Nicarágua de Sandino...
Entrei na Nicarágua pela fronteira de Guasaule. A única diferença com as anteriores, é o comércio de laranjas, do lado hondurenho. Dezenas de cavalos, equilibram no dorso um ou dois sacos de laranjas a “rebentar pelas costuras”, que são pesados e transferidos para os dois camiões estacionados na berma da estrada.
Na fronteira hondurenha, a funcionária pediu-me o recibo dos 3 dólares que paguei ao entrar no país. Recordo-me bem de ter pago os dólares ao empregado, que largou o garfo com que comia o prato de arroz, para carimbar o passaporte; de lhe dar o dinheiro e não ter recebido qualquer recibo. Depois de algum suspense e consultar a chefia, lá acedeu em me deixar sair sem pagar novamente, recomendando-me, com ar recriminatório, que peça sempre o recibo.
Do lado nicaraguense o movimento era mais intenso que o habitual nas fronteiras anteriores. Há imensos nicaraguenses a entrar na Guatemala. Entrego o passaporte e o empregado pede-me 12 dólares. O meu guia da América Central menciona $5, o cambista a quem vendi as lampiras, tinha-me garantido serem $7 e agora pedem-me $12!? Fiz-me desentendido e insisti na pergunta sobre o montante a pagar. O tipo olhou para mim com ar enfastiado e fez-me literalmente o “desenho”: $12 se quer o visto, disse. Expliquei-lhe que só tinha $7 e que ia trocar dinheiro. Poisou o passaporte e desapareceu por uma porta, enquanto eu fui novamente “ao mercado” comprar mais $5. Quando regressei, o passaporte lá estava mas do tipo nem rasto. No guichet ao lado, outro funcionário carimbava velozmente uns papelitos minúsculos, que me parecem ser vistos temporários para os locais que cruzam a fronteira por horas ou escassos dias. Esperei e desesperei, até que o “meu funcionário” regressou, ainda a palitar os dentes e limpar a boca: era hora de almoço…Apôs o carimbo no pequeno papel e não directamente no passaporte e passou-me um recibo de …$2. Está-se mesmo a ver que, lixado como estava com a espera, e com o recente episódio do lado hondurenho, virei-me para ele e apontei para o recibo de $2, perguntando, com ar inquisidor, afinal quanto é a entrada!? O tipo, desta vez com ar de enfado, juntou os dois papéis e mostrou-me que o outro tinha um valor de $10…
Somotilho é a primeira povoação em território nicaraguense, talvez a uns 15 kms da fronteira, e almocei na explanada do primeiro restaurante que vi. O único prato era bife de cebolada, acompanhado com os inseparáveis frijoles e arroz – mais uma tortilha e um pouco de salada. Na rua, dois miúdos jogavam à bola, por entre o constante vai-e-vem de coloridas bici-táxis – ou trici-táxis – bicicletas transformadas em triciclos, que fazem o serviço de táxi…
A tarde estava bastante quente, e a forte brisa que soprava de Este não ajudava no meu trajecto para Sudeste… Felizmente o percurso é praticamente plano, e consigo manter uma boa média.
Ao longo da estrada surgem casas bastante dispersas. Umas parecem mesmo abandonadas, mas outras têm um ar acolhedor. A vasta planície de campos verdejantes, intercala a pastorícia de bovinos, com culturas que não consigo identificar. O trânsito é escasso mas, surpreendentemente, os veículos que passam por mim, com elevada percentagem de pick-ups, aparentam bom estado. Bicicletas, cavalos e carroças, completam o tráfego.
Na linha de horizonte começa a emergir o cone agudo de um vulcão. Não percebo se são nuvens ou fumo, o chapéu que lhe cobre o cume. À medida que me aproximo, não só vai ganhando dimensão como começa a ganhar nitidez toda uma cadeia montanhosa, pontuada pelas elevações cónicas, típicas dos vulcões. Inquieto-me com a possibilidade de ter de transpor hoje aquela cordilheira, para chegar a Chinandega, a única cidade nas imediações. Observo melhor o mapa e concluo que, afinal, a estrada contorna o “vulcão Viejo” pela encosta norte, o que estica o percurso do dia, mas deve livrar-me da subida.
Procuro manter um ritmo forte, pois não quero pedalar de noite e a terra gira demasiado depressa nesta latitude…
Perto de Vila Salvadorita, ultrapasso dois rapazolas nas suas pasteleiras. Daí a pouco pedalamos os três em fila, em grande velocidade, infelizmente comigo sempre à frente, a puxar…mas a verdade é que por mais de uma vez abrandei o ritmo para não os perder – há sempre um efeito psicológico na competição – e ali sentia-me um bocado a desafiá- los. Teve piada porque, quando parei numa tienda, na beira da estrada, para comprar água, eles pararam comigo, tomaram o peso à bicicleta, desataram a bater palmas e fizeram questão de me encherem a garrafa de água (que agora se vende em “minúsculos” sacos de plástico – de 250 ml).
Até Chinandega foi uma “correria” louca e cheguei à cidade exausto, já mesmo no lusco-fusco. Fiquei no primeiro “hotel” que encontrei, num quarto escuro, sombrio, minúsculo, claustrofóbico, com um beliche aos “pés da cama”, que atafulhava ainda mais o exíguo espaço. Mas a originalidade que retive foi a iluminação: fizeram um buraco na parede que separa o quarto da casa de banho, onde enfiaram uma lâmpada fluorescente comprida, que assim ilumina ambas as divisões…
Hotel em Chinandega
Chinandega parece ser famosa principalmente pela destilaria de rum Flor de Caña, a mais famosa exportação do país e uma importante fonte de divisas, já que é praticamente todo exportado... Nas ruas da cidade, o número de bicicletas e carroças superam largamente o de carros.
No pequeno percurso até Leon, o país de Sandino vai mostrando as suas faces, nem sempre sorridentes… As bicicletas passam devagar, transportando um, dois, três e até mesmo os quatro! membros de uma família, num equilíbrio físico difícil de imaginar. Miúdos e graúdos deslocam-se em cavalos magros, com o trote arrastado e sem o pêlo brilhante e olhar fogoso que nos habituamos a ver nos equídeos de luxo. Pesadas carroças de madeira, carregadas de lenha ou pasto, arrastam-se lentamente pela estrada, puxadas por bois pachorrentos ou cavalos estafados, o mais das vezes com as costelas e quadris pontiagudos à flor da pele. Modernos tractores de enormes dimensões, passam apressados a caminho dos vastos campos de cana-de-açúcar. Pick-ups de brilhantes grelhas cromadas e rumo definido, passam velozes. Da soleira de cada porta, das ondulantes camas de rede, das cadeiras de plástico em redor de uma mesa “coca-cola”, do chão empoeirado de terra avermelhada, ou simplesmente de cima de uma pedra ou bloco de tijolo, jovens, crianças, homens e mulheres de braços caídos, olhares parados nos rostos fechados, talvez aguardem pacientemente que a semente da esperança lançada por Sandino, cultivada por Amador, prometida por Ortega, desabroche na próxima primavera e inunde a terra fértil da Nicarágua. Talvez, como me dizia Maria, a jovem empregada do hostal “tortuga boluga”, aos nicaraguenses baste uma cama – ainda que de rede – e uma refeição para serem felizes…Não sei porquê, mas senti que a sua boca dizia uma coisa e o seu olhar, outra bem diferente.
Leon - "1ª Capital de la revolucion"
León é a auto-proclamada “primera capital de la revolucion”, pois foi a primeira cidade (capital de província) a derrubar a ditadura da oligarquia ditatorial de Somoza e instalar o poder revolucionário sandinista. Óscar, 55 anos, é veterinário e geneticamente revolucionário. Combatente sandinista da FSLN desde “a primeira hora”, com apenas 17 anos, aponta, orgulhoso, para uma fotografia, entre as tantas que povoam as paredes do velho edifício da Asociación de Combatentes Históricos Héroes de Veracruz. “Sou eu”, diz, “no dia em que tomámos León, derrotámos a ditadura oligárquica de Somoza e fundámos a “primera capital de la revolucion”! No resto do país ainda se lutava, mas depois de León ser tomado, nada podia parar a revolução…”.
Leon - Sandino
Discorre com sincero orgulho sobre a história da revolução. Sandino é, obviamente, o pai a mãe, a cabeça, o coração, o herói… Filho de pai cafeeiro e mão campesina, forma-se em engenharia, vai trabalhar nos EU e no México, onde convive com o movimento revolucionário e os seus dirigentes – Zapata à cabeça. Carlos Amador e a fundação da FSLN, décadas mais tarde. As revoltas estudantis e o assassinato de Rigoberto Lópes Pérez. Quantos olhares vazios, quantos rostos anónimos, quantos nomes silenciados, olham, apontam e gritam, das brancas paredes da memória do edifício da “asociación”. Impressiona-me que nem um único dos retratos esboce o mais leve sorriso…Como não podiam adivinhar a morte que os esperava, concluo que não chegaram a aprender a sorrir. A ponte para o presente, e para o “companheiro Daniel”, é feita com menos entusiasmo. Fala dos 5% de analfabetismo, da educação e saúde gratuitas e universais, da distribuição da terra “a quem a trabalha”…A revolução não acabou. A revolução não pode acabar enquanto o miúdo de calções vermelhos dormir, estatelado, no meio do passeio e as pessoas lhe passarem ao lado sem o verem. A revolução apenas pode mudar de cor, de armas, de símbolos, hibernar até. Mas não pode morrer…
Leon - Mural
Lá fora, bem no meio do passeio da Calle Rúben Dário, jaz, de bruços, o miúdo de calções vermelhos e t-shirt cor-de-sujo a quem ontem neguei dinheiro para comer alguma coisa ao jantar, pensando que se estava simplesmente a aproveitar do meu look de turista. Sem cama de rede, sem uma refeição, sob o sol quente da manhã.
Léon está repleta de memórias revolucionárias, de mãos dadas com o sofrimento e a morte dos que trocaram o (seu) presente, sem condições, por um futuro onde não chegaram. Na pequena Galeria Héroes e Mártires, centenas de olhares de homens e mulheres, a preto e branco, olham-nos de todos os ângulos…terão encontrado a sua paz na guerra a que se entregaram…
Lá fora escurece rapidamente. Deambulo em busca de um local para jantar. Nas traseiras da Catedral, junto ao mercado, duas bancas, no meio da rua, libertam um agradável cheiro a comida. Aproximo-me hesitante, procurando avaliar o aspecto, mas já uma expedita rapariga me pergunta o que pode servir-me. Para o espaço e condições, tem uma impressionante variedade de comidas: “Papusas” – uma espécie de empanadas, mas “lua cheia” e não apenas “meia-lua” como estas – com vários tipos de recheio, carnes grelhadas, feijão, arroz, banana frita… Vou perguntando o que é cada coisa e mandando juntar. No fim, acabei com um prato a abarrotar de deliciosos sabores e aromas. Enquanto me esforçava para comer tudo, o meu olhar cruzou-se mais que uma vez com o dum tipo, que andava para trás e para diante, no passeio em frente. Apesar do esforço, levantei-me sem conseguir limpar o prato. Mal me afastei da mesa e me dirigi à moça para pagar, o tipo do passeio chegou-se velozmente à mesa e limpou o prato para um saco de plástico que trazia na mão… Regressou ao “seu passeio”, iniciando o jantar dele com o que sobrou do meu. Desta vez confirmei o que sempre suspeitara: não é por comer tudo o que tenho no prato, que a fome dos que não têm sequer prato, diminui…neste caso até foi o contrário.
Léon vive devagar. Vive em casas baixas, de estilo colonial, com varandas e belos gradeamentos em ferro forjado, de portas abertas para ruas rectilíneas, com o piso rude e irregular de há séculos. Como as demais cidades de fortes raízes coloniais da América Central, o epicentro é a colossal catedral e a praça central, contígua. Pelas ruas deambulam turistas, predominantemente jovens mochileiros, muitos deles de língua francesa.
Daniel...
Numa espécie de ringue, decorre uma intensa partida de basquetebol. Magros e gordos, altos e baixos, carecas e cabeludos, em tronco nu ou com camisolas a preceito, com estilo ou atabalhoados, dos 15 aos 60 anos, disputam os pontos nas tabelas e denominam-se Jordans, Magic, Powel & Cª. Sigo com algum fascínio aquela miscelânea de jogadores, não pelas jogadas ou os pontos que conseguem, mas por ver a mesma alegria e entusiasmo nos de 15 e de 60…
No passeio aquecem skaters, patinadores e futebolistas. Já é noite escura quando os gigantes se dão por saciados e lhes cedam o palco. Um miúdo de calções vermelhos, t-shirt cor-de-sujo e expressão zangada, agressiva mesmo, senta-se ao meu lado e pede-me dinheiro para comer. Olho-o nos olhos escuros e digo-lhe que não – deve querer aproveitar-se do meu ar turístico…
Passei a manhã a visitar o museu arquivo Rúben Darío e o centro de arte Fundación Ortiz-Guardián. Para alem dos belíssimos edifícios onde se localizam, surpreendeu-me a vasta colecção de arte de toda a América Latina, um certame de arte contemporânea de todos os países da América Central, a enorme exposição de cerâmica e mesmo uns Picassos, incluindo uma cópia ou esboço (?) da Guernica…
Vendedor de gelados
Deixo Léon a caminho de Manágua, embora não tenha intenção de parar na capital. A poucas centenas de metros do centro de Léon, regressa com intensidade o modo de vida rústico e carenciado dos nicaraguenses, com as carroças e bicicletas em constante vai-e-vem.
As longas rectas sucedem-se na planície verdejante, delimitada, lá longe, à esquerda, por uma cordilheira de majestosos vulcões. Parece que são dezassete ao todo, alguns em actividade… Com excepção dos distantes vulcões e pequenos fait-divers da vida quotidiana, que acontece para lá da berma da estrada, a jornada é monótona e cansativa. O sol quente, a humidade crescente com a aproximação ao equador, a brisa forte que me acompanhou todos os dias na Nicarágua, e uma longa subida nas imediações de Manágua, fizeram-me desistir do objectivo secreto de pernoitar em Masaya, cerca de 30 kms depois da capital. Mas como queria chegar o mais longe possível, decidi passar Manágua, esperando encontrar um hotel, ou motel, nos subúrbios. Os kms iam passando, o desgaste aumentando, o vento fortalecido pelo meu desgaste e de hotel nem sinal – na verdade vi o Hilton…mas se me aproximasse, deveria ser logo preso! Como estava com pouco dinheiro, parei num multibanco, junto a um supermercado. Duas mulheres, na casa dos 50, conversavam junto ao “cajero” e decidi perguntar se havia algum hotel ou alojamento próximo. Uma delas respondeu que podia alugar-me um apartamento para pernoitar, corrigindo de imediato que não era um apartamento mas sim um quarto na quinta dela. Mostrei-me interessado e perguntei-lhe onde era e quanto custava. A resposta foi mais surpreendente…ficava ao km 13 da estrada (estávamos no 9º) e perguntou-me quanto queria eu pagar! Não estava de todo preparado para aquela pergunta e lá lhe disse que o máximo que podia pagar eram $15 (até no país de Sandino, o dólar vem antes das córdobas…). Respondeu-me que estava bem e para esperar um pouco por ela, pois me “conduziria” até à quinta, seguindo à minha frente no carro.
Ao km 13 há um pequeno desvio à direita e, imediatamente a seguir, novo desvio em terra batida, que dá acesso a várias moradias completamente embrenhadas na luxuriante vegetação tropical. Abriu o portão, abriu as portas da casa, mandou-me entrar com a bicicleta sala adentro e arrumá-la junto a uma parede da sala. Foi-me mostrar o meu quarto, cozinha e casa de banho. Infelizmente não havia água corrente naquela altura – há cortes frequentes no abastecimento de água – e tive de recorrer ao velho método de um alguidar de água e um púcaro.
A casa era de uma enorme simplicidade, com parca mobília e menos elementos decorativos. Mas era uma “casa na floresta”, com um grande alpendre, vedado com rede mosquiteira, onde se dispunham várias cadeiras de baloiço, camas de rede e uma rústica mesa de cimento com cadeiras em redor. Era ali que a Ivânia gostava de passar as tardes, sempre que podia, enquanto o filho Leonardo, de 12 anos, dedilhava acordes confusos, numa das duas guitarras que tinha na sala contígua.
Antes de sair de novo com o filho e me entregar a chave da casa, com a única recomendação de não abrir a porta nem o portão a quem quer que fosse, preparou-me um chá e um pão com manteiga, pois eu “devia estar com muita fome” – não pensei que fosse tão evidente…E enquanto tomávamos o chá, apresentou-se. É emigrante em Montreal, no Canadá, há quase trinta anos. O marido e as duas filhas mais velhas estão lá e ela está temporariamente na Nicarágua, “para ajudar este miúdo” – o filho. Gostaria de não me cobrar nada pela dormida, mas está com alguns problemas na vida e só por isso aceita. A “amiga” com quem estava a falar quando a vi, ficou muito preocupada por ela levar assim um estranho a dormir em casa, ainda por cima estando sozinha com o miúdo, mas ela “seguiu o coração, pois quando me viu, sentiu logo que eu era uma pessoa especial e boa”! Não a felicitei, mas bem podia, pois foi a pessoa que, até hoje, mais rapidamente avaliou correctamente a minha pessoa!!
Na verdade, a Ivânia é que é mesmo uma pessoa excepcional e excepcionalmente boa…quando regressou, passava das 10 da noite, sentámo-nos no alpendre e contou-me o dia dela – quase dava um post, de uma humanidade e solidariedade luminosa…
Manágua - Quinta Scorpio
Despedi-me da quinta scorpio – assim se chama a casa da Ivânia – mal clareava o dia. Não quis pequeno-almoço e despedi-me com o peso das coisas definitivas…Até nunca mais, que é como quem diz, até sempre, pois dificilmente me esquecerei da Ivânia.
Masaya é uma pequena povoação cerca de 30 kms a sudeste de Manágua. Na realidade só há duas razões para pernoitar na cidade: o mercado nacional de artesanato – o único do país – e o activo vulcão Masaya, onde quero fazer um treking.
Uma das coisas excepcionalmente boas desta viagem que estou a fazer, é poder viver cada momento, cada lugar, cada sitio onde pernoito, cada café ou restaurante onde me sento, cada banco de jardim onde “poiso”, cada conversa circunstancial, com a intensidade das coisas absolutas, únicas e irrepetíveis e com a leveza da absoluta despreocupação com o antes e, especialmente, com o depois – com o autocarro ou o avião, com o jantar, com a reunião, com o encontro, com o compromisso, em suma, com o Relógio. Por isso, mesmo Masaya, uma vila – ou cidade – sem nada de cativante, cativou-me. Cativou-me o jardim, mais pequeno e banal que os jardins das cidades importantes, talvez pelos excepcionais sumos naturais que uma senhora simpática e paciente – para me explicar repetidamente quais os sumos que tinha e de que eram – preparava; talvez pelos miúdos brincando em “calhambeques” que se parecem com bicicletas; talvez pelos vendedores de jornais e jogo, que passam (passeiam?) tranquilamente, aparentemente pouco preocupados com o negócio e mais com a conversa.
Masaya – noite de folclore
Vulcão Masaya
Para alem do jardim, há o “museu” – da revolução, claro. Na verdade é uma pequena sala no edifício da câmara (?), narrando e ilustrando a participação revolucionária da região. E, tal como em Léon, lá estão centenas de fotos dos que sacrificaram o único bem que tinham – a vida – ao sonho. É verdade que as fotos “enganam”, pois muitas são das vítimas/heróis enquanto miúdos. Mas isso mesmo dá um ar ainda mais sombrio e injusto à morte. Quando via aqueles olhos de crianças mortas, parados ainda em vida, fixos nos meus, pensava: espera, na foto eram crianças inocentes, mas morreram já adultos, convictos da causa que abraçaram…seja como for, todos aqueles olhos se apagaram como velas lançadas na tempestade, para iluminarem o caminho da esperança…
Juan, vendedor de cordas
O mercado de artesanato fica numa grande “praça”, vedada por um muro parecido com um castelo. As tendas dispõem-se “tematicamente”, em complexos corredores, cantos e recantos. A diversidade é enorme, o colorido sumptuoso, a qualidade parece elevada, os preços baixos e, surpreendentemente para estas latitudes, os vendedores – muitas vezes a lerem o jornal ou um livro – têm uma postura discreta, deixando os visitantes completamente à vontade.
A maioria deste artesanato é produzido na cidade e existe um mapa com a localização de grande parte das oficinas dos artesãos…na minha deambulação pela cidade, que me levou aos subúrbios ocidentais, junto da laguna Masaya, com vista para o vulcão do mesmo nome, vi vários artífices trabalhando em minúsculas oficinas familiares, de portas abertas aos turistas curiosos. Claro que alguns perderam alguns minutos a responderem ao meu inquérito…
Masaya - vendedores de lenha
Mas como nem só de artesanato e turistas vive uma comunidade, um jovem casal de comerciantes de lenha, fazia a entrega da última encomenda do dia. O cavalo seco e com ar estafado, arrastava, sem pressa, a carroça agora vazia. Como há muitas pessoas sem possibilidades para cozinhar com gás, o negócio da lenha vai dando para alimentar os três, diz-me o Juan, com um sorriso triste. A mulher, de lápis e calculadora em punho, vai anotando as encomendas – e os créditos, que também os há…
Granada - Catedral
No mundo simples e a “preto e branco”, Léon é conhecida pela sua tradição revolucionária e de esquerda e Granada pelo conservadorismo. Parece que a implantação político-partidária e a concentração dos votos é mesmo extrema nestas duas cidades e no passado as divergências resolveram-se com violência…
Granada, vista de la Merced
A torre da igreja La Merced oferece uma visão soberba de Granada, das ruas geométricas que nos conduzem o olhar até ao lago Nicarágua, aos vulcões, sempre vigilantes, ou à vegetação verdejante dos arrabaldes. Acima das casas baixas, de telhados de acastanhada telha de canudo que, muitas vezes, dão para sedutores pátios interiores, erguem-se cúpulas e torres de igrejas pelos quatro pontos cardeais.
Granada - La Calzada
Granada faz parte da “ruta colonial e de los volcones”, que atravessa toda a América Central. Muito menos imponente e cosmopolita que San Cristobal de las Casas, no México, menos turística que Antígua, na Guatemala, e que a sua vizinha Léon, parece estar também a despertar rapidamente para o turismo.
A Calle Atravezada e a Calle la Calzada não só delimitam a cidade como circunscrevem claramente o centro. É surpreendente como todos os turistas afluem à mesma zona, povoando as esplanadas, bares e restaurantes de uma mesma rua. É como se houvessem duas cidades na cidade: a Calle la Calzada – para turistas – e o resto. É um estranho turismo, este em que turistas convivem com turistas, mais parecendo que estão num cruzeiro em doca seca…mas é aqui que, pelo menos à noite, todos os caminhos vêm dar. É nesta rua que todas as ofertas podem surgir, desde jovens “massagistas” com ar lânguido e olhar insinuante, a discretos dealers de estupefacientes.
Turistas de todas as idades e pronúncias vão preenchendo as explanadas, e as mesas enchem-se de garrafas de cerveja de litro, vazias. Parece popular na Nicarágua a cerveja de litro, normalmente dividida entre mais que uma pessoa…eu próprio já fui surpreendido com uma, pois como não especifiquei, veio, por defeito, uma de litro!
Granada - campo de futebol
Lambia devagar o gelado, que teimava em escorrer pelo cone, quando o Luís se aproximou de mim com a sua colecção de artefactos de barro. Contrariamente ao habitual, poisou as faianças, com cuidado, no chão, apresentou-se, sentou-se ao meu lado e não falou de negócio mas sim da minha t-shirt – uma adidas preta com listas brancas nas mangas – que serviu de introdução a uma longa conversa sobre futebol, claro. Apesar dos imensos conhecimentos que tem do futebol europeu, confundiu a t-shirt com a “alternativa” do Real Madrid. Mas mesmo assim, pediu-me insistentemente para lha “regalar”, pois colecciona equipamentos de equipas e selecções de futebol, “mas são muito caros na Nicarágua”. Na verdade, ao ouvir o entusiasmo e orgulho com que fala do equipamento da argentina, do Liverpool, Inter, etc., estive vai-não-vai para ficar em tronco nu na praça central de Granada e dar-lhe a t-shirt. Mas tive uma ideia melhor: prometi enviar-lhe a do Glorioso quando chegar a Lisboa. Trocámos endereços e ficou de me “lembrar” lá para Novembro…
Granada - de pequenino...
Granada confina com o lago Nicarágua. De águas acastanhadas e ondas impressionantemente grandes para um lago, na sua margem estende-se um enorme parque verde, que dizem pouco recomendável depois de escurecer. Mas durante a tarde é um excelente perímetro para passear, repleto de vida e espelho das singularidades nicaraguenses. Campo de futebol improvisado, em que quatro bicicletas fazem de balizas; campo de pastagem, onde vacas e cavalos devoram enormes tufos de erva verde a escassos metros do lago; pista de jogging, skate e bicicletas; cenário de fotografia de moda, onde uma jovem hesita entre controlar o vaporoso vestido, revolto pela aragem, e o sorriso ensaiado para o fotógrafo. Eu, acabo a tentar reparar a bicicleta de uma gaiata que mal chega com os pés aos pedais, numa bicicleta enferrujada, onde já nada funciona…
Lago Nicarágua - Ilha Ometepe
Muito bem
ResponderEliminarContinuas a tua caminhada com o mesmo espírito com que a inicistae em Inuvik.
é bom saber que a percorres "com a leveza da absoluta despreocupação com o antes e, especialmente, com o depois".
Só não entendo o continuo aumentar de intervalo de tempo entre posts. ;)
JMorgado
Caro amigo, já estava com saudades das tuas crónicas mas vale bem a pena esperar. Por outro lado, o passar do tempo faz ganhar consciência da dimensão da viagem a que te propuseste. Bravo! Um grande abraço, Luís M.
ResponderEliminarÉ a 1ª vez que sinto falta de ler mais mas compreendo as dificuldades de tempo e logística que deves ter para continuamente partilhares a tua aventura. A imagem da cratera do vulcão é impressionante e gostaria de ter visto mais a par com uma descrição do treking. Granada parece ser cativante e a foto do folclore em Masaya é bonita no seu movimento de cor. A iluminação do Hotel em Chinandega é o máximo e são esses pormenores que são fascinantes de encontrar quando não se dorme nos Hiltons. Um grande abraço e boa continuação, Idílio.
ResponderEliminarEu já andava a pensar que te terias "enamorado" algures, tanto foi o intervalo de tempo do relato desta vez..! Muito bom saber-te aí, e sempre tão desperto e atento. Muitos beijinhos e saudades.
ResponderEliminarConsegui de novo ouvir-te na Antena 1, embora estivesses acordado até às 2:00...
ResponderEliminarÉ bom saber que as histórias continuam com estórias de vida ... Quase que nem precisas de fazer pontos pois lê-se tudo de seguida!
Abraços daqui da Amadora e força nos pedais! Quantas correntes já gastaste?
Jorge&Nanda
Olá Idílio, o melhor seria enviares a camisola do glorioso doutros tempos, pois a de agora não "tem na alma a chama imensa"... Também me "queixo" pela escassez dos posts durante o mês de Janeiro! Vê lá se te continuas a esmerar nas crónicas, pois não iríamos "tolerar" posts relaxados tipo telegrama à medida que progrides para Sul.
ResponderEliminarUm Grande Abraço, Palhares.
Você está fazendo a viagem dos meus sonhos, a qual pretendo realizar daqui a 6 anos. Hoje li todo o seu blog, todos os seus relatos e viajei contigo. Parabéns pela coragem e por compartilhar conosco as suas aventuras.
ResponderEliminarSempre que possível, dê-nos detalhes técnicos da sua jornada, é legal saber quanto se gasta e como se gasta numa viagem destas, ainda mais pra mim que ainda estou começando no mundo do cicloturismo.
Grade abraço,
Rafael.
Continuas em grande! De vez em quando tens umas "tiradas" que dão que pensar "É um estranho turismo, este em que turistas convivem com turistas, mais parecendo que estão num cruzeiro em doca seca…". Noutro dia estava a ler alguém que distinguia turismo (o que chamas "estranho turismo") de VIAJAR que é o que estás a fazer, e muito bem. Continua a rumar a sul...Abraço
ResponderEliminarVocê pode acessar o meu blog, que apesar de novo já conta com alguns planos e ideias, sobre a viagem que pretendo fazer em 2014 ou 2017 entre Alaska e Ushuaia.
ResponderEliminarAbraços e já estou te seguindo! :)
Rafael.
Os teus posts estão cada vez mais espaçados, mas mais intensos, vale a pena a espera... mas graças a ti não voltei a beber um café com a leveza que o fazia, obrigadinha pelo alerta da consciência! ;-)... gostaria de continuar a comentar a proximidade crescente dos "diários de motocicleta", mas não resisto a comentar a derivação "calimera" quanto à velocidade com que te avaliam correctamente :-)! O teu comentário tem duas falácias: 1. Certamente circulas com menos "camadas" do que as que naturalmente usavas quando andavas por estas bandas, o que facilita a vida a quem te avalia... 2. Estás uma pessoa ainda maior e melhor, não é comparável. Tens uma quebra de série ;-)... Cuida-te. *
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