segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

De Puerto Vallarta a Acapulco

De Puerto Vallarta a Acapulco

Este texto não inaugura um novo "estilo", é apenas fruto da apatação as circunstâncias - um trajecto em que partilhei a viagem com o Brian, um "certo" atrazo na escrita, maior apelo por parte das cidades e, por isso menos tempo diário para escrever...

Quando me fui despedir da Nena, conversava animadamente com o Marcos e a Jamona, sentados em confortáveis cadeirões no pátio do hotel Jasmim. O Marcos e a Jamona não escondiam a curiosidade que a bicicleta e a tralha lhes despertavam, mas a timidez impediam-nos de me fazerem perguntas. Cochichavam, gesticulavam, olhavam, até que a Nena, com o que já sabia da nossa conversa do dia anterior, mais a sua imaginação e aproveitando pouca coisa do que eu ia dizendo, fazia enfaticamente o resumo para os outros dois. No fim vira-se para mim com a habitual serenidade, e remata: quando concluíres esta viagem, já podes morrer porque já cumpriste o teu sonho. Não me quis alongar no tema, e assenti…mas senti, mais uma vez, que as pessoas com quem falo atribuem uma dimensão e importância a esta viagem muito maior que eu próprio.

A saída sul de Puerto Vallarta presenteia-nos com vistas soberbas, em que a frondosa floresta tropical mergulha nas águas verdes do pacífico. A estrada é acidentada, contorcendo-se constantemente para transpor a montanha escarpada. A construção é predominantemente discreta, submersa na própria floresta, e de luxo. Mas também há condomínios em prédios de grandes dimensões. O restaurante “El Set” tem amplas portas abertas para o mar, onde assenta os pés. O grande terraço, deserto a esta hora, emana uma tranquilidade e calma paralisantes, com a melhor vista que Puerto Vallarta pode oferecer…Manuel, o responsável, diz que não se importava de aqui trabalhar de borla, só pelo prazer…

Puerto Vallarta - El Set

Puerto Vallarta - El Set



As casas vão rareando cada vez mais mas, em contrapartida, surgem em localizações incríveis, isoladas no meio da floresta ou empoleiradas em ravinas sobre o mar, sem que se perceba por onde se lhes acede…

Nogalito

Em Mismaloya a estrada despede-se do oceano e abraça a Sierra Madre del Sur, seguindo pela margem de um pequeno rio. Ali perto, algures na outra margem, encontrou John Huston o seu paraíso…

Puerto Vallarta - Mismaloya

A estrada vai de encontro à montanha, sem que se perceba como se desenvencilhará dela... Não se adivinha qual a porta de saída. Sempre a subir, sempre nas imediações do rio, sempre na sombra da vegetação frondosa, sempre sob o verde tropical, sempre sob o chilrear estridente dos pássaros que esvoaçam, sem que os consiga avistar. Cumbres e Veranos é apenas uma terriola onde matar a sede, comer uma deliciosa tarte de queijo e sorver uma taça de frutos na única mercearia…O Brian fica-se pela coca-cola e a sua sanduíche de manteiga de amendoim e doce de quaqluercoisa…


De El Tuito a Tomatlan

Depois de muito subir, a estrada leva-nos velozmente até El Tuito. Há uma vintena de quilómetros, um placard na berma da estrada anunciava o Hotel Tuito e quando chegámos ao pequeno povoado, procurámo-lo. No fim de uma rua suja, lá estava o edifício amarelo, algo discreto para quem se fazia anunciar a 20 quilómetros de distância. Depois de insistir na campainha, apareceu ao postigo um jovem franzino. Disse-lhe que procurávamos um quarto para pernoitar e, excepcionalmente, fui ver o quarto antes de perguntar o preço…apanhei um choque e não sei como me contive sem me atirar para o chão a rir às gargalhadas… o quarto era uma suite que ocupava praticamente todo o primeiro andar da casa, tudo cor-de-rosa, branco e dourado, cheio de folhos, rendas e fitas, uma enorme cama de dossel, mesas, cadeiras, poltronas, pufos espelhos no tecto, nas paredes, … tudo cor-de-rosa, tudo dourado…
Ainda perguntei ao orgulhoso empregado (?) se não tinha um quarto normal, mas respondeu-me que era o único e se não queria saber o preço. Lá lhe expliquei que não era o que estava à procura, mas insistiu em dizer o preço: 1100 pesos a noite…

De El Tuito a Tomatlan

Em Punta Perula a estrada 200 beija de novo o pacífico. Os povoados que a ladeiam são ralos e de muito pequena dimensão. Alguns têm modestos hotéis, raramente com ar condicionado, água quente ou internet – luxos que dispenso. Apesar da proximidade do mar, de algumas praias que se vislumbram e outras que se anunciam, creio que seremos os únicos “turistas” a percorrer estas paragens remotas, tomando refrescos em “miscelaneas” onde o pó esconde as letras das embalagens, sorvendo leite que, afinal, já é quase queijo azedo, a que não deve ser alheio as semanas decorridas para além do prazo de validade. Os tacos continuam a ser o único valor seguro...
Com o Brian sempre à frente, os kms passam depressa, demasiado depressa… Na reserva de la biosfera Chamela Cuitzmala, a vegetação é ainda mais densa, mais verde, mais sumptuosa, formando um longo e fresco túnel ao longo da estrada.


Juan Perez - a pobreza e montonia das aldeias, por vezes choca com csas de "luxo"


Cor em Melaque

Playa del Oro parece ser um nome demasiado pretensioso. Na verdade não é mais que uma longa língua de areal, com os restaurantes, bares, chapéus-de-sol e espreguiçadeiras a estenderem-se até à água. A clientela não parece ser muita e os empregados disputam cada potencial cliente, de ementa em riste. O destino hoje é Manzanillo e nem abrandamos o passo.
A estrada de acesso a Manzanillo é um estaleiro. O trânsito caótico. Não se percebe por onde circula cada sentido, quantas faixas existem, se há passeios ou semáforos. Mas o pior é o piso…parece-me que a qualquer momento a bicicleta pode desmembrar-se, uma peça para cada lado…de repente, inexplicavelmente, o trânsito desapareceu e ficámos sós, no meio do estaleiro. Afinal a estrada não tem saída…está explicado.
O hotel em que pernoitamos é longe do centro da cidade. Apesar de haver restaurantes nas imediações, decido apanhar um autocarro e ir jantar à cidade. O Brian, algo a contragosto, acompanha-me. Viajar num autocarro local, com pessoas reais a viverem a vida real, era algo que desejava fazer desde que entrei no México, mas que ainda não se tinha proporcionado. Sinto a adrenalina da condução, caótica e de alto risco para os padrões ocidentais; as ultrapassagens pela esquerda ou pela direita, consoante o espaço disponível; as travagens e acelerações bruscas; as buzinas incansáveis, seja de dia ou de noite. Entra um jovem de viola a tiracolo e começa a entoar uma cantiga em tons suaves. Apesar do meu espanhol ser de improviso, percebo facilmente que tem cariz religioso. A próxima melodia também é religiosa e a seguinte também. No fim solta algumas frases invocando Deus e princípios bíblicos para apelar à solidariedade. Consegue mais moedas do que imaginei…
A zona do porto é particularmente escura, suja e feia. Por seu lado, o centro é inconfundível, com os passeios e jardins repletos de gente, especialmente jovens; com pequenas bancas ambulantes, de comidas, bebidas, frutas, doces; com as luzes fortes e musica ruidosa que brota de todas as portas comerciais; com as cores improváveis das pequenas lojas de roupa, calçado e bugigangas várias.
Ao longo da rua principal estende-se um conjunto de edifícios baixos, pintados de branco, com amplas janelas e grandes arcadas que formam um passeio largo. Numa esquina, um mexicano abraça carinhosamente a viola. Com voz forte e timbrada, lança sentidas melodias ao vento enquanto jantamos.

Antes de deixar Manzanillo, passo a manhã na bicicleteria Norco. Como tenho mais um raio partido, o aro já sofreu bastante e o pneu não aguenta muito mais, decido fazer uma reparação a sério, a ver se fico tranquilo durante uns milhares de quilómetros. Para alem de um aro novo e respectivos raios, substituo o pneu e acabo por ter de colocar um cabo de travão novo, a respectiva bicha e mais um qualquer acessório...



Manzanillo – Norco bike shop, bicicletas equipadas a sério…

Cruzamos Manzanillo ao som de fanfarras, escolas de alunos, militares e população em trajes domingueiros, num desfile ruidoso e colorido: comemoram-se os 100 anos do início da revolução. Tierra y Libertad, foi o seu lema; Madero, Villa, Carranza e Zapata os seus rostos maiores...

Manzanillo

Até Tecomán a estrada desliza veloz por entre coqueirais intermináveis, de palmeiras longilíneas, encimadas por abundantes cachos de cocos e poiso de colónias de elegantes garças, que esvoaçam, assustadas, à passagem de tão estranhas criaturas.

A caminho de Tecomán, com os coqueiros por companhia

E como em Roma… decidimos provar os cocos frios, a dez pesos cada. Não são uma iguaria imperdível – prefiro-os bem regados com rum… – mas o sabor leve do “leite” bem frio, tonifica a garganta seca do calor.

Tecomán – Cocos frios, a especialidade mais anunciada

Ainda não me tinha deparado com hotéis de tarifa horária, pelo que fiquei um pouco incrédulo quando a rapariga da recepção, do outro lado do guichet minúsculo, na parede de cimento, me disse que, como eram quatro da tarde, tinha de deixar o hotel às quatro da manhã, ou então pagar horas extra! Hotéis com tarifa horária e televisão com dois canais – um, o “canal das estrelas”, o outro, está na legenda…– só depois percebi a quem se destinavam! As seis da manhã, quando o Braian, na sua rotina habitual, se levantou e saiu do quarto, uma moça de shorts bem shorts deixo-lhe a chave do quarto, pedindo-lhe para entregar na recepção, momentaneamente fechada...

Tecomán - hotel "red style"

O Francisco, franzino, ar tímido e voz trémula, apareceu no restaurante onde jantávamos a vender copos de arroz doce. Fizemos negócio sem regatear o preço…afinal fui o único cliente.

Tecomán - Francisco, vendedor de arroz doce

Em Tecomán, os preparativos para festejar a revolução começaram com o nascer do dia. A longa avenida principal já estava vedada ao trânsito e centenas de jovens em idade escolar, agrupados em trajes coloridos, alinhavam para os últimos ensaios. Famílias inteiras iam-se instalando no passeio, com bancos, cadeiras, mesas e comida, sob o olhar atento de Zapata: Tierra e Libertad.

Tecomán - Centenário da revoluçäo

Em Tecomán vi a primeira igreja que me pareceu ter sentido…

…sem portas nem janelas

Depois de Cerro de Ortega, os povoados são mais raros que nunca, mas surgem alguns placards na estrada indicando complexos ecoturísticos junto ao mar. Como o dia ia longo e o mapa não mostrava alternativas, optámos por El Faro de Bucerias, uma baía de águas calmas, ladeada por um conjunto de pequenos complexos turísticos, com restaurante, “cabanas”, área para acampar e albergue/camaratas. O preço era tão baixo e a tranquilidade que se respirava tão absoluta, que decidi ficar um dia a saborear…


Alvíceras!!


El Faro de Bucerias



A caminho de Pichilingüi, a estrada prega-nos algumas partidas, com subidas longas sob o sol escaldante e a humidade tropical. Mas também nos presenteia com bonitos jogos de cor, luz e sombra, em locais improváveis, onde a pobreza e as carências parecem fazer parte da “ordem natural”…





De El Faro a Tizupan

Para desespero do Brian, depois de descermos o íngreme caminho que nos levou à praia de Pichilingüi, eu decidi que acampava ali, mesmo sem net, sem rede móvel, com uma mangueira de água atrás de um muro para tomar duche… a pequena comunidade piscatoria, o pequeno areal, a luz do entardecer, o mar azul, tudo encravado entre duas paredes rochosas, davam-lhe um ar tão tranquilo e recatado que eu já não arredava pé.

Pichilingüi

Enquanto o Brian procurava uma ligação à net em Guagua, uma aldeia ainda adormecida e que nem um telefone devia ter, eu relaxava com algumas singularidades coloridas que ia descobrindo…





Guagua

De todas as árvores de fruto que consigo identificar, as papaieiras são as que mais me impressionam, não só por adorar o fruto, mas pela abundância de papaias numa planta tão pequena.

Guagua - Papaeiras

As ementas dos restaurantes à beira da estrada, praticamente só incluem peixe e marisco, ou não estivéssemos em cima do pacífico. Não são de borla, mas para a qualidade, os preços são moderados. Com o calor lá fora à espera, este prato misto de camarão e tiras de peixe marinadas, devolveu-me a alma.

Solera de Agua (perto de)

A paragem era técnica – apenas para beber um refresco – mas o Sr. Elio Quintero conduzia a conversa por terrenos que me interessavam: de Colombo – que pensava ser português – a Vespúcio; da Ibéria, a Granada e Allambra; do latim, ao portugês, castelhano, francês, italiano e romeno; dos milagres de Fátima à virgem de Guadalupe, na Cidade do México. O Brian, que praticamente não fala espanhol e gosta essencialmente de pedalar, desperava…

Solera de Agua - Elio Quintero e filhos

De manhã as cores são mais fortes, os tons mais intensos, os aromas mais frescos, a brisa mais suave. Ou então sou eu que estou mais desperto, mais atento e com mais fome de natureza. E apesar de tudo parecer repetido e mil vezes visto, sentido, cheirado, continuo a pasmar com o que a estrada me presenteiam em cada curva…



De Lázaro Cárdenas a Zhiuatanejo

Acapulco é uma grande cidade – alguém me referiu que, incluindo toda a área urbana, teria cerca de dois milhões de habitantes – encravada entre a bela baía com o mesmo nome e a cordilheira montanhosa que a circunda. Mas Acapulco não é apenas uma cidade, são várias cidades. É a cidade pobre, de barracas tristes, sujas e esquecidas que vão crescendo pelas encostas da montanha, longe dos olhares da cidade. É a cidade turística, com resorts, condomínios fechados em prédios de muitos andares, McDonalds, Starbuks, Nikes, Adidas, Channel, & Cª, na parte oriental, longe dos olhares da cidade. É a cidade do centro histórico, que gravita em torno da Catedral e do jardim, onde se reúnem constantemente centenas ou milhares de mexicanos, desde o clarear da manhã até quase a manhã clarear. Onde palhaços alternam ao longo da semana, improvisando espectáculos para miúdos e graúdos; onde os rappers fazem os seus números acrobáticos, mais para gáudio do próprio grupo do que à procura de público; onde um ocasional grupo musical esganiça umas melodias, à espera que alguém, num passo de dança, encontre o ritmo perdido; onde um grupo de miúdos de palmo-e-meio e respectivos professores/orientadores, pintam telas confusas, que só eles entendem e admiram; onde um declamador, aparentando firmeza e convicção, brama contra os males do mundo, ao lado de engraxadores do tamanho dos bancos onde se sentam, deslizando mãos ágeis pelos sapatos que lhes consomem o brilho devido aos seus olhares baços; onde vendedores sem convicção, anunciam brincos, colares, chapéus, CDs, mais um interminável rol de bugigangas coloridas, num ritual monótono, cansativo. E é a cidade ruidosa, poluída, agitada, confusa, desordenada, num emaranhado de cores sujas, prédios feios, trânsito caótico, que se estende do sopé da montanha até uma ou duas ruas antes do Malecom…



Acapulco - Largo da Catedral


Acapulco - Largo da Catedral


Acapulco - Baía


Brian – o anoitecer de um sonho
A rotina do Brian incluía quase obsessivamente a ligação à internet – praticamente o único requisito que procurava nos hotéis era internet, o que me irritava invariavelmente. Tinha por rotina escrever o diário à noite, ligar para a família, via skype e, por volta das 5h da manhã, levantar-se para fazer o upload do diário do dia anterior na página Web. Naquele entardecer, um mail da sobrinha trazia por notícia que os pais, octogenários, tinham caído ambos, tendo a mãe partido um braço e sido hospitalizada. O semblante do Brian dizia tudo…preocupação, apreensão e antevisão do fim da viagem, que sonhava terminar dentro de cinco meses, depois de descer pelo Pacífico até ao Panamá e regressar a casa, em Bufallo, pela costa do Atlântico.
Os dois dias seguintes foram de suspense, oscilando entre a esperança de encontrar uma solução milagrosa e a certeza que teria de regressar, para cuidar do pai. Tão depressa afirmava sem convicção que a viagem não era importante e que a família estava primeiro, como gritava que tudo o que precisava na vida era mais cinco meses… não parava de falar em milagres e recordou um qualquer famoso jogo entre os EU e URSS, em que os Soviéticos tinham uma super-equipa, estavam a ganhar a um minuto do fim, e os americanos ganharam o jogo – por milagre, já se vê…
O sonho do Brian começou há vários anos…em 2002 comprou a bicicleta e creio que chegou mesmo a iniciar a viagem. Uma queda e lesão grave, com ruptura dos ligamentos do ombro direito, deitaram tudo a perder e levaram-no à estaca zero. Até que em Novembro de 2009, depois de se despedir do emprego e vender “todos os bens relevantes que tinha”, voltou a calçar os ténis e empreender a viagem. Nem duas semanas na estrada e uma ruptura nos ligamentos do joelho direito levaram-no à cirurgia, seguida de três meses de recuperação. Finalmente, em Março, pode dar asas ao sonho e voar. Partiu da Florida, cruzou o sul dos EU até ao Pacífico, subiu a costa até ao Oregon, inflectiu para o interior e juntou-se a um grupo de BTTistas, no Canadá, descendo as Rocky Mountains por Montana, Wiwoming, Nevada, Colorado, Texas, até à fronteira com o México. Depois pedalou ao longo da fronteira até San Diego e entrou no México em Tijuana, descendo a Baja Califórnia. Sonhava continuar até ao Canal do Panamá, sempre junto à costa Oeste e fazer o caminho de regresso por Este …
A decisão estava tomada. O regresso era inevitável e inadiável – as últimas conversas com a irmã não correram bem e o milagre está irremediavelmente atrasado…A última etapa seria Lázaro Cárdenas – Acapulco, 350 quilómetros a percorrer em três dias...
Chegámos a Zihuatanejo ainda cedo, ao fim de 105 kms percorridos – a etapa maior seria a do dia seguinte – e média de 18,6 km/h. Quando nos instalámos no hotel, vi o Brian espalhar todos os seus haveres em cima da mesa à procura de algo. Não encontrava a pequena bolsa de plástico onde guardava dois cartões de crédito, um de débito e algum dinheiro. Dei-lhe tempo, esperando que se acalmasse e que encontrasse a minúscula bolsa… ainda recordava um episódio semelhante em El Faro de Bucerias, dessa vez com o MP3, que estava dentro de um qualquer improvável saco… Creio perceber bem o que lhe vai na cabeça, nestes momentos, pois recordo o meu desespero e fúria quando julguei terem-me roubado a carteira e documentos, em Newport Beach… Depois de rever tudo diversas vezes, decidiu voltar ao último local onde paráramos, uma loja Oxxo, cerca de 20 kms antes de Zihuatanejo. Partiu a toda a brida e quando regressou trazia apenas o desânimo e desespero no rosto… sosseguei-o com a questão do dinheiro, recordando-lhe que lhe podia emprestar-lhe dinheiro para os últimos dias, que a passagem aérea podia ser comprada com qualquer cartão de crédito, incluindo o meu, ou ser mesmo comprada pela família nos EU…
Contactou o banco para comunicar o extravio dos cartões e comunicaram-lhe que já tinham sido utilizados… pouco valor – cerca de US 100$, na loja Oxxo onde os deve ter esquecido. Escusado será dizer que passou a odiar a, antes adorada, Oxxo…
Quando telefonava para o banco, o sinal telefónico era fraco e correu a uma elevação perto do hotel. Deve ter feito um movimento brusco e … lixou o joelho direito.
Nos dois dias seguintes, até Acapulco, era outro Brain…parecia ter chegado ao “fim da linha”…Todos os meus argumentos para o animar esbarravam num sorriso de irónica comiseração. O joelho – já foi operado aos dois joelhos – foi o golpe derradeiro na esperança de retomar o sonho pela terceira vez… Diz que o espera o “Crown Royal, o melhor whisky do mundo”…
Vá lá, Brain, um sonho não morre...morre quem deixa de sonhar e não vive quem nunca sonhou...além do mais, o teu atrelado continua na estrada, agora amarrado à Dempester, e espero levá-lo até á Argentina, a não ser que o queiras recuperar no Panamá!!


A viagem
“O condutor não tem mais de 12 anos”, diz o Brian inquieto. Eu returco, irónico, garantindo que tem pelo menos 15, mas provavelmente mais de 18. O olhar dele, sugere que devíamos esperar por outro autocarro, com um condutor mais idóneo. Eu ignoro-o e acomodo-me no banco. O autocarro vai enchendo, os lugares estão praticamente todos ocupados. O espaço de cada banco é exíguo e tenho dificuldade em encontrar uma posição minimamente cómoda para o meu massacrado traseiro. O angariador de clientes vai gritando, da porta, o destino e os vários pontos do percurso. Parece irritar-se por os transeuntes passarem indiferentes ao seu apelo esganiçado. Atrás do autocarro vão-se perfilando outros. Começam a apitar, cada vez com mais insistência – parecem querer que partamos para eles próprios poderem captar clientes. O jovem motorista arranca de rompante, com as mudanças num rugido de carretos desencontrados e a carcaça do autocarro aos solavancos. Ninguém a bordo parece reparar, apenas o Brian acena a cabeça incrédulo. O angariador, pendurado da porta escancarada, vai gritando o destino sempre que se aproxima de alguma alma. O trânsito é intenso em ambos os sentidos, predominando táxis e autocarros de todas as cores e tamanhos. As paragens são constantes e bruscas, não tanto por entrarem ou saírem passageiros mas porque o simples olhar de um peão que se quede no passeio, parece ser entendido como um cliente potencial a não desperdiçar… O autocarro não tem apenas uma, nem duas, mas três buzinas. A terceira é accionada com uma corda pendurada do tecto, à ilharga do motorista. É a mais ruidosa e a sua preferida. Conduz com uma mão no volante e a outra reparte-a entre a alavanca das mudanças e a corda…assemelha-se à sirene de um comboio e o autocarro parece estremecer ao seu bramido… Um magote de jovens estudantes, junto a uma geladaria, parecem ser a sorte grande do motorista. Vão entrando devagar, um após outro. “Cheguem-se mais para trás, ainda cabe muita gente”, grita o ajudante para os estudantes. Comprimem-se, quase se projectam sobre as pessoas sentadas, parecem sardinha em lata mas o autocarro não parte…meio minuto, um minuto, dois…que raio, começa a ficar um calor insuportável, um ar irrespirável, um ruído ensurdecedor e o autocarro nada. Ouvem-se as buzinas lá fora, a que o jovem de “12 anos” responde à letra. Ouve-se um apito – deve ser a polícia. É mesmo um polícia que vem mandar avançar o autocarro, mas afinal o angariador explica-lhe que estamos apenas à espera de mais três estudantes que, por sua vez, esperam pelo gelado e o troco…finalmente, diria que com ar insolente, os três jovens lá chegaram e, empurrados pelo angariador, conseguiram entrar na lata de entalados… A música, faltava a música. Onde já se viu um autocarro, para mais conduzido por um puto de “12 anos” e coadjuvado por outro de 16 (aparentavam idades muito semelhantes), sem música! Música que se ouça, entenda-se! E então solta-se do céu com estrondo, um trovão musical. Não sei porquê, mas vem-me à cabeça uma câmara de gás…não se distinguem as vozes, da música, do ruído do motor, ou as mudanças, que só entram “à pedrada”. Não se diferencia o cheiro a queimado do autocarro, do odor a gasóleo mal queimado e das nuvens negras de dióxido de carbono que saem de cada escape. Apenas a infatigável buzina se eleva acima de todos os sons, cheiros e pensamentos…
Começa uma descida longa e acentuada e as duas faixas é suposto reduzirem-se a uma. A fila é contínua. É hora de por à prova os travões e os nervos. O autocarro agora parece um baloiço, com as travagens bruscas, violentas, seguidas de inexplicáveis aceleradelas. O motorista parece mais distraído que nunca, na galhofa com o angariador…Cheira a queimado – o Brian diria mesmo que sai fumo junto ao motorista. Podem ser os travões quentes, ou a embraiagem. O mais certo é ser apenas imaginação e receio…Alguém assobia, um assobio seco e forte, à “pastor”. Nada. A seguir começa aos pontapés ao autocarro – é o sinal de paragem de emergência e o assobio era o sinal convencional – e o motorista pára com o estrondo habitual. Um qualquer malandro de outro autocarro, aproveitou a nossa paragem para nos ultrapassar, mas ainda devia estar a espreitar pelo retrovisor e já o “12 anos” se enfiava entre ele e a berma, ultrapassando-o pela direita, por entre solavancos, gemidos e carretos aos berros. Os passageiros continuavam tranquilos na sua modorra ou em amenas conversas…Parece haver semáforos, mas devem ter bloqueado no vermelho, ou então o vermelho é sinal de prosseguir – na verdade nunca percebi porque raio se tem de parar no vermelho e avançar com o verde…aqui o semáforo significa apenas avançar, avançar sempre, de preferência com a buzina de comboio a apitar e o motor a rugir, assustando assim os mais débeis. Sim, isto é um transporte colectivo, tem de ter prioridade… Afinal o “12 anos” parece ter um amigo que conduz outro autocarro em sentido contrário. Ah, porque não discutir o jogo do América contra o Santos, a noite passada? Foi penalty ou não? E as expulsões? 3 a 3, foi muito mau para o América, que quer ser campeão… Lá fora as buzinas rugem furiosas. Aqui dentro, apenas o calor … da viagem, que continua dentro de momentos e por poucos mais minutos, até “porto seguro”.

12 comentários:

  1. 4 páginas no DN e este post em menos de uma semana? ficamos de barriguinha cheia, obrigado Idílio. abraços

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  2. por motivos óbvios não li o precioso DN. Terei de esperar que alguma alma caridosa me guarde um exemplar para me oferecer no Natal...
    Mas dou-te já os parabéns por estes dois últimos textos, o do Brian e o da viagem, este último parece-me já candidato a algum prémio literário :) À tua conta fartei-me de viajar nas minhas memórias de todos os autocarros do mundo em que já entrei. A China ganha o prémio da adrenalina seguidos de muito perto pela Índia e Egipto, mas também me lembro de uma viagem por ravinas incríveis da Sierra Madre, no México.
    Mas não é só de texto que vive o teu blog. Guardo todas as tuas fotos numa pasta que já tem mais de 300 imagens. Destaco a noturna de Acapulco e a da impressionante tarântula que vem nesta quadra. Esperava uma qualquer história de terror à volta dela...mas nem o nome dela aparece ;-) Ao contrário do Brian, eu pertenço aos mais lentos, gosto de apreciar tudo o que um lugar tem para me oferecer incluindo a bicharada pequena invisível à maioria das pessoas. Seja como for, depois de ler o "anoitecer de um sonho", entendo melhor a pedalada apressada e apaixonada do Brian. Também percebo que não nos possas presentear todos os dias com a actualização da tua viagem. Nem reclamo...detesto ir à internet quando estou a viajar...parecem-me dois mundos impossíveis de coexistir ao mesmo tempo e a rotina do Brian parece-me loucura.
    Acabo de perceber que me alonguei um bocado...acabo já aqui a agradecer mais uma vez a partilha da tua aventura com todos os apreciadores de bacalhau.

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  3. (Agência Royters)
    Novas revelações da Wikileaks – Idílio Freire está a ser espiado pela CIA

    Segundo a Wikileaks, a CIA considera que o português Idílio Freire (que está a atravessar a o continente americano de bicicleta, de norte para sul) constitui uma ameaça à segurança global, e deve ser seguido atentamente.

    O português levantou suspeitas logo no início de Setembro, quando entrou no Estado de Montana, atravessando a fronteira com o Canadá. Ao referir que pretendia ir de bicicleta até à Argentina, chamou a atenção das autoridades americanas, que obviamente não acreditaram nesta história, para o que também contribuiu a sua aparência física. Embora tenham revistado rigorosamente os seus pertences, não encontraram nada de ameaçador, sendo-lhe autorizado prosseguir a sua marcha. A partir daí, no entanto, Idílio Freire foi seguido numa carrinha por um grupo de elementos da CIA, que atravessaram os Estados Unidos e já a quase totalidade do México no seu encalço.

    Apenas o perderam de vista uma vez, num dos muitos bordéis da cidade de Rosario. No entanto, voltaram a encontrá-lo mais a frente, quando acampava em El Pedregoso, tendo tido o cuidado de, encenando uma manobra de diversão, confirmar que se tratava mesmo do português.

    A CIA, revela ainda a Wikileaks, desconfia que Idílio Freire seja um perigoso agitador que se prepara para engendrar um golpe de estado num qualquer país da América Central ainda por determinar, e instituir um estado despótico e uma ditadura sanguinária, pelo que se mostra decidida a continuar a perseguição ‘enquanto for necessário…’.

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  4. Olá, Idílio.

    Numa muito mais curta viagem do que a sua, e infinitamente mais cómoda e menos aventurosa, 15 minutos de comboio entre Pinhal Novo e Setúbal, li parte da sua entrevista no suplemento "Gente" do "Diário de Notícias".

    Posso dizer que a sua aventura teve o condão de me transportar directamente para as Américas, fugindo à triste rotina daqueles que ainda não conseguiram licenças sem vencimento.

    Ainda não li toda a entrevista, e muito menos explorei este seu blog, mas é algo que farei em breve com muito gosto.

    Resolvi "publicitá-lo" (enfim, não como o Ilídio gostaria...) no meu blog "O Eldorado", para que cada vez mais gente tome contacto com as suas aventuras.

    Se não houver problema, colocarei uma foto, um link e algumas palavras que poderão destilar um tom jocoso.
    Não leve a mal, o blog é (pretenciosamente) humorístico.


    Mais do que nunca, a si, em especial, desejo uma muito boa viagem até à Terra do Fogo.

    Um abraço.

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  5. Isso é que foi uma viagem de autocarro delirante. Fartei-me de rir sozinha ao imaginar como seria fazer o inquérito ao transporte rodoviário de passageiros por essas bandas.
    Espero que o Brian não se dê por vencido e não se afogue em Crown Royal. Enquanto recupera da lesão, pode aproveitar para se preparar para a próxima viagem e começar por aprender espanhol. Beijos

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  6. ola Idilio mais uma vez me encontro a ler o teu romance e ver todas as paisagem que nos mostras es homem de coragem desejo.te muita sorte ate ao final da aventura abraço do parente mais velho

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  7. Idílio, até fiquei ansiosa com a vossa aventura nesse autocarro, que stress! :-) Bem, fica a saber que as tuas 4 páginas no DN sairam no dia em que o DN publicou uma entrevista com o Socas, pelo que te tornaste uma celebridade nacional (daqui a pouco estão a convidar-te para um Big Brother na TVI)! Eu gostei muito de ler e deu para matar mais um bocadito de saudades. Boas viagens e beijos.

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  8. Caro amigo, o facto de teres publicado este post significa que a viagem de autocarro terá terminado bem. Por essas bandas andar de bicicleta deve ser bem mais confortável. Deu também para perceber porque o John Houston adoptou Puerto Vallarta e lá rodou "A noite da Iguana".
    Um grande abraço e mais uma vez obrigado pelas crónicas e fotos,
    Luís M.

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  9. Olá,
    Afinal o México é o que eu esperava, o que eu idealizava, e o que eu tanto gostava de por lá passar. Com as tuas descrições, idealizo os cheiros, as brisas, a natureza, as pessoas,até oiço as suas vozes no idioma que eu tanto gosto, e sinto como disse a alguém há dias...que temos de lá passar!
    Impressiona-me a tua coragem de "viveres todas estas experiências sózinho" meu amigo, e espero que esta Quimera te continue a correr "sobre rodas" como até aqui.

    FORÇA Bacalhau!

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  10. O mapa altimétrico é uma grande mais valia!
    Venho por este meio dar-te os parabéns pelas 4 páginas no DN. Não sejas modesto quando dizes que não queres escrever um livro. Hoje em dia escrevem-se livros a torto e a direito por muito menos...
    Aproveito também para agradecer ao Zé e à Mô que prontamente me enviaram a entrevista para o meu email sem que eu os tenha sequer contactado, logo no dia seguinte ao meu 1º comentário neste post. Demonstra que estão diariamente atentos ao que aqui se passa e disponíveis para ajudar qualquer amante de bacalhau :)

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  11. Idilio como é dia de natal e o meu passa tempo por vezes é a internet pois nao deixo de verificar se temos mais imagem do teu percursso pois como ja vi ultimas noticias espero que passes um bom natal felis embora ausente da familia um abrançao manuel

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  12. Feliz natal Idilio.

    Temos seguido o teu percurso, gostamos de ler o teu blog e de ver todas essas paisagems do outro lado do mundo.

    Boa coragem para continuares o resto da tua grande aventura, com abraço da familia.

    Armando, Madalena e filhos.

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