gosto. Ainda assim desencantámos um banco afastado do passeio principal, conseguindo algum recato para almoçarmos as nossas habituais sanduíches.

Lake Louise
A recomendação para visitarmos o lago Morina foi ignorada, não por duvidar da beleza mas por ficar a 14 kms, sempre a subir.
Regressámos à estrada, agora pela 1A, relegada para os turistas menos apressados, pois os outros seguem pela 1. A estrada é praticamente sempre a descer, por entre vegetação densa, onde o forte perfume do pinheiro se mistura com outros mais difíceis de identificar. A linha do comboio e o rio Bow vão serpenteando ao lado da estrada, num jogo das escondidas. Até Castle Mountain Village, que deve o nome à enorme formação rochosa cujo topo parece as ameias de um castelo, rolámos em boa velocidade, gozando a bicicleta no silêncio e liberdade da ausência de tráfego.
E em Castle Mountain os nossos caminhos separaram-se: eu ia visitar uns amigos a Calgary, onde passaria um dia. O Lukas e a Rebecca seguiriam para Radium Hot Springs e depois também iriam visitar amigos.
Os kms seguintes, até Banff primeiro e Calgary depois, foram de carro. Voltei a dormir numa cama, jantar a uma mesa com talheres e pratos normais, sopa, sobremesa, vinho, cerveja, aguardente de medronho da minha aldeia. Roupa lavada, seca e dobrada. Conversa, velhas memórias, pois o Manuel, vizinho da mesma aldeia, emigrou para cá há 36 anos.

Banff
Foi um dia e meio bem passado, com o meu anfitrião e família a desfazerem-se em simpatia, atenção, cuidados, como se de um miúdo de 10 anos se tratasse…se calhar não estarão muito longe da verdade!
Mas a estrada esperava por mim e eu desejava regressar ao meu mundo, desligar-me da cidade, dos lugares repetidos, das rotinas familiares. Ansiava por me embrenhar na natureza, nos montes, planícies e vales, nas estradas onde não passo duas vezes, cruzar rios que não mais verei…queria o filme de novo a rodar.

Calgary, em família

A estrada 93, após Castle Mountain, desliza pelo Kootnei National Park, primeiro com uma subida de fazer largar a camisa, depois compensa com a maior, mais longa e mais acentuada descida de que tenho memória. Há um troço, já perto de Radium Hot Springs, com saídas de emergência para carros. O curioso é que essas saídas sobem encosta fora, ao longo de uma centena de metros ou mais, mas com um declive que mais parece uma rampa de lançamento de mísseis… Grande parte do poderoso vale por onde serpenteia a estrada, está totalmente ardido num cenário apocalíptico. Apenas despontam alguns pequenos arbustos verdes no meio dos troncos agonizantes dos pinheiros.
Radium Hot Springs é uma povoação encravada nas falésias da montanha e parece dever a sua existência apenas ao turismo, principalmente termal. Os hotéis, de muito pequena dimensão, sucedem-se dos dois lados da estrada, num colorido estonteante de amores-perfeitos, sardinheiras e múltiplas outras flores de espécies e nomes que desconheço. Parece uma aldeia de bonecas, tudo colorido, arrumado, limpo e em muito pequena escala…
Sucede-lhe Invermere, que parece viver do lago Windermare e Fairmont Hot Springs, mais uma aldeia turística, que junta às “hot springs” os desportos de inverno, pois há estâncias de esqui nas imediações.

À medida que deslizo para sul, ao longo da 93, as montanhas rochosas vão-se tornando mais distantes, mais pequenas, mais suaves, mais arborizadas e mais verdes. Nas imediações da estrada, a paisagem é agora mais urbana, mais agrícola, mais humanizada e habitada.
Até Fort Steel são poucos os momentos ou locais que merecem referência…uns campos de golfe e casas de férias junto aos lagos Windermare e Columbia.
Fort Steel é apresentada como “Heritage Town”. Na realidade é uma povoação museu, que entrou em declínio há quase um século, após o curto período de exploração mineral nas imediações. Como estava um calor dos diabos, aproveitei para descansar e visitar tranquilamente o povoado. Os edifícios estão muito bem preservados, nos locais originais, podendo-se visitar alguns. Podia ser uma “cidade” do faroeste do nosso imaginário, mais ou menos infantil…
Retomei o percurso, deixando a 93 e seguindo um pouco à aventura pela Vardner road. Praticamente não havia trânsito, ouvindo-se apenas o suave deslizar dos pneus da Dampster na estrada. Podia cheirar o aroma dos campos, das forragens e palha, já secos, a serem enfardados em enormes rolos cilíndricos. Cavalos e vacas pastando ao entardecer. E o sol deslizando suavemente no horizonte em busca do repouso merecido…

Fort steel

Fort steel

Fort steel
Os kms iam passando e após Bull River, voltei à 93. Esperava encontrar um parque de campismo que não havia maneira de aparecer. A minha sombra já não cabia na estrada e isso era sinal de que anoiteceria em breve…Em situações destas, ao fim do dia estabeleço um contrato com os meus parceiros de aventura – as pernas e a bicicleta – do género: se não aparecer o sítio ideal até ao kms 100, por exemplo, ficamos pela “melhor oferta” que surja até ao km 110 e só em casos extremos é que passamos daí… como não gosto de quebrar promessas, especialmente com parceiros tão importantes para a minha empresa, já me aconteceu ficar a 2 ou 3 kms de um fantástico parque de campismo…

Horseshoe Lake
Pelas minhas contas deveríamos estar muito perto Jaffray, mas ao km 107 apareceu uma pequena serventia para a esquerda da estrada e não hesitei: ficaríamos por ali…numa pequena clareira, com erva macia e árvores por companhia, pena não haver uma mesa ou ao menos um pedregulho para me sentar…

Hoje, pelas minhas contas, entraria nos EUA. Deveria estar a cerca de 65 kms apenas… Três kms depois de regressar à estrada estava em Jaffray, que anunciava um belo parque de campismo…paciência, tinha poupado os prováveis 20$ da estadia.

Baynes Lake
Depois de tomar o segundo pequeno-almoço, mais uma vez deixei a estrada principal do mapa e segui uma secundária. Parecia ser mais directa e seguramente teria menos trânsito. Só não sabia como seria o relevo, mas decidi arriscar. E de novo me dei bem. Não só devo ter cortado quase 10 kms no caminho, como pude pedalar como gosto: no habitual silêncio e solidão, com os sentidos muito mais despertos.
Ao regressar à 93, a placa indicava Roseville a apenas 18 kms. Por este andar ainda poderia cruzar a fronteira antes de almoço. Mas surgiu adiante o habitual posto de combustível com a respectiva mercearia e decidi que seria o meu último repasto no Canadá…e num simpático e rústico edifício que anunciava gifts, café e antiguidades decidi fazer a minha última visita em solo canadiano. Entrei, tomei uma canecada de café e comprei, para a despedida, uma mini-bandeira do Canadá. Para trás ficavam menos de seis semanas a pedalar, cerca de 4 400 kms percorridos (só 4 100 é que entram nas “estatísticas”, pois os outros foram passeios locais…) à média de 105 kms/ dia, 237 horas a pedalar, em média 5h30 por dia, quase a 18 kms/h, cerca de 900 fotos (outras tantas para o lixo), quase 3000$ gastos (mas cerca de 800 foram “investimento”…).

Os EUA, onde estou há...creio que 3 dias, virão em nova oportunidade...isto toma-me demasiado tempo...

22 comentários:

  1. Caro Idilio
    Pela 2a vez tenho a sorte de entrar no seu blogue exactamente no dia em que nos presenteia com um "update".
    Continue a guiar-nos por onde a sua roda passa.A boleia é extraordinária,especialmente por ser em bom português,directamente da estrada,da visão do sentir.
    Até à próxima

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  2. Escrevias, no penúltimo post: "Olho para as pernas e para o tronco e confirmo que não cresceram de ontem para hoje." Não sou de preciosismos... mas acho devias rever isso!!!... é que daqui parece que cresces em cada km que pedalas, em cada linha que escreves (apesar das queixas sobre o tempo que te tomam)... Pergunto-me como caberás neste pequeno rectângulo, depois dessa epopeia... Respondo-me: dificilmente ;-) *, mantem-te feliz.

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  3. camarada, no sábado o sapateiro do bairro ofereceu-me o pequeno-almoço na Edite, lá lhe contei da tua aventura e ficou abismado, espera que saia na Mística a tua foto no círculo Árctico. e não deixes de te exceder nos sentimentos, que até a tua irmã já falou comigo ao telefone. um abraço forte

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  4. (e ainda tive o Remígio a oferecer-me uma Pedras Salgadas no Canas, como imaginas estás sempre presente nas nossas conversas)

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  5. Idílio, estamos à tua espera http://elmetacinaoposte.blogspot.com/2010/09/comecou-ontem-epoca-201011.html

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  6. É um verdadeiro privilégio ler este blogue.
    Dá mesmo gosto lê-lo!!!...
    Fico maravilhada com as fotos, mas onde me perco mesmo é na leitura. A escrita é simplesmente divinal! É uma escrita correcta, despretensiosa, com um estilo próprio e de muito bom gosto. Gosto muito da forma natural e profunda e do encadear fluido das palavras. Fazem-me mergulhar no texto e viver todos esses sentimentos e emoções. Há passagens que me fazem suspirar, outras que me intimidam e ainda outras que me fazem sorrir, mas em todas existe uma característica comum, uma sensibilidade sem tamanho.
    Há 1001 maneiras de cozinhar bacalhau, mas, certamente, nenhuma tem o condimento que dá a este Bacalhau de Bicicleta com Todos um “sabor” inigualável, o “louro” da escrita irrepreensível!

    Um abraço da colega

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  7. Oi Idilio, eu e a Leonor deliciamo-nos com os teus relatos e as tuas fotos,
    esperamos que continue tudo a correr bem. Deixo-te um site de pessoal dos USA que está a fazer um tour alternativo pelos states http://www.kickstarter.com/projects/1042976249/reclaiming-america-a-journey-into-the-heart-of-mod, pode ser que se cruzem.

    É verdade também gostei dos remendos parecem ser easy/fast. Epá já me ia esquecendo estás a gastar 0,68€ ao km tu vê lá.

    Abraço e Bjs
    Ricardo e Leonor

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  8. A foto do Mosquito Creek está espectacular! mas apetece-me imprimir as duas do "Lago Lua de mel" e pendurar na vertical (90º da direita para a esquerda) ;)

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  9. Bye bye Canada!
    Parab'ens Id'ilio pela aventura, pelas fotos e pela partilha. Boa sorte para o pa'is que segue!

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  10. Palavras para quê? Que delícia tudo com que nos brinda essa estrada para o inferno.

    Entras agora no 'meu' círculo virtuoso. Yellowstone, Seattle....a inveja é coisa dos demónios. :)

    beijinho.
    Susana

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  11. Bem desde já quero dar-lhe os parabéns pela sua coragem e determinação na sua grandiosa aventura.
    Devoro cada palavra sua com um entusiasmo há muito perdido no meu interior. Suas estórias fazem-me regressar aos sonhos de infância.

    Continuação de uma boa viagem

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  12. Caro Idílio,

    tenho acompanhado com emoção a tua longa jornada. As palavras e as imagens fazem o truque e, num saltinho, estou a pedalar contigo.
    Grande abraço e boa sorte

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  13. Como me sinto pequenino...
    Consolo-me ao ver o que pode alcançar quem "vai", e um dia destes...
    Boas (a)venturas.

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  14. Idílio, que fotos fantásticas! Dá para partilhar e gozar a tua liberdade - a forma como escreves faz-me "estar aí". Obrigada! ;-)

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  15. Excelentes descrições. Espero um dia ter a sua coragem para fazer algo semelhante.

    Abraço e boa viagem.

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  16. Idílio, permita tratá-lo assim mesmo não o conhecendo.

    Tomei por acaso conhecimento da sua épica aventura e estou a adorar viajar consigo através dos seus textos e imagens..

    Quem me dera ter a sua coragem para fazer o mesmo.

    Um abraço

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  17. Hoje o David levou a familia, os Brasucas e os Bacalhaus ao Rei...só faltavas tu e a Gi.

    As tuas crónicas continuam a encantar-nos e conjuntamente com as fotos das lindas paisagens que tens percorrido levam-nos contigo na "carriça"..."que bonito, pá! Que bonito!

    Saudades.

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  18. Caro Idílio,

    Estou estupefacto! Pela positiva diga-se, de imediato. A interpretação que faço é que estás a fugir à dura realidade benfiquista neste início de época... Mais estupefacto ainda estares a pedalar nos países de "capitalismo avançado" e mesmo a entrar nas terras de Tio Sam!? Via-te mais a pedalar na grande muralha da china, em países de inspiração revolucionária... Em todo o caso, um grande abraço amigo

    Do ex-RUMM
    Palhares

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  19. E o livro vai se compondo, passo a passo...pé ante pé... sob a grandeza de um céu imenso e de um Homem...Grande!. Beijo.

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  20. hey, granda dia para fazer anos, enquanto fazes 44 eu faço 14. Melhor dia de sempre.
    tenho adorado a tua viagem

    ES UMA PESSOA GRANDE


    BJS Leonor, Margarida e Família

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  21. Un très joyeux Anniversaire pour le héros de la famille :)))) (Estou só um pouquito atrasada) e muitos beijinhos dos teus tios e primos.

    Christine.

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  22. olá Amigo! Já sabes como sou... com os aniversários. Assim, e apesar de atrasados, não quero deixar de te enviar um beijinho muito especial pelo teu 4* aniversário.
    Eu já não estou nos USA- deixei Boston no dia 11, estou novamente em Lisboa e voltei a acompanhar a tua viagem. QUE FOTOS FABULOSAS!!!
    Continua assim. Bjs
    Paula

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