México - Baja Califórnia I
Confesso: mesmo antes de deixar os EU, há um Burguer King que, como todos os outros, não peca pela discrição. Quando o vi, pensei: não é MacDonald mas não deixa de ser a despedida apropriada da terra do Tio Sam. Será o último dos próximos anos… porque não!? E pedi o maior em todas as opções: batatas, bebida e o triplo hambúrguer…
Não sei se foi a pressa de entrar no México, se a descontracção (distracção?) habitual. Certo é que quando dei por mim, já estava rodeado de taxistas a oferecerem transporte…A fronteira dos EU, nem a vi. E a do México, continuava há espera que aparecesse… Na verdade, com a tradição, ao que parece terrível, desta passagem fronteiriça, estava à espera de grande aparato, polícia, segurança, perguntas, revista geral. Mas fui avançando descontraidamente com a bicicleta pela mão e dei por mim na praça exterior à fronteira, caótica de trânsito. Só aí “caí em mim” e tomei consciência de que não podia continuar sem um visto válido para o México…voltei para trás, ante os olhares surpresos com que me cruzava. Pior é que as portas são giratórias e redondas, como as do aeroporto de Lisboa mas muito mais pequenas, e a manobra para passar com a bicicleta e carga é um bocado caricata, num pára, torce, avança dez centímetros, pára, torce mais um pouco e assim sucessivamente, perante expressões ora impacientes, ora divertidas, do cordão de gente que passa em sentido oposto.
No posto de imigracion, o único polícia, que mal falava inglês, tirou um A4 da jaqueta pendurada na cadeira, que mirou cuidadosamente – presumo que para ver qual a relação/requisitos diplomáticos com Portugal – e deu-me os papéis para preencher. Quando reparou no visto do Canadá com data de 19 de Julho, fez um ar de espanto, apontou para a bicla, fora da porta, levantou o polegar e acenou a cabeça como que dizendo: muito bem!
Paguei os quase trezentos pesos no banco ao lado e obtive o visto por 180 dias.
Para entrar em Tijuana, esperei garantidamente 10 minutos na “berma” da estrada. O trânsito nas duas faixas que tinha de cruzar para atingir a da esquerda e entrar na cidade, era aterrador. Veloz, continuo, com passagens e ultrapassagens constantes, em ziguezague e “montanha-russa”, sem qualquer hesitação ou contemplação perante o meu ar infeliz… Estava para ali suspenso, com o olhar parado e um riso de resignação/auto-comiseração nos lábios, sem sequer pensar em como sairia daquela, quando um autocarro muito velho e muito lento, que circulava na faixa da direita, liga o pisca da esquerda e começa a encostar-se à outra faixa!! Atirei-me para a frente dele pedalando a toda a pressa e atravessei as duas faixas com ele a servir-me de tampão e protecção…
Já passei algumas dezenas de fronteiras, mas nenhuma tão vincadamente distinta como esta. Tijuana e San Diego são duas galáxias distintas, claro. As casas, as cores, os cheiros, o ritmo, a ordem e a desordem, o trânsito, os carros. Mas fundamentalmente os olhares...aqui sentem-se os olhares, curiosos, perscrutadores, serenos, directos…
O Passeo de Los Heroes, a rua principal de Tijuana, sábado à tarde, parece-me a entrada perfeita no México. Cada edifício, seu tamanho; cada fachada sua cor e “arquitectura”; cada porta, seu negócio; cada passeio, um magote de gente palradora; cada tienda um mar de cores; cada esquina uma teia de fios pendurados. Os cheiros de comida misturam-se com os dos escapes automóveis; famílias inteiras entram ou saem devagar de cada porta.
Mas apesar deste aparente caos, é seguro andar, passear, cruzar a rua. Os semáforos são respeitados e mesmo onde não os há, o peão é razoavelmente bem tratado…Senti-me rapidamente bem e à vontade nesta rua…
Parei numa loja Oxxo – uma espécie de lojas de conveniência, que estão por todo o lado na parte norte da Baja Califórnia – para comprar o “guia roji”, que um dos leitores do blog me recomendou e me tinham dito vender-se cá. Afinal a rapariga nem fazia ideia do que estava eu a falar…
Saí da loja e pegava na Dempster pela mão – perdão, pelo guiador – quando um jovem de vinte e poucos anos sai apressado pela mesma porta. Cumprimenta-me de mão estendida, apresenta-se e diz-me que há uma livraria quatro quadras adiante, na esquina oposta da estrada, num edifício grande e novo, e que lá têm de certeza…e tinham.
A Religiosidade está presente em todo o lado
A Rosarito que acorda parece o fantasma da vila barulhenta, luminosa, de cores vivas e odores intensos, a fervilhar de pessoas sem pressa e aparentemente sem rumo definido, que tardou a adormecer a noite passada. A barraca da esquina, onde me iniciei nos tacos e na simpatia mexicana, fica desoladora e irreconhecível sem o amontoado de clientes em redor, acotovelando-se, à espera de “encostarem a barriga ao balcão” e escolher os ingredientes da sua eleição para os tacos ou burritos suculentos, que outros já vão saboreando devagar. Como não domino o espanhol, deixo-me levar pelas sugestões dos dois jovens cozinheiros e não me desiludo. Parecem competir um com o outro para ver qual prefiro – ou de qual como mais, o que vai dar no mesmo.
À medida que deixo para trás o centro, vão mudando os negócios que ladeiam a rua principal. Às pequenas lojas coloridas de comes e bebes, roupas, salões de beleza, padarias, mercearias, sucedem-se armazéns de materiais de construção, oficinas auto, e uma estranhamente elevada quantidade de “ferreterias” e “olarias”, com enorme quantidade e variedade de produtos forjados e de peças de decoração em ferro e barro.
À saída da povoação há uma surpreendente concentração de ciclistas, com os habituais trajes vistosos e bicicletas de estrada. Será um passeio ou uma prova local…mais tarde perceberei…
A estrada nº1 segue colada à “autopista” com o mesmo número, e à ilharga do pacífico. As casas são dispersas, desordenadas, pouco atraentes, excepto na localização, umas sobre o mar, outras na crista dos montes, todas com os olhos postos nas águas verdes do pacífico.
Costa em Rosarito
O pequeno pelotão de ciclistas passa por mim numa descida, com um carro da polícia a abrir o trânsito e os carros de apoio atrás. Fizeram uma algazarra, com buzinas e palavras de incentivo ao passarem por mim e retribui…
Vão-se sucedendo os empreendimentos turísticos, bastas vezes de gosto duvidoso, em enormes prédios que se erguem do nada e muitos lotes “en venda” e “for sale”.
A “minha” estrada afasta-se da costa e trepa montes fora. Em Mission, paro no único restaurante, à beira da estrada, e deixo-me levar por um segundo pequeno-almoço tardio. As duas costeletas de porco bem condimentadas e os ovos mexidos, souberam-me a “galos de noz”, mas verdadeiramente o que me deixou a lamber o prato foi a tortilha de batata…
Restaurante de beira-da-estrada
A verdadeira subida só agora ia ter início…a estrada tem mau piso, praticamente sem bermas, cheia de pequenas pedras e seixos soltos e, como é típico das estradas de montanha, com muitas curvas. Felizmente o trânsito é pouco, ainda que excessivamente apressado… Pouco depois de começar a subir, um “tic-tic” regular na roda de trás. Está-se mesmo a adivinhar: mais um raio partido. Estava a cerca de 40 kms de Ensenada e não me apetecia substituir o raio do raio. Limitei-me a afrouxar a tensão nos adjacentes, seguindo as instruções do meu irmão noutras aventuras ciclisticas.
Finda a subida, a estrada segue em planalto irregular, por montes de “pequena estatura”, áridos e castanhos. Alguns ranchos estão à venda e até oferecem facilidade de pagamento ou venda parcial…Poucos carros se cruzam comigo mas já recebi mais cumprimentos hoje do que em todos os dias que passei nos EU.
Precisava de encontrar uma oficina para substituir o raio, e à entrada de Ensenada, do outro lado da estrada, estava um tipo de bicicleta à espera de uma oportunidade para poder atravessar. Esperei por ele e perguntei-lhe se havia alguma oficina na cidade. Afinal era grego, está a trabalhar aqui por dois anos, habla un pouquito espanhol e pouco mais inglês e não sabia de nenhuma oficina…
Na cidade passava um miúdo de bicicleta e fiz-lhe a mesma pergunta. Depois de pensar um pouco disse-me que sim e conduziu-me até ela, não sem antes, enquanto pedalávamos lado a lado, me ter dirigido, orgulhoso, algumas palavras em inglês, pois estava a aprender inglês na escola…Chegados à oficina não resisti a dar-lhe 20 pesos e fiquei grato pelo ar de surpresa e satisfação dele.
A oficina era assustadora. Bicicletas velhas e aos bocados, amontoadas em metade da pequena sala. Peças velhas, onde predominavam selins, num canto, meia dúzia de pneus e aros pendurados no tecto e pouco mais. O Homem atrás do balcão aparentavam cerca de 60 anos, tinha um olhar sereno e inteligente e, reparei depois, um blusão com o emblema da federação mexicana de ciclismo gravado. Quando lhe disse, meio a medo face ao ar da loja, qual o problema e se podia repará-lo, respondeu-me com aquela voz calma e segura (ou orgulhosa?) que “sim, naturalmente”.
A bicicleta, com a tralha toda que trás em cima, quase não cabia na exígua e confusa sala…comecei a tirar os alforges e já outro tipo, também entradote, que estava na oficina, começava a desapertar a roda, dizendo que não era preciso eu tirar tudo…eu sei que esta conversa é uma seca para quem ler, mas é que nesta oficina era tudo ao contrário das lojas/oficinas do “nosso ocidente”…
Saca a roda, senta-se na cadeira que estava no meio da oficina, pega em duas ou três chaves de fendas e está a desmontar o pneu…e eu a olhar aparvalhado, à espera que, com aquelas chaves, me rompesse a câmara de ar…mas o ar despachado dele tranquilizaram-me um pouco.
Levanta-se, vai buscar as ferramentas necessárias e o molho dos raios e, entretanto, senta-se na cadeira o homem do blusão da federação de ciclismo. Começa por me dizer que o eixo e os rolamentos precisam de massa…”estão completamente secos” – e é verdade. Desmonta a cassete e eu a ver as peças a espalharem-se…enquanto enche a caixa do eixo e dos rolamentos de massa, começamos a conversar. Vai desfiando a sua indignação com o governo. Com as políticas que tiram o pão aos pobres do México, que semeiam desempregados e crime, que está a matar todos os pequenos negócios com que sobreviviam milhões de mexicanos. Chegou mesmo, na sua voz tranquila, a dizer que as pessoas precisam de comer, e se a comida vem de negócios de álcool, de tabaco, ou de droga, pouco importa a quem tem fome.
E enquanto falávamos (eu era mais ouvir), fui espreitando os diplomas e fotografias por trás do balcão. Foi fácil identificar o seu passado ligado ao ciclismo, com várias homenagens e “diplomas”. Procurei mudar o tema de conversa, e foi vê-lo, na mesma voz mas com outro olhar, a falar dele e dos dois (já eram dois) outros compinchas que assistiam à reparação da bicicleta, enquanto ciclistas “profissionais”, há “muitos, muitos anos, aqui no clube mais antigo do México”. Mas principalmente de um dos filhos – José Manuel Ramirez – que corre nos Estados Unidos e de quem tem várias fotos na parede…
Xepe Garcia - ex-ciclista, pai de ciclista, amante do ciclismo
E como nesta oficina há pouca diversidade de material, mas muito engenho e verdadeira alma e amor às bicicletas e ao ciclismo, a rosca do raio teve de ser aumentada para o raio “dar aperto”. Quis saber qual a minha alimentação e se não tomava vitaminas; surpreendeu-se com os oito mil kms percorridos; espantou-se quando lhe disse que fazia uma média de 100 por dia; e recomendou-me que nunca me deixasse fatigar em demasia, para descansar um dia ou dois de vez em quando… despedimo-nos com um abraço de entendimento e respeito mútuo. Já eu montava a Dempster quando veio à porta e me disse que na Baja Califórnia, até La Paz, era conhecido como Xepe Garcia. Se eu precisasse de alguma coisa, havia muita gente que o conhecia… e aquele raio partido, temporariamente fonte de aborrecimento e preocupação, foi o melhor momento do dia, dos últimos dias…
Encostei a Dempster na esquina de num ciber-café e ia para entrar, quando o cozinheiro que preparava acepipes de marisco numa banca de 2 m2, na mesma esquina mas na parede oposta, me disse para por a bicicleta junto dele, “por segurança”. Agradeci-lhe e passei meia-hora na net. Ao sair é que reparei bem na banca onde o chef manejava a faca com destreza, abrindo ostras, cortando mexilhões, camarões e outros mariscos, compondo tudo com abacate, sumo de lima e mais não sei quantos ingredientes, de onde emergiam tacos, cocktails ou ceviche, num colorido capaz de despertar fome num urso em profunda hibernação. E ali petisquei deliciosos tacos e um cocktail de marisco, frescos e inigualáveis na pureza daquele encontro feliz do mar profundo e misterioso e aquele homem roliço, atarracado, com luvas de silicone e máscara, em dois metros quadrados de uma esquina feia, suja, barulhenta e poluída de Ensenada.
Queria deixar Ensenada mas ainda tinha um problema para resolver: o telefone. Tenho de arranjar uma solução telefónica sem ser o rooming, que é muito caro. Fui espreitando ao longo da rua e numa das inúmeras praças comerciais, lá estava uma loja de comunicações. Expus o que pretendia às três miúdas sorridentes e de ar distraído. No fim disseram-me que não era possível eu comprar um cartão e utilizá-lo no meu telefone desbloqueado. Os cartões só funcionavam em telefones da própria rede, comprados no local… quando perguntei o preço do mais barato, uma das moças disse que o problema seguinte é que o telefone só podia ser activado com uma série de dados pessoais e, sendo eu turista, não podia registar-me. Conclusão: não posso ter um telemóvel mexicano…Já suspeitava disto. Já tinha ouvido algo neste sentido, ainda em Portugal.
Mas não saí de Ensenada sem um telefone de uma rede móvel mexicana completamente operacional…bastou encontrar mais um jovem simpático e generoso.
E como o dia estava mesmo a correr bem, decidi pernoitar no Motel “El Camino”, onde a dona, uma senhora idosa mas viva e de uma simpatia inigualável, me convenceu a desembolsar quase 20€. É curioso porque senti-me bem ao gastar o (bastante – para o meu orçamento) dinheiro que hoje desembolsei. E garanto que não foi um sentimento de “caridade”. Foi sentir que cada uma daquelas “transacção monetária” era muito mais que isso. Era profissionalismo, dedicação empenhada, mas era principalmente dignidade, humanidade, respeito, luta, partilhar uma “certa justiça”.
San Vicente
Depois de metade da jornada ter sido praticamente sempre a subir, ainda que com declives moderados, deslizei pelas suaves colinas até mergulhar no entardecer. Para trás tinham ficado surpreendentes vinhedos e olivais verdejantes, ordenados, extensos, modernos, sem deverem nada aos irmãos californianos.
Pensava pernoitar em Colnett quando surge na beira da estrada, na aldeola de Alfredo Bonfil, uma placa sinalizando campismo e parque de merendas. Não se percebia se era “já ali”, se perto ou longe. Avancei perscrutando o diminuto povoado que se estendia ao lado da estrada, sem vislumbrar qualquer parecença com um parque. À saída da minúscula aldeia, perguntei a um habitante se havia ali um parque de campismo mas ele parecia não perceber o que era isso de campismo…sugerindo-me que só se fosse em Colnett. Eu tentava explicar que era um sítio para dormir, montar uma “tienda”. E à palavra mágica “tienda”, ele disse que havia uma “tienda” ali, sim, e apontou para o interior da aldeia. Percebi logo a confusão da “tienda” em espanhol... Ainda assim decidi ir ver se descobria algo parecido com um parque de campismo. E afinal havia mesmo um decadente “complexo desportivo e recreativo” na aldeia, com um campo de jogos, um parque de merendas, parque infantil e um espaço para campismo, tudo abandonado e degradado, mas suportável…
Montava a tenda quando apareceu o Manuel, um quarentão já um pouco bebido mas muito simpático. Ofereceu-me a casa dele para dormir – que recusei por já ter a tenda montada – e acabei, noite fora, com ele, o José e o António a beber cervejas de litro por garrafas de coca-cola, cortadas ao meio, a servirem de copo. O Daniel, de 47 anos, mergulha desde os 17 e vive da pesca submarina. Só pesca de noite e, quando lhe perguntei porquê, riu-se da minha ingenuidade… porque pesca espécies proibidas, que dão mais dinheiro… não parava de dizer que nos últimos 30 anos viveu 20 debaixo de água e 10 à superfície e que é um recorde alguém fazer pesca submarina durante 30 anos…Creio que é o único não borracho…
A Baixa Califórnia por onde vou passando tem contrastes enormes… tão depressa percorro quilómetros de estrada numa paisagem seca, árida, inóspita, semeada de pedregulhos e uma vegetação rasteira e tisnada, como surgem vastos hectares de explorações agrícolas, com estufas que aparentam modernidade, vinhedos mecanizados, olivais, morangais, tomatais e cebolais, numa azáfama de homens e máquinas que estava longe de imaginar. Fiquei incrédulo perante a quantidade de sacos de cebolas que se erguiam de um cebolal…Jamais imaginei possível tal produtividade.
Vinhedos na Baixa Califórnia
...E cebolas
Em Punta Colonet, parei numa das coloridas “vendas”. Quando pagava o litro de leite e uma fabulosa tarte de queijo de fabrico local, Don Ernesto, um septuagenário que também vinha às compras, dirige-se-me num inglês perfeito. Apresentou-se e quis saber da minha viagem. Depois de lhe fazer o relato standard, contou-me que há cerca de 20 anos, conheceu ali, em Punta Colonet, um canadiano que estava a fazer a mesma viagem e a escrever um livro. Ficou em casa dele e prometeu enviar-lhe um exemplar do livro, que nunca recebeu. Pensa muitas vezes se o homem terá concluído a viagem ou morrido, pois nessa altura “havia muita revolução em toda a América Latina, era muito perigoso viajar…” Disse-me onde morava e franqueou-me enfaticamente a casa, agora, no regresso, ou se alguma vez voltasse a estas bandas…que pena serem 8h da manhã…
À medida que me aproximo de San Quintin e da costa, vão aumentando as tascas de beira de estrada que anunciam pescado e marisco… os tacos deixam de ser de “cabeza”, de “guizado”, ou de “tripa” e passam a ser de amêijoa, camarão, ostras, ouriços ou lagosta. E mesmo sem fome, estes nomes, as cores vivas das tascas, os anúncios rudimentares, mas vistos, e o olhar simpático e digno por trás do balcão, por vezes da família toda, exercem um apelo a que não me apetece resistir. E vou parando e comendo um taco de “cabeza” aqui, outro de “guizado” acolá, um cocktail de amêijoa com uma cerveja ilegal, outro misto com vinho local, enquanto repito vezes sem conta de onde venho, para onde vou, quantos kms já fiz, quanto dinheiro vou gastar – uma pergunta deveras embaraçosa…
Ameijoas, ostras e outros bichos marinhos...deliciosos
O vento sopra favoravelmente e a planície transforma-se em descida constante. Os kms passam a correr e, se não tenho cuidado, ainda chego hoje ao Ushuaia e amanhã tenho de voltar ao trabalho… Que pesadelo! Travo bruscamente e certifico-me de que ainda não são 2h e já percorri quase 90 kms…
Poderia chegar facilmente a Rosário e começar amanhã pela manhã a travessia do deserto, mas à minha direita, mesmo junto à estrada, há um lago com patos e um fontenário a jorrar água, no centro de um jardim com um grande relvado, pinheiros, palmeiras e outras árvores, bancos e mesas para pic-nic com toldos, e até uma casa de banho com chuveiro…parece ser um parque público mas tem dois jardineiros a regarem, aparar ervas e plantas. É capaz de ser o jardim de algum latifundiário, dono das imensas estufas de tomate que se avistam em todo o horizonte. Ainda assim paro e pergunto ao Ernesto, o jardineiro jovem, se se pode pernoitar ali. Com um enorme sorriso diz-me que o local é público – “de todos”, reforça – e que posso montar a carpa onde quiser, tem casas de banho e mesmo bar-b-que para os grelhados – e vai apontando orgulhosamente, e sempre a sorrir, numa e noutra direcção.
Transporte de trabalhadores no vale de San Quintin...
Estava um sol que parecia incendiar o próprio vento…fui comprar umas cervejas frescas à bomba de gasolina, a 100 metros, e passei a tarde com o Fidel, um assalariado agrícola que trabalha 9 horas por dia, sete dias por semana, por 100 pesos diários, nas estufas de Los Pinos, como centenas de outros que vêm de todo o vale de Quintin, em autocarros coloridos. Hoje trabalhou à tarefa e conseguiu terminar cedo, repousando no jardim, com uma cerveja na mão e um olhar distante e fatigado…
Quando lhe mostrei o mapa do México, disse-me que não sabia ler, pois nunca tinha ido à escola. Quando lhe disse que tinha frequentado a universidade, afirmou que podia falar inglês e ele não. Quando lhe disse a idade, concluiu que tinha menos 6 anos mas parecia ser muito mais velho que eu. Quando tirei o telemóvel do bolso, disse ter perdido o dele, que lhe tinha custado duas semanas de salário. Quando se levantou para ir à casa de banho, pediu-me licença. Quando provou a primeira Tecate que lhe ofereci, reteve-a na boca, lambeu os lábios e disse-me que era muito melhor que a cerveja que ele bebia. Quando lhe perguntei de onde era, disse-me que nasceu a dois dias e duas noites de viagem dali, em Guerrero; quando lhe perguntei se a praia próxima era bonita, respondeu que não sabia, nunca lá tinha ido porque tinha medo da água; quando lhe perguntei onde morava, acenou para adiante e disse que morava numa casa de renda, porque os terrenos eram muito caros e ele não era dali… Quando se foi embora, perguntou-me se amanhã ainda lá me “quedava”, porque gostava que os filhos me conhecessem…
O interior é menos colorido...
Hoje iria deixar a zona habitada, “desenvolvida” e “populosa” da Baja Califórnia e entrar no deserto. O efeito psicológico dos vários avisos que me fizeram sobre a total ausência de aldeias, casas e gentes, e consequentemente, comida ou água, levou-me a querer comprar abastecimentos suficientes para chegar à Argentina. Pela primeira vez, a comida e bebida não couberam nos respectivos compartimentos e tiveram de ir em cima da demais bagagem, amarrados com esticadores…
Pouco depois de deixar Los Pinos ficou também para trás Santa Maria, uma pequena aldeia junto à estrada e, mais adiante, Costa Rica, ausente do mapa.
Santa Maria
A estrada segue para sul, paralela ao mar, que se avista a menos de um quilómetro. Até Rosário, a última povoação antes de entrar no deserto, ainda tive de transpor uns montes antipáticos, que desci ensanduichado entre um ruidoso camião tresandando a gasóleo e borracha queimada, e umas pick-ups que, desta vez, não tiveram coragem de transpor o traço contínuo.
Em Rosário decidi almoçar no restaurante local, mais para fugir do calor e poupar nos mantimentos do que pela atractividade da ementa – dourada para turistas. O interior estava praticamente todo decorado com fotos e posters de carros, motas e pilotos da baja da Baja Califórnia – uma prova de todo-o-terreno que percorre toda a península. Na mesa ao lado almoçavam três canadianos de Vancouver, que rumavam a sul, em férias…
Com Rosário fica para trás a última exploração agrícola e, com ela, os últimos tons de verde que veria em vários dias.
O deserto anuncia-se...após Rosario
O deserto impõe-se sem meiguice. A estrada sobe continuamente em curvas e contracurvas constantes, pelas encostas das colinas que se sucedem, cada uma mais elevada que a anterior. Há muito que a linha do horizonte tem apenas duas cores: o céu azul pálido; e a terra castanho torrado. A vegetação é rala, rasteira, mirrada em espetos queimados pelo sol. Aqui e ali começam a destacar-se alguns cactos gordos, ramificados em U, erguidos ao céu. O silêncio absoluto é, de quando em vez, quebrado violentamente pelo som dos motores dos camiões, gritando continuamente de esforço nas subidas e soltando profundos gemidos espaçados nas descidas. O vento é constante e parece não ter direcção definida. Sinto-o quente na cara e violento nas pernas. Paro a meio de uma subida que não termina, em busca de 20 centímetros quadrados de sombra nos rochedos da beira da estrada, para esconder a cara enquanto sorvo lentos goles de água. Os carros, quase todos camiões, que se cruzam comigo, acenam, fazem sinais de luzes, estendem a mão fora da janela com o polegar esticado ou com o médio e o indicador em V. Só posso responder com um aceno de cabeça, pois necessito da força dos braços no guiador.
Este deserto só tem uma cor - seca
Passaram quarenta quilómetros desde Rosário… pareço ter atingido um planalto e começo a pensar em acampar. Para onde quer olhe, a paisagem é toda igual. Não há estrada ou carreiro, largo ou retiro plano, onde erguer a tenda. No mapa também não… só me resta continuar a pedalar. De repente surge uma placa milagrosa, e inesperada, na beira da estrada, com uma faca e um garfo brancos em fundo azul. E não era alucinação, era mesmo real…no topo da subida, à esquerda da estrada, por trás de um cercado de paus secos e uma ou outra árvore mirrada, surge “el Sacrifício de Rosário” – restaurante. De uma assentada esperava arranjava “cama e mesa”. Parei e o Daniel, miúdo de cinco anos com ar traquina e olhar vivo e inteligente, assistia escarrapachado aos desenhados animados. Perguntei-lhe pela mãe e saiu disparado, regressando acompanhado da mãe e irmã mais velha.
El Sacrificio de Rosario
Pedi algo fresco para beber e mandou-me servir da arca frigorífica. Perguntei se podia acampar por perto e levou-me ao quintal, sugerindo-me o local mais aprazível, debaixo da árvore, junto ao jardim de cactos, onde ergui a tenda.
Fiquei a sorver a água gelada, depois da coca-cola semi-congelada, na esplanada. As abelhas atropelavam-se em torno das gotas de água que vertiam da torneira do lavatório, adiante. O sol parecia um balão grande, esvaziando-se lentamente, perfurado pelos picos dos cactos onde aterrou descuidado. O Daniel subia à árvore e descia para a cama de rede, exibindo a sua destreza e força quando descobriu a lente da câmara fotográfica, eu sentia-me em perfeito equilíbrio entre o vazio do deserto e o aconchego daquele microcosmos familiar.
Daniel
O Juan chegou já anoitecia. Silencioso, seco, de baixa estatura, olhos pequenos mas vivos, bigode fino e chapéu na cabeça. Sorriu-me, cumprimentámo-nos e pouco mais. Era de poucas palavras…só quando falámos de futebol articulou algumas frases…
Os clientes eram exclusivamente camionistas. Iam chegando, paravam o camião, invariavelmente sem desligar o motor, e tomavam café ou jantavam em silêncio. A Merlin Monroe, de saia branca esvoaçando e olhar provocador, observava na penumbra em que ia mergulhando o espaço, apenas iluminado pelo candeeiro a gás. A novela, na televisão a cores, despertava o entusiasmo da filha adolescente, irritada com os constantes pedidos de ajuda da mãe e as travessuras do vivaço Daniel. No canto mais obscuro da sala, Juan deixou a sua sombra e trouxe de volta a luz eléctrica do gerado, movido pelo ruidoso motor a gasóleo.
A noite chegou cedo e passei mais tempo na casa de banho, felizmente a poucos metros da minha tenda, do que na cama. Definitivamente o almoço “fino” em Rosário, ou, mais provavelmente, o Ice-tea com gelo suspeito, deram-me cabo da mecânica! A ajudar à festa, os camionistas continuavam a chegar e a partir nos seus camiões de motores ruidosos.
Contrariamente ao que o Juan me disse ontem, a estrada parecia um carrossel endiabrado, com mais subidas que descidas e vento forte. Pouco depois de El Sacrifício de Rosario, surge o rancho El Descanso. O anúncio gasto e envelhecido, anunciava comida e dormida. Do alto do cacto mais alto, uma águia imóvel soltava pios lamentosos, o sol ia subindo rapidamente e estendendo raios impiedosos.
...E o deserto aqui tão perto
O deserto vai crescendo, não física, mas emocionalmente, com os quilómetros que me percorrem as pernas e a mente. Sinto-o cada vez mais forte. Sinto-me cada vez mais parte dele, enredado nele, prisioneiro dele. Só há uma estrada – esta. Só há uma paisagem – esta. Só há um som – este silêncio. Só há duas cores – azul e morte. Só há um sol – este a que nada escapa. Só há uns goles de água – os que trago na bagagem. Só há um coração a bater – o meu. Não, há os camiões que passam velozes e ruidosos e os motoristas que invariavelmente me acenam e cumprimentam em Vs…
Há alguns pontos no mapa que não existem na terra. Mas há também pontos na terra, ausentes do mapa. Pontos que surgem na latitude e longitude mais improvável, no vazio absoluto, anunciando “loncheria”, “taqueria”, ou “cafe”. Normalmente têm bebidas e até servem comida. Por vezes até têm “banhos”. Surgem do vazio e ficam no vazio e o que cobram não é, seguramente, mais que gotas de água – ou oxigénio – para famílias inteiras que parecem atropelar-se para servir uma única bebida, um café ou uma omeleta “ranchera”.
"loncheria" surgida do nada...
O deserto não é um deserto…o deserto são vários desertos – ou sou eu que, perdendo-lhe o medo – já consigo atentar e destrinçar as suas pequenas variantes. Os cactos já não são apenas em U e em tons de castanho-verde. Também os há com um único tronco em tons de vermelho e com uma densa e muito certinha carapaça espinhosa. E outros em cones longos, que estreitam da base para o topo, onde se ramificam em dois ou três galhos pequenos…do tronco parece brotar pequenos tufos esverdeados… e outros ainda compostos por vários troncos, que parecem emergir duma raiz única. Mas também o solo mudou radicalmente. Agora a terra está povoada de enormes pedregulhos de formas arredondadas e tom avermelhado. Alguns formam pequenos amontoados em formas fantasmagóricas e equilíbrio precário.
Cataviña
Em Calaviña, o deserto atinge o seu expoente: diversidade, densidade, cor, formas, texturas. Deixa de repelir, de assustar, de intimidar para cativar, atrair. Resplandece diversidade na adversidade; vida na morte; mistério na simplicidade das formas primárias. E o sol, impiedoso, continua a projectar-se sobre as vidas inertes…a minha camisola deixou de ser vermelha e negra para brilhar do branco-sal que se vai acumulando.
Pregar no deserto
Apesar de, ou por, o “Desierto Inn Hotel” ter um ar aprazível, moderno e confortável, decido prosseguir. Na verdade atrai-me irresistivelmente acampar neste deserto… mas este deserto já é outro. A densidade e diversidade atingida em Calaviña, extinguiu-se rapidamente. Agora o vasto planalto é plano, liso, por vezes parece mesmo um suave areal…mas a suavidade é só aparência…
É preciso um local acessível a partir da estrada. Como não há estrada nem carreiro que me leve da estrada para o “meio do deserto”, terei de acampar perto da estrada. El Pedregoso parece dever o nome a uma inesperada montanha de pedras de pequena dimensão que se estende perpendicularmente à estrada. Nas imediações, paralela à estrada, há uns metros de terra suave, tipo leito de rio, plana e de fácil acesso. O sol ainda vai alto, mas o cansaço e a vontade de gozar o entardecer e anoitecer ali, no silêncio do vazio cósmico, decidiram. Pena foi o jantar… o arroz pré-cozido, afinal era branco, e o fiambre que lhe misturei não lhe deu sabor. A embalagem, de trezentas gramas, era maior que a anterior, de arroz-de-tomate, e não coube no tacho, que foi transbordando. A água estava quente e um litro e meio tinha de se manter intocável para amanhã…não se sabe com que divergências o mapa e a realidade me presentearão…ainda temo o deserto…
El Pedregoso
Já há muito que o meu ciclo diário é o solar… recolho à tenda pouco depois de escurecer e saio da tenda pouco depois de clarear. Pela informação que vi afixada um destes dias num pontão, são cerca de 12 horas desde o nascer ao pôr-do-sol…
O sol ergue-se rapidamente por detrás da pequena colina distante e mais depressa ainda aquece o céu e a terra. Estranho…ia apostar que ontem, apesar do escuro, tinha enchido bem o colchão mas, ao acordar, está semi-vazio…
Começo a pedalar com o compromisso de longa data: os primeiros dez kms são de aquecimento. Não há vento e a estrada é plana. Deslizo velozmente e sem esforço. O mais importante é que assim não transpiro, logo não consumo líquidos, não desidrato e não bebo água, mantendo a reserva intacta! Mas vinte kms depois surge uma “lancheria”. Paro e a água fresca é deliciosa. O café com “oevos rancheros”, estavam horríveis – ou talvez tenha perdido o apetite, ao tomar consciência do pedido que fiz: ovos, com o recente desarranjo intestinal… e ainda por cima rancheros, com muita cebola, pimentos e tomate, tudo guisado (ou frito…). Para compensar, a conversa foi agradável e útil. Os três camionistas que tomavam café disseram-me que havia mais ciclistas na estrada, à minha frente dois ou três dias. Um casal mais adiantado e dois homens mais próximos. Ao sugerir que talvez ainda os alcançasse um dia destes, ofereceram-se de imediato para me dar bolei e levarem-me até eles… Quiseram saber quanto tempo tinha estudado espanhol para a viagem e quando disse que não falava espanhol mas uma mistura de português com pronuncia espanhola, fizeram ar surpreendido e disseram que ainda não tinha dito nenhum disparate…Quando me perguntaram quanto dinheiro ia gastar em toda a viagem e, envergonhado, disse cerca de dez mil dólares (escondendo que será bem mais), olharam-se e falaram entre eles algo que não percebi…imagino que tenham ficado chocados e a pensar no que faria com tanto dinheiro…
No ramal da estrada para a Baia de Todos os Santos existe uma “loncheria” com seis metros quadrados e três televisões. Paguei quinze pesos por um púcaro de café frio… Os preços praticados por vezes parecem excessivos… mas aqui a economia não é de mercado, é apenas de subsistência – ou de sobrevivência – para quem está, mais do que para quem passa…
Gasolineira
Um clic metálico na bicicleta é sempre um som desagradável. Mas é mesmo muito desagradável no deserto da Baixa Califórnia…a meio da tarde, esse clic pareceu uma martelada na cabeça. O melhor que podia esperar era um raio partido – o pior, não quis pensar. Ainda continuei a pedalar, negando assim a realidade e agarrando-me á esperança de um qualquer objecto metálico pisado. Mas acabei por parar e fazer o diagnóstico – não tinha um mas dois raios partidos, ambos na roda de trás, claro. Continuei a pedalar, ainda com mais cuidado que o habitual, procurando evitar oscilações e buracos, e quase parando nas lombas da estrada. Apesar de ter comigo raios suplentes, estou a oitenta quilómetros de Guerreiro Negro e é possível que tenha uma oficina de bicicletas. Arrisco ir até lá…amanhã.
Toc-toc-toc
Era suposto haver Santo Dominguito, no ramal que vai para Santa Rosalilita (não é erro, um diminutivo já não chega…), mas não há nem uma casa. Se Rosarito, a quinze quilómetros, também não existir, as coisas começam a correr mal, pois já tenho menos de 1,5 litros de água – e de Rosarito não dá para passar. Pedalo devagar para poupar água e evitar a sede. Há umas subidas e a tarde foi de vento semi-frontal…entardece e a minha sombra já não cabe na estrada. Mais uma subida e, no topo, avisto Rosarito a uma larga meia-dúzia de quilómetros. Exulto num berro de incontida satisfação e descompressão. Dou vivas a Rosarito e um velhote empoleirado numa colina, à beira da estrada, responde-me algo que não entendo, também aos gritos. Ponho a garrafa à boca e sorvo até à última gota!
Mauricio é o nome do único restaurante da povoação. Pergunto se posso acampar por perto e trazem-me às traseiras, a um pequeno terreiro com árvores, frondosas para estas latitudes, junto a umas mesas e cadeiras de plástico, que devem ter estado limpas quando instaladas, nas imediações do curral das cabras e galinhas. Monto a tenda na companhia de cães e gatos com ar surpreendido. Quando passo a mão pelas costas, obtenho a prova de que pedalo no deserto há três dias sem tomar banho…
O banho de água fria aqueceu-me o corpo, refrescou-me a cabeça e a alma, agitou-me o sangue, fez-me apreciar a dádiva de um duche de água fria no deserto, relembrar os quantos milhões que nem água têm para beber e os menos milhões que não fazem puto ideia de que raio estou a falar…
É tudo uma questão de escala e aqui é outra a escala.
Sul e sol
Afinal houve azar no acampamento de ontem, em El Pedregoso. Escapou-me algum pico malandro, daqueles da cor do deserto, finos como um raio de sol e rijos como aço temperado… e perfurou-me o colchão de ar…Agora passo a acordar com as costas mais direitas – ou então faço turnos e encho-o a meio da noite.
Sou mesmo distraído…voltei a pedir oevos – agora com chorizo – para o pequeno almoço…mas estavam muito bons, acompanhados com feijão e massa de cotovelo, da mesma que acompanhou o peixe frito do jantar.
Já tomei, literalmente, mais refeições “fora” numa semana de México, do que em três meses no Canadá e EU… Na verdade sinto não só atracção pelos paladares, pelos ambientes, pelas pessoas, pelo interior das “taquerias” e “loncherias”, pelo que está a passar na televisão, pelas conversas potenciais com motoristas sempre presentes, como sinto um apelo irresistível em consumir localmente e assim contribuir um pouco para a preservação/valoração deste “ecossistema”.
A estrada está em obras e quando não está, tem vários troços de piso em estado miserável – ainda não é o rípio da América do Sul mas vai servindo de estágio... Cada solavanco da bicicleta é uma pancada no estômago… questiono a decisão de não ter mudado os raios, até porque não sei se há loja de bicicletas em Guerrero Negro. Conduzo com “o coração nas mãos”, em linguagem materna. Aos vinte quilómetros, o diagnóstico mantém-se. Aos trinta também – apenas dois raios partidos.
Em Jesus Maria, paro na taqueria. Na mesa ao lado estão três homens a comer. Um tem olhar vivo e verbo fácil e começamos a falar sobre a estória do costume: de onde sou, de onde venho, para onde vou, quanto tempo. E vai-se surpreendendo com um ar muito expressivo e falando com os outros. De repente pergunta-me se não tenho medo e quando digo que não, ou melhor, quando lhe dou a resposta do Nelson Mandela, citando o autor – todos os Homens têm medo. Simplesmente os mais fortes e corajosos controlam o medo, enquanto os fracos e medrosos, são controlados pelo medo – salta da cadeira, parece que me vai abraçar mas pára bruscamente e, virando-se para os outros, diz-lhes: “Querem ouvir a resposta dele sobre os mortos!?” E virando-se para mim, diz: “Puta madressita, estão dizendo que lá do cimo daquela montanha adiante – e aponta pela janela – todas as noites uns mortos se erguem e andam por aí a fazer barulho! Puta madressita, em 2011, quase, ainda há pessoas que crêem nisso. Tu lo crês!? E desatámo-nos a rir…”
Afinal parece que há mesmo uma bicicleteria em Guerrero Negro, confirma um moço que chega entretanto.
Guerrero Negro
Guerrero Negro é mesmo um povoado feio…casebres ao longo da estrada de asfalto e casebres em pequenas ruas de pó/areia perpendiculares. Chego à bicicleteria e deparo-me apenas com uma senhora idosa sentada na cadeira ao lado do balcão. Não era propriamente a interlocutora que esperava…A loja é paupérrima e nem raios tem. O empregado/mecânico é suposto voltar às 4h. Como tenho raios, decido esperar na povoação e voltar mais tarde…
Pedalo devagar pela rua principal. O olhar e o aceno de uma miúda, por trás do balcão de uma taqueria, incendeiam-me a alma e obrigam-me a parar. Não sei bem o que vi, mas foi um olhar desumano…dei meia volta devagar e voltei. Nem sequer tinha pensado almoçar mas tinha de parar ali…A Alona tem onze anos, anda no quinto ano e gosta muito da escola. Está com o irmão de 5 anos a ajudar a mãe, Catalina, na taqueria Carolina – o nome da filha mais nova, de dois anos. A Alona antecipava-se à mãe nas respostas sobre tudo: que tacos tinha, quais os preços, se havia muitos turistas ou poucos, se este vento era comum. E quando perguntei se não havia nenhuma bebida para acompanhar, perguntou o que queria e saiu disparada, com uma nota que retirou da caixa, comprar a bebida ao café do lado. Quando pedi a conta, nem preciso dizer quem respondeu e fez o troco… nunca vi um olhar daqueles…não eram tanto os olhos, grandes, entre o verde e o mel, na tez morena e cabelo escuro, mas o olhar…parecia ver para alem do exterior…
Afinal o mecânico foi passar o fim-de-semana prolongado aos EU… Só volta na terça-feira. Já me preparava para pôr as mãos-à-obra e mudar os raios, quando um tipo se acerca da oficina e perguntou se precisava de algo. Afinal era um ex-empregado da bicicleteria e estava interessado num biscate… mudou os raios, deixou a roda empenada e pediu-me cinquenta pesos. Disse-lhe que tinha pago cinquenta pesos em Ensenada, ao Xepe Garcia – que ele conhecia de nome – pela substituição do raio e pôr massa consistente nas rodas… ele retorquiu que lá em Ensenada era tudo barato e foi-se embora todo satisfeito. Podia ter-lhe dito que nos EU paguei $2 por um raio e $15 pela instalação respectiva… é a escala…
A terra é redonda...nas pontas!
Olhando para o mapa, a próxima recta estende-se por mais de setenta kms. Olhando para o horizonte, a estrada perde-se na planície. Olhando para o sol, dirijo-me para sul-sudeste. Olhando para o conta-quilómetros, estou a pedalar com o vento pelas costas. Os duzentos e poucos quilómetros que me separam de Santa Rosália é suposto serem muito áridos e despovoados. Os setenta quilómetros até Biscaino passam rapidamente… o cheiro a frango assado que se desprendia de um qualquer grelhador, atingiu-me forte, fez-me crescer literalmente água na boca e parar bruscamente. Há quanto tempo não sentia este aroma…apesar de não ser o franco do Xurrex, era frango assado! E mesmo sem as batatas estaladiças, o acompanhamento era aromático e saboroso. Enfim, enquanto os meus amigos me mandavam mensagens, a dizer que o bacalhau com broa do casamento do Miguel, estava quase tão bom como o que eu confeccionava, eu entretinha-me a degustar uma perna de frango no deserto da Baixa Califórnia…
Durante a tarde começou a despontar lentamente uma cadeia montanhosa à minha esquerda. Difusa inicialmente, foi ganhando forma e dimensão com o avançar do dia. Imaginei um gigante dando grandes passadas na linha irregular da cordilheira distante, e desafiei-o para uma corrida… Creio que tropeçou nalgum pedregulho demasiado pequeno para o seu pé de gigante, pois deixei de o ver…Ainda assim, não fosse surpreender-me lá para San Inacio, ao fim do dia, continuei a aproveitar o vento favorável e deixei-me levar velozmente.
San Inacio é uma visão que se ergue do deserto. Numa zona particularmente árida, nas imediações do vulcão “las três virgens”, surge o Oásis – um grande lago rodeado de palmeiras frondosas e verdejantes, salpicado pelas esparsas casas do povoado.
San Ignacio
Enquanto montava a tenda, chegava-me, pela densa copa das palmeiras, um alarido jovem, com música à mistura. Mal arrumei a tralha, segui o som. Junto ao campo de jogos da aldeia, já na penumbra do sol-posto, duas colunas jorravam acordes populares em altos berros. Por trás do balcão do pequeno quiosque, Fernando Araisa Ramirez, um octogenário de cerca de dois metros estendeu-me a mão enorme e perguntou-me o que bebia. Tinham Corona e Pacifica. De repente lembrei-me que ainda não tinha bebido uma única Corona, e pedi uma aos berros, mesmo ao lado das colunas ruidosas.
Fernando Araisa Ramirez foi o primeiro Basco que conheci no México. Orgulhoso nos seus 80 anos, três casamentos – o último dos quais aos 60 anos – nascido quando o pai já tinha completado 60 anos, estendia-me repetidamente a mão enorme para eu lha apertar e sentir a sua resistência de tamanho – a “superioridade” basca! Recuava constantemente para se poder por completamente de pé (estava meio acocorado sob o balcão que tinha um tecto baixo) e exultava orgulho por todos os poros. Falou-me de um curso de engenheiro-técnico que fez por correspondência, de algo ligado a industria aeroespacial a que parece ter estado ligado – o barulho das colunas, a dez centímetros agravavam irremediavelmente o meu parco espanhol…e de repente trás um prato de tâmaras doces como mel, que fui deglutindo entre goles de Coronas e ele de Pacíficas, falando não sei bem de quê, mas sempre com os Bascos (parecia não saber exactamente de onde eram originários) em fundo…
Ai!! cada vez que conta o que comeu ou bebeu sinto um frio na barriga!!!
ResponderEliminarDepois me acalmo ao lembrar que seu estômago está "calibrado" com o que se come no Stop :D (desculpa mas esta não podia passar depois da referência aos frangos do Xurrex e não da Valênciana :D:D:D)
Agora a sério, achei interessante como foi descrevendo o deserto. Ainda que numa escala bem mais pequenina, em Cabo de Gata, também senti primeiro uma tristeza, como se cheirasse a morte... mas depois parece que o nosso olhar se habitua e é impressionante a diversidade de castanhos e verdes que podemos encontrar e também outras cores na flora também de tamanha diversidade!!!
Idílio, tem cuidado, tá?
Um abraço apertado.
Idílio, que belo início de post com a estátua do cristo-rei local, a lembrar almada sem tejo :-)
ResponderEliminarcontinua esse relato delicioso, parece que até os huevos cheiramos, e sim, contribui para a economia local, que, se chegaste até aí e ainda não foste assaltado, claramente estás em dívida com o méxico! Think global, act local. Hasta la vista e muitas, muitas saudades.
Caro Idilio
ResponderEliminarNão esperei que seguisse pela Baja California, sem duvida mais seguro e um paraiso natural mas sem duvida tambem humano,social naquela simplicidade que afecta todos aqueles que transbordam sinceridade e autenticidade.O deserto apesar de uma provacao para um ciclista parece um deleite à distancia. Novamente obrigado,nao cansa,ilumina e cada palavra é servida com o bom gosto portugues pelo bacalhau demolhado regado num luminoso azeite.
Ate ja
Joao Meireles
Sabe o que me pareceu? Seja pela proximidade da língua, pela simplicidade do quotidiano, seja pela ligeireza, ou não, com que se lidam aí com os contra-tempos,o que notei, é que me parecia mais cá por casa.
ResponderEliminarFabuloso o relato da conversa com o Fidel no vale de San Quintin.
Um abraço e mantenha-se afastado dos ovos senhor!
Força e parabens pela coragem, continuação de boa jornada :)
ResponderEliminarFinalmente chegam ecos desta epopeia de bike, muito bem descrita, convidando a cada passo a sonhar e viver cada nova aventura!
ResponderEliminarBoas pedaladas e "buon Camino" !
HD
Começa a evidenciar-se a relação entre a alimentação e ... os raios que se partem!
ResponderEliminarAdelante!
Boas Idilio, por fim outro comentário!, espero que tudo role pelo melhor e vai andando com paciencia pois ai vem os Andes! já ao virar da esquina que eu não sei se os vou desbarbar assim às boas! quiças nos possamos encontrar em Quito onde eu vou começar a travessia dos Andes la para o 23 e fev pois depois de aterrar no dia 20 ainda tenho coisas a fazer!
ResponderEliminarGrd Abraço e como diz o Paulo Adelante!
Luís Hilário
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarOlá Idílio, como estás?
ResponderEliminarJá lá vão quase quatro meses e tu com essa pedalada terrível, mesmo com um desarranjo intestinal pelo meio!
Achei muito bom o teu último post sobre a Baixa California. Houve momentos mesmo entusiasmantes e interessantes! Mas ainda bem que os raios se aguentaram até ao fim e á água até à ultima descida!
Revi-me completamente na travessia da Baixa Califórnia. Os terrenos áridos, deserticos, as pessoas simples e a comida!
Esta manhã estava acordado para te ouvir na Antena 1 e puf.... Idílio not available!!!
Não está também a ser possível acompanhar-te no trip advisor do facebook.... Então tive o desafio de recorrer ao google maps para traçar o´percurso q ias fazendo, à medida q lia o post. Eu tinha o feeling q ias escolher a língua do Golfo do México!!! Assim até vai dar para seguires o conselho do Xepe Garcia e descansar um pouco no ferry! Olha q é um conselho de um ciclista!
Um abraço, boas pedaladas e cuidado com as descidas e com os ovos!
Idílio,
ResponderEliminarcada vez que leio os teus relatos, só penso em como há gente boa por este mundo fora.
E viva el Mexico.
bjinho,
Susana
Continua Idílio, com força, persistência e poesia!!!
ResponderEliminarhttp://www.monstersandcritics.com/lifestyle/life/features/article_1598162.php/On-route-from-North-to-South-Pole-with-a-bike-and-lots-of-curiosity
Caro amigo. Tenho seguido as tuas pegadas por esses locais tão fascinantes e que pintas de forma tão mágica, tornando-os sagrados. Claro que não posso deixar passar em branco que constatei que aí a natureza foi bem mais generosa para a minha pessoa ao conceder-me tão ilustre monumento (refiro-me à foto em Cataviña!). isto é um teste ao teu blogue como veículo publicitário, depois informo-te dos testes). Bem, fora as graçolas, deixo-te aqui um grande abraço, coragem e força nas canelas. Abdul
ResponderEliminarandei distraído a dormir no mês de Outubro e só agora percebi que já estamos em Novembro...não fosse o Topé e a sua participação na rádio e ainda continuaria contigo nas américas mais uns tempos...
ResponderEliminarPercebi logo de relance que isto acabava em San Ignácio e acho que nunca li um dos teus relatos tão depressa tal era a excitação de chegar ao fim. É que San Ignácio ficou-me no coração assim como a Baja Califórnia, mais propriamente a baía concepcion. E ao olhar para a tua última foto até parece que estou a ver um bocado de casa - parece mesmo o sítio onde enfiámos a canoa para um passeio de fim de tarde com o vulcão encendiado pelas cores do pôr do sol. Não sei se é por amar o méxico mas senti que foi talvez a melhor descrição da tua viagem até agora. Não há nada como o calor das pessoas não pertencentes ao 1º mundo e isso faz toda a diferença quando viajamos.
Ainda continuo a ter o sentimento de um dia quando for velho ir viver para a baja califórnia como fazem muitos americanos. A paisagem agreste que descreveste fascina-me imenso e as praias são um paraíso na terra muito por conta de estarem completamente vazias de pessoas.
Mais uma vez obrigado pela partilha e boa continuação por esse continente abaixo.
ric
Olá Idílio
ResponderEliminarFico na dúvida se pedalas para comer ou comes para pedalar... tal é quantidade de referências gastronómicas nesta última crónica. Lá diz o ditado, "Com o passar do tempo o prazer tende a deslocar-se de baixo para cima". Vê lá se retiras algum tempo ao pedal e te dedicas à escrita. É que no fundo também viajo no prazer das tuas palavras. Um abraço, Palhares.