segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Argentina de fio a pavio...

Ushuaia, e a viagem chegou, por fim, aio fim...
A última fronteira situa-se na exuberante zona de los lagos, no coração do Parque Nacional Lanin, contíguo ao Parque Nacional Nauhel Huapi. Toda a região, à semelhança do vizinho Chile, é dominada pela nevada cordilheira andina, numa sequência impressionante de vulcões e montanhas. A meio das intermináveis encostas, o verde opaco da floresta densa, surge salpicado de branco até desaparecer completamente no manto imaculado da neve. Visto aposto, recebida a recomendação para ir com cuidado, não senti qualquer emoção, apreensão ou entusiasmo com o vulgar carimbo. Na realidade nem tomei consciência que esta seria a última fronteira, o último visto, o décimo quinto carimbo no passaporte…
Na Argentina fui recebido com frio e neve… pela estrada do paso fronteiriço de Huahum a San Martin de los Andes





Um lago à direita da estrada, espreitando por entre as árvores, dois ou três edifícios, vários anúncios sobre zonas de pic-nic, campismo e “senderos”, eram a novidade deste lado da fronteira. Pouco adiante, o caminho sobe umas dezenas de metros, suficientes para que a neve surja, primeiro ralos flocos na berma e depois pintando totalmente de branco a paisagem cinzenta. Cruzo-me com os primeiros carros de matrícula argentina e surpreendo-me com a decadência – mas também resistência – de velhos renault 12, fiat 127, citroens e companhia. Até San Martin de los Andes há que pedalar depressa, para tentar fugir às nuvens ameaçadoras. O miradouro todo abonecado que surge a escassos quilómetros da cidade, dá uma bonita perspectiva da povoação, disposta geometricamente ao longo de um pequeno vale, delimitado num dos topos pelo lago Lacar. Os edifícios são baixos e predominantemente de madeira, telhados escuros e inclinados, ao estilo “chalet” suíço.
San Martin de los Andes, no extremo do lago Lacar

San Martin é mesmo um povoado todo abonecado, devotado ao turismo de verão e de inverno e ao consumismo, numa enorme densidade de lojas, com as mais prestigiadas marcas de roupa desportiva e outdoor e restaurantes. Mas o que me surpreendeu mesmo foram as casas de chocolates e geladarias: as vitrinas são irresistíveis! Mas San Martin retém no seu património imaterial, a lendária passagem de Ernesto Guevara e o amigo Alberto Granado, na vellha “poderosa” – a Norton 500. A entusiasta guia de La Pastera – museu del Che, enfatizou especialmente que lutaram onze anos pela não demolição de “La Pastera”, o edifício original onde, em 1952, pernoitaram os dois aventureiros, e que servia de estábulo e armazém de pasto para os cavalos dos guardas do parque Lanin. O museu é pequeno mas o entusiasmo dos promotores é enorme e o vídeo de uma hora percorre todas as etapas da curta vida do eterno Che.
Património imaterial



Depois de uma noite invernosa, deixei o acolhedor Bike hostel sob a ameaça de mais chuva ou algo pior. As nuvens baixas e negras ocultam os montes circundantes, projectando no lago Lacar tons plúmbeos do chumbo. A estrada 234, também designada “ruta siete Lagos”, começa por deslizar junto ao Lacar mas rapidamente o abandona para se embrenhar numa deslumbrante sequência de lagos alpinos, pintados de azul, verde, turquesa, esmeralda e mais não sei quantas variantes que não constam do meu cardápio, nem as encontro nos arco-íris que aparecem e desaparecem no horizonte.
A estrada é longa… ainda bem, tem tanto para saborear

A jornada até Villa la Angustura vai ser longa e mais longa se tornará quando o asfalto for engolido pelo rípio encharcado e ondulados, pela neve enlameada nas cinzas do vulcão Puyehué, pelas subidas e descidas, ampliadas na fadiga dos mais de cem quilómetros da jornada. Com a constante ameaça de chuva e a certeza de que não há qualquer local de pernoita intermédio, divido-me entre parar em cada curva do caminho para saciar o olhar e satisfazer o desejo do indicador na máquina fotográfica e a consciência de que necessito avançar para chegar a Villa la Angustura. Lamento apenas que as escassas hosterias e abundantes campings, em locais assombrosamente bonitos, estejam invariavelmente cerrados – é inverno, a paisagem está toda pintada de branco, não é época de campismo, pic-nics, nem caminhadas…
Ao longo da ruta siete lagos, deixemo-nos levar pela paisagem





À medida que me aproximo da Villa la Angustura, a areia e cinzas expelidas pelo Puyehué semeiam a desolação na paisagem. Já não é só a estrada empastada e enlameada, são as árvores com os ramos sujos, vergados ao peso dos inertes; é a vegetação rasteira coberta de areia e cinza; são os miradouros envergonhados, sem nada para oferecer; são as casas, cabañas, jardins, explanadas, descoloridos e mergulhados na tristeza cinzenta. Villa la Angustura é suposto ser uma daquelas aldeias de postal ilustrado, piscando o olho ao azul profundo do lago Nahuel Huapi, acenando ao branco imaculado do cerro Mayo, respirando o aroma agridoce da floresta verdejante. Cabañas, hosterias, hotéis e campings; cabalgatas, passeatas, canoagem, passeios de barco, rafting, slide; esqui no inverno e lago no verão; casas pequenas, de madeira, da cor da madeira, passeios tranquilos, pessoas intimistas, amáveis e comunicativas; montras apelativas, mais uma vez geladarias, pastelarias, chocolates, artesanato. Mas isso seria antes das areias e as cinzas terem invadido a aldeia… agora, apesar dos camiões e máquinas não pararem na sua correria louca de remoção dos intrusos, as ruas, passeios, jardins, telhados, parecem um cemitério de onde se soerguem meios cadáveres. No hostel El Pilón parece que somos todos vizinhos e amigos de infância… a Agustina e o Luís, jovens proprietários, são de uma simplicidade e amabilidade tão genuína e natural que é impossível não retribuir exactamente nos mesmos moldes. O Julian, músico francês de 33 anos, que estudou e viveu uma temporada no Quebec, percorreu boa parte da América de mochila às costas, escolheu Villa la Angostura para viver e o El Pilón para casa, onde reside há quase um ano. Curioso é que o Julian trabalha durante o dia na remoção da areia, de pá, carro de mão ou camioneta, e à noite compõe – está a fazer a banda sonora para um filme norueguês – estuda música, toca, reflecte… curiosas vidas com que me vou cruzando; riqueza de experiências; fonte de diversidade. Afinal parece que a única forma de vida não é trabalhar das 9 às 5 – ou das 7 às 24h… começo a ter saudades dos 20 anos… Os camionistas, vindos de Mar de la Plata, ou das imediações, vislumbrando uma oportunidade de trabalho, na sua simplicidade e espontaneidade de operários rudes e generosos. Todos nos sentamos à mesa ao fim do dia, tomando umas cervejas de permeio com os aperitivos que aparecem e prolongamos a “charla” para além do jantar tardio.
Uma mão-cheia de fotos de Cerro Mayo… bem tentei reduzir a “meia-mão”, mas tinha de cortar um dedo ao meio…
Era para pernoitar apenas uma noite em Angustura, mas senti um misto de solidariedade e carinho para com aquela gente em dificuldades e, com o incentivo entusiástico do Julian, fiquei um dia extra. E não me arrependi, pois se a estância de esqui de Cerro Mayo é pequenota e com alguns meios mecânicos fechados – há muito pouca gente nas pistas, claro, apesar de não serem visíveis quaisquer vestígios das cinzas – a paisagem envolvente – do lago, aos vulcões e floresta – é deslumbrante, especialmente quando se deixam as pistas e se cavalga, ao acaso, pelas encostas sul e sudoeste… Como não há transporte público de Cerro Mayo para Angustura, preparava-me para tentar a sorte e regressar à boleia, mas não foi necessário dar um passo sequer. Chegavam dois dos meus companheiros de hostel, num camião Mercedes que mais parecia saído de um museu temático e regressaríamos juntos. Só vinham dar uma mirada e tirar umas fotos para mostrarem à família quando regressassem a Mar de Plata. Terminei o dia a carregar areia à pazada, recordando velhos tempos de adolescente, em que passava as férias de verão em actividade semelhante, e em pouco tempo limpámos o jardim do Don Pilón. Como prémio, escorremos umas quantas Quilmes, acompanhadas de uns petiscos que a Agostina preparou e descontraída conversa de café, como os bons amigos faziam na tasca da aldeia.
No Don Pilón há sempre voluntários para cozinhar...
Com um dia de descanso, o piso plano, ou levemente descendente, e sem vento contra, cavalguei velozmente os sessenta quilómetros que me separavam da mítica ruta 40! Finalmente a infinita estrada que cruza a Argentina de norte a sul, da fronteira com a Bolívia ao fim da Patagónia, espreitando desertos e glaciares, trepando montanhas e rastejando pelas planícies, tremendo de frio e transpirando de calor, bebendo o silêncio da infinita solidão e o bulício de agitadas cidades, deslumbrando-se com o colorido da paisagem e com o minimalismo monocromático do deserto. O km 2058 apoderou-se de mim e fiquei especado a olhar para a pequena placa. 2058 até ao fim… da ruta 40 – para o Ushuaia ainda há que adicionar umas cinco centenas de quilómetros. Seja como for, e independentemente da rota que venha a tomar – seguramente nem sempre de mão dada com a 40 – a marca de 2058 tem um peso assinalável, com tanto de excitante e apelativo quanto de apreensivo respeito.
O encontro com a mítica ruta 40…
Bariloche estava “a um passo”, na margem do enorme lago Nahuel Huapi. Esperava reconhecer a estrada que liga a aldeia com o nome do lago, a Bariloche, mas nem o menor vestígio me soou familiar… Há praticamente uma década, na primeira aventura patagónica em bicicleta, com o camarada Serra, palmilhámos um pouco esta zona e o dia 31 de Dezembro de 2002, depois de uma jornada memorável que começou no lago chileno de todos-os-santos, continuou pelo fabuloso caminho de Pehula até ao lago Frias – que surge, lindo, nos “diários de motocicleta” – que cruzámos em barco, seguiu por mais uns escassos quilómetros em bicla até ao lago Nahuel Huapi onde, mais uma vez, saltámos para o barco que, lusco-fusco, nos largou junto à ruta 40, culminando o dia ciclístico com uma dúzia de quilómetros a pedalar às cegas, no escuro, sem bermas e com os carros a fazerem tangentes sucessivas, ficar-me-á na memória! Claro que o bem regado jantar de fim de ano, os tábaños, as cascatas do lago todos-os-santos, o Tronador, o Ozorno e o Cerro Agudo, o rípio, os “contra-relógios” que tínhamos de fazer, pedalando, para chegar a tempo do próximo barco – sincronizados com o autocarro turístico que faz as ligações – a cor do lago Frias, o turista espanhol que, no posto fronteiriço junto ao lago, tirou o boné e mo ofereceu como “troféu” da performance ciclística… são apenas as memórias mais fortes desse dia impar… Em Bariloche, enquanto cidade, não descobri qualquer encanto digno de nota… Ops! Repetem-se as geladarias fabulosas, com gelados divinos e baratíssimos – os gelados e bolos são as únicas coisas verdadeiramente baratas da Argentina – as pastelarias e casas de chocolate, uma trilogia difícil de ignorar, uma tentação difícil de evitar…não sei se alguma vez jantei apenas gelado e bolos, pois hesitava entre o balde de 250 e 500 ml, com vantagem para o segundo e quando entrava numa pastelaria, nunca eram menos de seis… Bariloche, a única cidade de dimensão na região dos lagos, com uma das maiores – amigos, são 120 kms de pistas, mais os fora de pista!! – e, seguramente, mais belas estâncias de esqui da América do Sul, está completamente virada para o turismo. Os hotéis, comes e bebes e lojas, são porta sim, porta também. Infelizmente o tempo esteve miserável, quer para esquiar quer para visitar os lagos circundantes. Ainda assim não ia perder a oportunidade de conhecer o Cerro Catedral e os cento e vinte quilómetros de pistas… Há autocarros de hora a hora, com paragem mesmo em frente ao hostel backpacker e, esperançado na melhoria do tempo, apanhei o autocarro das 9h15, lançando-me ao frio e à chuva. A viagem de autocarro não dura muito mais de meia hora, bordejando o lago Nahuel Huapi, quase invisível debaixo do manto de chuva e nuvens espessas. A estrada enfrenta a montanha e parece que entramos no limbo, flutuando numa nuvem de flocos de neve que se movem erraticamente, chocando por fim com os vidros do autocarro. Chegado à base do Cerro Catedral, não diria que estava no coração de uma das maiores estâncias de esqui da América do Sul, pois o movimento era residual, sobressaindo, ainda assim, a algazarra de inúmeros patrícios brasileiros. O tempo melhorou um pouco – pelo menos já se via onde por os pés! – e aventurei-me às pistas. Não sei se é uma medida especial de charme, resultante do nefasto efeito das cinzas do Puyehué, que mantêm o aeroporto fechado e o turismo de inverno pelas ruas da amargura, mas os chocolates que distribuíam nas bilheteiras eram deliciosos…
Uma lástima o mau tempo no Cerro Catedral
Sobre a jornada de esqui, não há muito a dizer, tão madrasta foi a meteorologia. Mas tenho algumas dedicatórias para os meus “copins de route”: fiz um fora de pista para o Nelson, uma preta para a Ana, meia verde, aos trambolhões, para a Sissi, uma azul – lindíssima, pelo meio das árvores – para o Zé, uma vermelha para o Ricardo (Fernandes) e uma verde em V, sem cair, para a Isabel! Para o Tope e Ricardo Lopes não houve nada porque não faço snowboard e nunca vos vi esquiar… As quedas foram muitas – a ajudar à festa, andava com os óculos de ciclismo, embaciados, gotejantes… e sem eles era impensável – a visibilidade, pouco mais que nula, e boa parte do dia nem sei por onde andei. Lamentavelmente, pois, quando se viam, as pistas eram fabulosas e a paisagem mais ainda. O João Paulo, o recepcionista do hostel, de uma simpatia inexcedível e falando português perfeito, com sotaque brasileiro, claro, ainda tentou convencer-me a ficar mais dois dias, pois na quinta-feira estava de folga, as previsões meteorológicas eram boas e íamos com mais um holandês, um francês e outro argentino, uma equipa internacional, bater os cento e vinte quilómetros “todinhos”. Mas Ushuaia dista 2500 quilómetros e não sei quantas surpresas…
Manhã branca em Bariloche…
Nevou forte durante a noite e quando espreitei pela janela do quarto, um espesso manto branco cobria toda a cidade. As ruas, já limpas pelas máquinas e com o trânsito matinal a fluir, pareciam grossos traços negros numa gigante folha de papel branco. Passava das dez horas quando pus o nariz fora da porta e me lancei ao caminho. É impressionante o diferencial de temperatura do interior para o exterior… é passar do clima tropical ou temperado para o gelo. É das coisas que não percebo, porque raio se hão-de aquecer as casas a ponto de andar de t-shirt, quando a temperatura natural do exterior é tantos graus inferior… Sem modéstia nem vaidade, nunca como hoje me senti o centro de todos os olhares. Só faltava os carros pararem e ficarem a olhar para mim. Sorrisos irónicos, incrédulos ou de espanto; polegares levantados, acenos de cabeça – do género, este ensandeceu – sorrisos largos, interrogatórios; levei de tudo durante os quatro ou cinco quilómetros até à saída da cidade, incluindo desagradáveis salpicos de neve escura, projectados pelos carros.
Sem correntes, a saída de Bariloche fez-me transpirar
Para sair de Bariloche em direcção ao sul, tive de transpor uma curta mas acentuada subida. E o que receava acontecia: com o piso enlameado pela neve, a aderência era baixa, a tracção mínima e a segurança quase nula. Para mim, era o teste que esperava mais tarde ou mais cedo. Não sentir os pés nem as mãos, congelados; percepcionar o nariz e as orelhas como blocos de gelo; lacrimejar e sentir o nariz gotejar – não sei bem o quê – não me preocupavam. Mas a ciclística, sim, preocupava-me e não tinha qualquer alternativa. Felizmente a subida era curta, os condutores irrepreensíveis – excepto um ou outro que me encharcou com a neve que projectou – e, passada a zona urbana, o trânsito diminuto.
Estrada pela eternidade
Ultrapassada a tensão da cidade e os primeiros quilómetros de adaptação ao piso, pude levantar o olhar da estrada, distender os músculos, abrir o peito à natureza e deixar-me flutuar pelo cenário deslumbrante que me rodeava. O manto branco de neve cobria todo o vale, cavalgava as montanhas suaves, fundia-se com as nuvens da mesma cor. As árvores, docemente vergadas ao peso da neve, salpicavam de verde-escuro a paisagem. Os lagos que ladeiam a estrada, são espelhos de chumbo, ora estilhaçados pelos reflexos sublimes da montanha nevada, ora acolhendo a serenidade do universo. E, não pela primeira vez, dei por mim a sorrir ao acaso. Tinha deixado Bariloche com a triste sensação de ir perder uma magnífica ida ao Cerro Catedral, não tanto pelo esqui, mas pela paisagem grandiosa e única, com os lagos à ilharga, o vulcão Tronador no horizonte, a floresta verde e branca por onde serpenteavam quilómetros de pistas de “todas as cores” e, afinal, encontrava-me no coração de uma paisagem grandiosa, sublime. Mais uma vez senti a perfeição e a força da natureza, a ordem natural do cosmos e a insignificância humana. Por mim, não me imaginava num local mais perfeito…
Uma manhã inesquecível, em que dá vontade mandar parar o tempo e eternizar o instante
De lago em lago, de curva em curva, de suave subida em aprazível descida; de fotografia em fotografia, de aceno em buzinadela dos escassos transeuntes, da “Internacional” para a “Grândola”, da Violeta Parra para a Chavela Vargas, deixava-me flutuar, deslizar, inebriar; sair do tempo, do espaço, do corpo; e regressar com mais intensidade e prazer à exacta porção de espaço e tempo em que me encontro em cada momento.
O mau da fita…
There was a time… boa colheita!!
El Bolsón parece estar à distância de escassa vintena de quilómetros. Agora pedalo velozmente pelo vale plano. Há muito que passei a sentir também os pés – a última parte do corpo a descongelar – quando descongela – e pedalo com a agradável sensação do corpo quente. A chuva ameaça cair a qualquer momento e aborreço-me com os deuses. Que porra, mais uma vez, por escassa meia hora, terei de chegar encharcado ao fim da jornada!? Já lá vão mais de cem quilómetros, à média de vinte e um quilómetros hora (ok, não esquecer que é uma BTT, com pneus grossos e cinquenta quilos de bagagem!!), mas sinto-me à-vontade e puxo a velocidade para os 30-35 km/hora. Ainda tenho esperança de me esquivar à “mais grossa” e terminar em grande, o dia fabuloso que se vai escoando. E assim foi! Por vezes tenho diálogos azedos com a natureza e nem sempre saio mal, parece-me…
Árvore divina…
El Bolsón é uma bonita cidadezita, localizada num vale cálido, um autêntico microclima, onde se produzem cerejas, morangos, framboesas – a capital das “frutas finas”, como se auto-intitula – para além de explorações de trutas e respectiva transformação, queijarias e a maior diversidade de artesanato que vi na Argentina, so far. É uma cidade-aldeia onde a vida parece decorrer devagar, com gosto, paixão mesmo, centrada em pequenas coisas e no equilíbrio do homem com a natureza, a ecologia e a sustentabilidade. Ah!, e geladarias, pastelarias e chocolaterias… O Cláudio, marido da simpaticíssima Valéria, proprietários do Pehueina hostel, não podia ser mais brutal na conversa que tivemos antes de deixar El Bolsón rumo ao sul… “a Patagónia Argentina é uma m…, deserto e mais deserto, vento e tempestades, frio e neve, centenas e quilómetros sem vivalma, numa monotonia e desolação total. O marketing vende-a como algo místico, romântico, deslumbrante, mas é uma trampa. Daqui a quarenta quilómetros acaba este microclima temperado e ameno, vais apanhar o pior clima que possas imaginar e só deserto. São 900 quilómetros de fantasmas e mortos. Não há pessoas… Pelo lado chileno, sim, a carretera austral leva-te por lagos, rios, com vistas fabulosas pela cordilheira andina. Mas é verdade que nesta altura do ano, em pleno inverno, deve haver muitos troços intransitáveis e é perigosa. “Mira”, mesmo que vás pela ruta 3, a “costera”, é a mesma porcaria. No Brasil a estrada bordeja o mar e a vista é bonita, mas na Argentina nem isso: é interior e pelo deserto… feia, feia! Se quiseres, tenho amigos “camioneros” chilenos que fazem esta ruta, até Punta Arenas, falo-lhes e dão-te boleia até lá, ou onde quiseres ficar, e depois prossegues para o Ushuaia, que não é muito melhor…” Assim foi o meu amanhecer, animado e moralizador. Fiz um longo silêncio e disse-lhe que ia pensar um pouco – apenas para não mostrar um absoluto menosprezo pelo que me acabara de transmitir. Não fiz 28000 quilómetros, pedalando por “sendas, monte e vales” para desistir de chegar ao Ushuaia pedalando. Também não lhe ia explicar que esse tipo de paisagem, dureza e monótona solidão, fazem parte de um todo, têm lugar na aventura de uma vida, são o sal e o vinagre que temperam o manjar… Não era a primeira vez que me intimidavam com um cenário um pouco menos que apocalíptico sobre o trajecto que me esperava. Estou bem lembrado dos condutores turísticos do hotel Mitru, em Tupiza, de quão realista foram os seus alertas e como me foi doloroso transpor o sul da Bolívia… Até Esquel eram mais de cento e ointenta quilómetros, muito dificilmente transponíveis num só dia, tanto mais que, com a conversa e o enorme pequeno-almoço, eram quase dez e meia quando comecei a pedalar. À medida que ficou para trás El Bolsón e o fértil vale, foram rareando as casas, as “chacras”, as cabañas, o trânsito, até praticamente desaparecerem os vestígios humanos. Ainda assim, no mapa surgia o “pueblo” de Epuyén cerca de cinquenta quilómetros após El Bolsón. Caso me surpreendesse e, contrariando a informação do Cláudio, tivesse alojamento, pernoitaria por ali, para uma retemperante e moralizadora jornada. E alojamento era o que não faltava, não na aldeia propriamente, onde creio só existirem as cabañas Velásquez, mas nas imediações do lago, que dista apenas sete quilómetros, com uma lindíssima localização, encravado num vale tranquilo e verdejante, rodeado por duas cordilheiras nevadas. Passei lá uma bela tarde ensolarada, tipo “bife na pedra”, esparramado de olhos ao sol e costado na pedra quente e dura.
Lago Epuyén
Dois dos prognósticos do Cláudio concretizaram-se mal deixei Epuyén: a paisagem desértica, de onde desapareceu praticamente todo o tipo de vegetação, excepto uns tufos de erva mirrada nas zonas mais planas, que parecem suficientes para alimentar os enormes carneiros patagónicos; e o vento que, sendo assustadoramente forte, por enquanto não é adverso – é quase sempre favorável… Pensar que mais tarde ou mais cedo vou enfrentar este menino, bem cara-a-cara, não deixa de me inquietar.
De Epuyén a Esquel
De Esquel a Tecka
Tecka
De Tecka a Gobernador Costa
Com o relevo praticamente plano e o vento predominantemente a favor, os quilómetros voam e rolar a média superior a 20 kms/h, sem esforço, é pura diversão ciclística. Chego ao destino pelas duas ou três da tarde, com uma centena de quilómetros percorridos. Esquel, Tecka, Gobernador Costa, Facundo, são pontos no mapa onde nunca sei com o que posso contar. Esquel é uma cidade “grande”, com estância de esqui e tudo, mas Tecka, Costa e principalmente Facundo, são aldeias onde encontro alojamento e repouso, nada mais.
Estranho monumento à “difunta correa” … desde o México, creio, que vejo estes “mausoléus”!
Ah! há mais qualquer coisa… Em Costa, era Domingo à tarde e dei por mim no campo de futebol de cinco. Faltava um jogador para completar as equipas e fui convidado a juntar-me aos craques que, no fim da peladinha, queriam contratar-me como guarda-redes, depois da mão-cheia de defesas vistosas! Só pensava: “que disparate, e se me lesiono…” mas continuo incapaz de resistir a uma partidinha de bola, ou a dizer “não” se falta um tapa-buracos… e recordei com saudade os compinchas e as jogatanas dos Domingos, em Carnaxide. Vão quatro dias de patagónia profunda, aquela que o Cláudio me anunciou. A ruta 40 é uma faixa negra, recta e plana, que se extingue na linha longínqua do horizonte. Carneiros, que mais parecem grandes novelos de lã, rebuscam alimento na mirrada vegetação rasteira, mais ou menos da cor do solo arenoso. As colinas e cerros que despontam acima da planície, alternam o branco da neve com o castanho torrado, consoante a sua posição face ao sol. Aliás, mesmo nas bermas da estrada, onde não chega o sol, subsiste o gelo e a neve. Por enquanto vão surgindo algumas estâncias “ganaderas” à beira da estrada, embora muitas tenham um ar abandonado… é com elas que conto lá mais para sul, para pernoitar sob um tecto, pois não tenho grande apetite de erguer a tenda no meio do vazio, do frio e do vento, quiçá dalgum nevão antipático. Os carros passam a velocidades estonteantes, apesar do mau estado do piso. Os condutores, quase invariavelmente, acenam, buzinam, fazem sinais de luzes, aplaudem mesmo, numa atitude amistosa. Mas se os carros ligeiros são exclusivamente argentinos, parece-me que em trânsito entre a costa atlântica e as estâncias de esqui, já os camiões são praticamente todos de matrícula chilena, seguramente a caminho, ou provenientes, da patagónia chilena, de Punta Arenas ou Puerto Natales. O reflexo da monotonia da paisagem, da falta de pontos de interesse, são 500 quilómetros percorridos em quatro dias, à média de 22,3 Km/h. Por vezes dou por mim a olhar o infinito, sem qualquer ponto onde me fixar e interrogo-me se será assim até ao Ushuaia, uma planície infinita e monocromática, gelada, ventosa e com alguns carneiros por companhia…
De Facundo a Rio Mayo, para além do frio…
…assustou-me este bicho desconhecido
De Facundo a Rio Mayo tive o meu baptismo de “vento contra”, de mão dada com uma vintena de quilómetros de rípio agreste, com muita pedra e seixo solto. Não foi demolidor porque a etapa era pequena – pouco mais de cinquenta quilómetros. Amanhã será mais um teste, a caminho de Perito Moreno – a cidade, não o glaciar, que esse está longe e não decidi se o revisitarei… Rio Mayo, tal como todos os pequenos, ou minúsculos, povoados dispersos neste deserto patagónico, não tem qualquer ponto de interesse. Surgem no horizonte como um agregado geométrico de pequenos edifícios, mais com aspecto de armazéns do que casas com preocupações estáticas ou arquitectónicas. Padaria, loja de comunicações, supermercado ou tienda, loja de roupas, bomba de gasolina – nem sempre – e pouco mais. As ruas são de terra, as construções de madeira e zinco, a população escassa e raramente se avista, pelo menos na estação fria e invernosa. O trânsito é diminuto e muitos dos carros têm seguramente décadas, arrastando-se num ruído ensurdecedor, envoltos em nuvens de fumos e, não raramente, aos solavancos. Mas Rio Mayo tem uma particularidade que me é cara… Pernoitei numa das duas cabaña do Leopoldo Arroyo, um cinquentão grisalho, alto, forte e de expressão muito simpática. Depois de ligar o aquecimento da gelada cabaña, disse-me que me ia oferecer um corta-vento da equipa de atletismo dele. Quando voltou com o prometido regalo, fiquei a saber que naquele pueblo de três mil habitantes, há uma equipa de trinta ultra-maratonistas – correr por amor, assim se designa a equipa – que, apenas por prazer e com intuito filantrópico, corre ultra-maratonas de 2 000, 3 000 e mesmo 4 000 quilómetros. Já correram do atlântico ao pacífico, em nove dias, circundaram a província de Chubut, etc.. Fazem-no em estafeta e normalmente com o objectivo angariar fundos para alguma obra social, por causas ambientais e sociais. A próxima iniciativa que o Leopoldo tem em mente é pôr a equipa a correr durante 15 dias pelas ruas da pequena Rio Mayo para angariar fundos para construírem um infantário. Procura quinze empresas patrocinadoras e cada uma deverá patrocinar um dia, doando um peso por quilómetro percorrido. Fiquei deveras impressionado com este invulgar ninho de ultra-maratonistas, todos não profissionais, que treinam quase todos os dias, muitas vezes longas distâncias, nas extremas condições do inverno patagónico… A partir de Rio Mayo, a ruta 40 intercala o rípio com o asfalto. O rípio, por si, não me atemoriza, mas quando o piso se encontra enlameado, ou melhor, “enlamenevado”, quando o seixo, a pedra e a areia se combinam numa cama deslizante, onde as rodas delgadas da Dempster não encontram pontos firmes, então a coisa fia mais fino… Os primeiros cinquenta quilómetros após Rio Mayo, são de rípio, nem sempre mau, felizmente, mas claro que a velocidade é outra e pedalar a 15 kms/h já é um feito, tanto mais que o vento forte sopra de oeste, zunindo-me todo o dia nos ouvidos. Algo que estou careca de saber, mas continua a surpreender-me, é que quando não dou pela existência do vento, isso não significa que não sopra, mas sim que me soprar na nuca. E quando mudo de direcção e o sinto, furioso e gelado, na cara, congratulo-me por não ter de o enfrentar todo o dia… Hoje fez-me andar de asa quase todo o dia e, aliado ao frio cortante que o sol longínquo não conseguiu amenizar, fez-me lacrimejar incontrolavelmente toda a manhã. Cinquenta quilómetros de rípio e surge o negro asfalto… Como é doce a sensação de passar do pesado rípio para o firme asfalto. O velocímetro “dispara”, os quilómetros correm muito mais rápidos, a suavidade da bicicleta sente-se em todo o corpo. Só o frio e o vento persistem… não sinto os pés, que estão tão frios quanto os pequenos charcos de água na berma da estrada, com uma espessa camada de gelo. A mão que vai do lado do sol, não me dói, está mesmo confortável, mas a outra, por sinal do lado do vento e da sombra, está dolorosamente fria. Com os pés, é mais ou menos o mesmos… é como se tivesse o corpo separado em dois. Quando paro para “almoçar”, percorridos exactamente oitenta quilómetros, sinto dificuldade em controlar os movimentos das mãos e vou alternando a mão que segura a sandes, mantendo a outra bem perto da “parte mais quente do corpo”!! Aliás, se estou numa de confissões e confidências, cá vai mais uma… entre o quilómetro dez e quinze vem a irresistível vontade de urinar. E fico na expectativa, a ver se vai sair líquido ou sólido! Imagino que a urina vai sair em bolinhas, como granizo… felizmente ainda não aconteceu!! As misérias do homem, sujeito à violência da natureza… Infalível parece ser o mapa e o velocímetro. Dois ou três quilómetros antes dos 126 previstos, avisto Perito Moreno no meio de arbustos despidos, de ramos erguidos ao céu do desolador deserto. Quando faço o check-in no camping municipal – não que vá acampar, mas têm uns dormitórios baratos e quentinhos – recebo a boa notícia de que o Glorioso limpou o Twente e passámos à fase de grupos da champion. Só espero integrar o grupo do Barcelona…
De Perito Moreno a Bajo Caracoles… palavras para quê? À que cerrar é o dente…
Mais uma vez terei de sair para a estrada cedinho. Os quase cento e trinta quilómetros, até Bajo Caracoles, noventa de asfalto e quarenta de rípio, em constante montanha russa, não serão pêra doce e quero evitar ao máximo acampar no imprevisível e absolutamente inóspito deserto de gelo e vento. Quando me levanto, às oito horas, a luz do dia ainda é de um azul embaciado, mas às nove, quando salto corajosamente com a Dempster para a estrada, já o intenso e translúcido azul se estende por todo o horizonte. Pelas minhas fontes, tenho andado a pedalar entre os 500 e 900 metros de altitude o que, não sendo muito, nesta latitude e estação do ano, significa pedalar na neve. E hoje, mais que em qualquer outro dia nesta viajem, pedalei praticamente todo rodeado de neve espessa. Quando o asfalto terminou e surgiu a placa a indicar o desvio para a direita, hesitei e acabei mesmo por seguir em frente, pela negra faixa de asfalto da estrada em construção, com escassos milímetros de espessura, onde as rodas da bicicleta ficavam marcadas. Mas não muito longe, o alcatrão negro ficou cada vez mais pintado de branco e tive mesmo de caminhar com a Dempster sob a espessa camada de neve, até conseguir novo encontro com o péssimo rípio da ruta 40, que percorri em esforço até Bajo Caracoles – a mais pequena de todas as aldeias, mas com um hotel “enorme”. Acabava de me instalar no gelado quarto do hotel bajo caracoles, depois de sorver um delicioso café com leite – meia de leite, em designação lusa – quando pressenti um intenso movimento de malas a deslizarem no corredor e vozes que só podiam ser de turistas. Surpreendi-me que nesta época, e neste fim do mundo, pudesse haver mais algum louco… Assomei à porta do quarto e deparei-me com o Daniel e a Jasmine, dois jovens que pareciam transportar um autêntico apartamento inteiro na bagagem, tantas e tão grandes as malas que os rodeavam!! E não consegui imaginar maior contraste, entre a minha bagagem e a deles… Afinal a Jasmine o Daniel, para além de extremamente simpáticos, têm algo de fascinante para mim: são ambos fotógrafos profissionais. Ela germano-italiana, nada e criada no sul de Espanha; ele canadiano, do Quebec, partilham, entre outras coisas, o projecto wild image project (wildimageproject.com), um trabalho fotográfico sobre o sul da Argentina. A Jasmine é particularmente comunicativa e amável, surpreendendo-me a precisão, o entusiasmo e a vastidão de coisas que sabia da Argentina, recomendando-me o que devia ver, o que poderia evitar, falando de cada lugar com um domínio absoluto. A explicação é, afinal, simples: já tem três livros publicados sobre a Patagónia e/ou Argentina e faltam-lhe mais dois para concluir o projecto… Claro que foi muito fácil, e excitante, a conversa ao jantar! Queriam saber que rota segui, há quanto tempo, quilómetros, etc.. locais preferidos, medos. E quando disse que tinha ciclado o Salar do Uyuni e o sul da Bolívia, de Tupiza à laguna verde e fronteira com o Chile, a Jasmine abriu imenso os olhos e a boca, toda ela espanto, quase terror. Conhecia bem a zona, pois foi aí que, em 1994, ao visitar essa belíssima e desoladora região, decidiu ser fotógrafa. Não compreendia como podia alguém aventurar-se de bicicleta por aquela área, especialmente sem GPS – ela fá-lo de carro, mas com GPS e … receio. Bem, para concluir a estória do encontro com estes dois jovens, que fiquei a invejar, falta dizer que viajam numa pick-up da VW, que a cedeu a troco de lhe tirarem fotografias em sítios lindos do trajecto, o que não há-de ser difícil… como raio não ia eu ficar roído de inveja com estes dois… Ah, e que a Jasmine me “regalou” um par de grossas peúgas de lã – diz trazer mais de vinte na tal enorme bagagem. Tralha arrumada e devidamente equipado para o frio, incluindo as peúgas “novas”, avanço para a porta, ao fundo do longo corredor do hotel. E quando a abro, ainda antes de sentir o beijo gelado da manhã na cara, constato que está a chover, ou melhor, nevar… com suavidade mas a nevar. Entre a decepção e o regozijo, regresso ao quarto quentinho e preparo-me para viver um dia de total descanso, seguramente actualizar a escrita, tantos dias esquecida, e fazer nada vezes nada. Afinal, desde Bariloche que tenho pedalado incessantemente, percorrendo mil quilómetros em nove dias… As pernas vão agradecer, tanto mais que as próximas centenas de quilómetros serão ainda mais duras, não só pelo rípio, mas também pelo crescente frio e vento e, a novidade, vou ter de acampar algures, pois até Governador Gregores não há mesmo qualquer povoado… talvez uma estância, dizem-me no hotel, mas não é seguro, pois muitas estão desabitadas no inverno. Enquanto esperava pelo demorado jantar, já noite dentro, entrou pela porta do bar uma mulher jovem com ar angustiado. Vinha de Governador Gregores e o caminho estava tão mau, tão enlameado que o carro patinava, fugia, afundava-se e batia constantemente com o fundo na terra. O resultado é que várias luzes do tablier estavam ligadas e a temperatura muito elevada. O Nestor, o dono do hotel, bar, mercearia, bomba de gasolina, foi camionista, tem bons conhecimentos de mecânica e autos e, depois de vestir o fato térmico, foi tentar ajudar a moça. Quase uma hora depois, regressou mais ou menos enlameado e com o sorriso de quem tinha conseguido pôr o carro em marcha de novo. Olhou-me e disse com ar solene que eu não conseguiria transpor de bicicleta os quarenta quilómetros após o rio Olnie. O carro desta rapariga estava completamente enlameado e travado com lama entre as rodas e os guarda-lamas. A lama parece cola, rematou. A única solução parece ser apanhar uma boleia em rio Olnie… Jantei a matutar na situação. As condições para sul são cada vez mais inóspitas, o frio mais intenso, a neve mais frequente, os caminhos já não são de rípio mas terra que se transforma em lama com a chuva e o degelo da neve. Ontem, a Jasmine dizia que a ruta 40, entre Gregores e Três Lagos está fechada devido à neve. Tenho bem presente na memória o episódio entre las Bombas e o parque nacional Pan de Azúcar, no Chile, em que, em apenas dez ou vinte metros, fiquei completamente bloqueado, atolado em barro que parecia areias movediças. E recordo o esforço e desespero para sair de lá…
Mais do mesmo, de Bajo Caracoles a Rio Olnie
Um dia de cada vez. Se ontem o dia rompeu a nevar, hoje acordou com má cara, cinzento e carregado de nuvens. Mas os próximos trinta quilómetros de estrada prometem ser de asfalto, o que é bom para o corpo e a alma. É impressionante o efeito da altitude na paisagem, na temperatura, no clima… bastou a estrada subir uns trezentos metros e o planalto vestiu-se completamente de neve, só com a negra nesga de asfalto destoando, rumo ao infinito.
Rio Olnie…a vida custa a todos
Junto ao rio Olnie uma pequena manada de bovinos olha-me, imóveis, tristes, inertes, esqueléticos. Não têm a vida fácil estas criaturas, que dificilmente encontram um tufo de erva amarelenta, seca, rija por certo, que perfure a espessa camada de neve… Acima, no pequeno abrigo de uma colina, surge o estaleiro da Decavial, a empresa que está a asfaltar um troço da ruta 40 – de rio Olnie a las Horquetas. A minha jogada é conseguir boleia de um dos carros da empresa, que vá em direcção a las Horquetas, para transpor os fatídicos 30 ou 40 quilómetros de barro. Um par de soldadores, enormes nos grossos fatos térmicos que os cobrem da cabeça aos pés, martela e solda uma máquina ferrugenta. Conto a minha estória – que vou para Gregores, mas parece que a estrada está muito má, com muito barro, difícil para bicicletas – e um deles confirma e remata categórico que é completamente impossível passar de bicicleta. Então pergunto se não haverá nenhum carro ou camião da empresa que vá para lá e me possa levar. Diz-me que por agora não, não vai carro nenhum. Faço um ar infeliz e acrescento que então vou pôr-me à beira da estrada, tentar ir “a dedo”. São onze e meia, o sol despontou timidamente por trás das nuvens e o vento acordou. Ali fico, especado, à espera que passe alguma carrinha ou camião que me leve. Do estaleiro sai uma e depois outra pick-up. Ambos os condutores param para conversar comigo mas ambos vão em sentido oposto. O sol aquece um pouco e a neve começa a derreter, gerando vários fios de água que se juntam num pequeno ribeiro, estrada abaixo, arrastando barro e gerando a fatídica lama que me impede de prosseguir. O dia avança devagar, nem um carro passa em qualquer dos sentidos, da cabeça não me sai a “intriga internacional”… Pelas duas e meia avisto uma carrinha no sentido que me interessa. Uau, quase rejubilo. Estico o polegar convicto mas condutor e acompanhante parecem nem dar por mim, ignorando-me completamente. Desanimo, incrédulo. Como é que num sítio destes podem recusar boleia a um ciclista, ainda por cima com o carro ideal para levarem, sem complicações, a bicicleta… Ali parado, pelas quatro horas o frio e o vento tornam-se insuportáveis. Alem do mais, mesmo que apanhasse uma boleia, já não poderia pedalar muito. Decido voltar ao estaleiro e falar com o responsável. Vou pedir autorização para pernoitar ali, num canto de uma qualquer barraca, e boleia na carrinha das oito, na manhã seguinte – às oito da manhã e seis da tarde há substituição do guarda/vigilante de outro estaleiro, cerca de quarenta quilómetros adiante, na “minha” rota. Para além dos meus pedidos, ainda tive direito a um quarto só para mim, uma jantarada, chá e bolachas o resto da tarde, uma jogatana de ping-pong e muito futebol na televisão – para amantes de futebol, não há como a Argentina!! Devem começar a transmitir jogos aí pelas duas da tarde de sábado e sucedem-se, continuamente, até por volta das dez da noite, com igual sessão no Domingo e, parece-me, alguns jogos ainda na quinta, sexta e segunda-feira! Inacreditável, mas devem passar quase todos os jogos, em directo, na TV…
De Rio Olnie a Gobernador Gregores
Às oito da manhã ainda é praticamente noite e o frio corta. O animado vigilante que vai render o colega, diz que estão 17º negativos… depois de empoleirar a tralha na carrinha, não sinto várias partes do corpo. Poucos quilómetros depois de deixarmos o estaleiro, percebo porque a rapariga ia dando cabo do carro no dia anterior… a estrada, a esta hora da manhã e com o frio, não é um atoleiro mas sim uma pista de gelo. A carrinha ora desliza como uma bailarina de patinagem artística, ora solavanca, endiabrada, com as rodas enfiadas nos trilhos fundos, antes abertos na lama e agora duros como cimento. Seria impossível fazer este percurso de bicicleta. De manhã pelo gelo; de tarde pela lama… Mais uma vez, bastou a estrada baixar escassas centenas de metros e o gelo foi desaparecendo, surgindo o inóspito deserto. Em consequência, o piso melhorou paulatinamente e já parecia transitável na maior parte do percurso. Cerca de quarenta quilómetros percorridos, terminou a minha boleia. O sol elevava-se devagar num belíssimo céu azul, de uma densidade e saturação impressionantes. Ao longe, para ocidente, a cordilheira andina estendia-se a perder de vista, numa infinidade de cerros e cumes agudos, brilhantes de neve, perfurando o céu. Mais vinte e oito quilómetros de rípio, felizmente transitáveis, porque congelado, uns sessenta de asfalto, mais umas dezenas de rípio e trinta finais em asfalto, até alcançar Governador Gregores! Mais uma dificuldade parecia ter ficado para trás. Amanhã há que decidir qual o trajecto seguinte: continuando pela ruta 40, para Três Lagos, Calafate e revisitar o deslumbrante glaciar Perito Moreno; ou seguir para Este, para Piedra Buena e Rio Gallegos.
Números redondos…
Quando estou perante a tomada de decisão, lembro-me frequentemente do general Kutuzov e das suas (in)decisões enquanto esperava Napoleão… tal como ele, passe o pretensiosismo, não raramente a decisão parece surgir por si. A ruta 40 está fechada pela neve e lama: intransitável, desta vez não só para bicicletas. A única alternativa para Três Lagos e Calafate é seguir pela ruta 27 e, cerca de 115 quilómetros depois, tomar a ruta 288, andando “para trás” quase 190 quilómetros.
Foi-se a neve mas nem tudo são rosas…
Rever o Perito Moreno estava nos meus planos. É um dos locais mais mágicos, puros, idílicos, que conheci. Aquela parede vertical de gelo translúcido, que devia ser branca de neve mas é azul celeste, como se houvessem colocado focos de luz no interior do gelo, nas suas cavidades caprichosas, de onde irradiam tons vários de azul que salpicam as arestas vivas, os cumes pontiagudos, os recantos e as sombras, num jogo de cor, brilho, luz, silêncio. E a cadência dos blocos de gelo que, continuamente, se desprendem dos sessenta metros de altura, e mergulham com estrondo, num eco abafado e profundo, nas águas verdes salpicadas de brancos pedaços de gelo flutuante. A magia do lugar merece todas as visitas e, desta vez, contava fazer o passeio de barco para poder “abraçar” a pureza absoluta da natureza… mas o general inverno anda por perto e vou contentar-me com os slides que ficaram em Lisboa. Quem sabe, diz-se que não há duas sem três… e na Argentina vai ficar muito por ver… Poucos quilómetros depois de deixar Gregores, passa por mim uma pick-up negra que se detém adiante. De dentro sai o Gonçalo, o dono da hospedagem Mariel com um par de luvas na mão. Viu as luvas velhas e rotas que deixei no quarto e, pensando que me tinha esquecido, veio no meu encalço com elas. Desfiz-me em desculpas e agradecimentos dizendo-lhe que já não as queria pois estavam velhas. Mandei-as para cima da carrinha e ele voltou para casa com um sorriso e eu continuei pedalando, recordando que era a segunda vez nesta viagem que, querendo desfazer-me de algo, vinham ao meu encontro para me entregarem o acessório em causa… sou mesmo sortudo, ou há muitas pessoas neste mundo muito melhores e mais generosas do que tantas vezes imaginamos. Pedalava rapidamente pela inerte e monótona planície patagónica. Hoje nem tinha neve a salpicar a paisagem, nem cerros, grandes ou pequenos, para transpor. Apenas alguns guanacos pastavam longe da vedação da estrada e casais de patos debicavam o solo arenoso, esvoaçando umas dezenas de metros à minha passagem. O asfalto deveria terminar quando a ruta 27 se encontrasse com a 288. A partir daí teria umas dezenas de quilómetros de rípio e depois mais quarenta de asfalto até Piedra Negra, mas isso só amanhã… Quando o contador apontava 113 quilómetros, chegou ao fim o asfalto. Em teoria, que é como quem diz, no mapa, a estância Júlia deveria estar “ao virar da esquina”, sendo o único local habitado onde poderia pernoitar. E pouco adiante lá surgiu o portão branco, com uma bonita alameda de árvores rectilíneas e altaneiras. Mas o portão estava fechado a sete trancas e a tabuleta indicava três quilómetros para a estância. Ainda equacionei saltar o portão com a bagagem e acampar ali, no pequeno largo, debaixo das árvores, mas na minha cabeça travava-se uma batalha: tentar chegar a Pedra Buena; ou ficar por ali. O portão fechado ajudou à decisão e continuei a pedalar pelo rípio cada vez mais solto e irregular. Era melhor não fazer contas… a quinze quilómetros por hora, tinha jornada pela noite dentro… e o vento parecia menos cooperante que durante o dia. O piso transformou-se sorrateiramente e o rípio irregular deu lugar a uma camada de barro cada vez mais macio e pegajoso – pelo menos era o que as pernas me diziam e o conta-quilómetros confirmava. Ao quilómetro 133 da jornada, deu-se decisão fatídica: a estrada bifurcava em duas vias paralelas, seguindo pela esquerda o percurso em construção e pela direita o improvisado caminho “de serviço”. Políticas à parte, decidi tentar a sorte pela esquerda e dei-me pessimamente. Em escassas duas centenas de metros estava não a pedalar mas a arrastar-me pelo barro da estrada. Embora a via de serviço distasse apenas uns 150 metros, não conseguia alcançá-la porque o espaço que as separava era uma autêntica vala enlameada. Seguindo a táctica do Chile, retirei alforges e atrelado, fiz 180º e comecei a transportar uma coisa de cada vez para o ponto de bifurcação. Mas quando me virei para trás, reparei no pequeno estaleiro que tinha visto há pouco e que, afinal, incluía uma minúscula barraca de madeira. Eram quase seis horas, Piedra Buena deveria distar uns largos 50 quilómetros, pelo menos dez deles em barro, o céu estava carregadíssimo e o vento forte soprava erraticamente. O melhor mesmo era tentar pernoitar por ali, anda que no meio do barro e da lama… Enlameado, com os ténis a quererem despedir-se dos pés, a bicicleta a fazer finca-pé e o atrelado completamente bloqueado com o barro, consegui, num apelo extremo à calma e paciência, trazer tudo para junto da barraca… Comecei por equacionar não montar a tenda, que não cabia na exígua barraca, mas de improviso em improviso, e depois de algumas “obras” no solo, construindo um estrado de madeira com as tábuas espalhadas ao redor, consegui espaço para um pouco mais de metade da tenda. Em boa hora decidi montar a tenda, pois não tardou que a chuva começasse a cair, de mansinho, é certo, mas toda a noite. E ainda tive de me levantar a meio da noite para mais uns aperfeiçoamentos técnicos, pois a água que começou a escorrer do tecto da barraca, caía directamente na tenda, precariamente montada. Felizmente o plástico que comprei para servir de base à tenda, serviu às mil maravilhas para colher e desviar a água e proteger a tenda.
Hotel de muitas estrelas
Choveu toda a noite e o vento ameaçava levar barraca e tudo, mas o dia amanheceu límpido e azul fluorescente… Após uma lenta operação de transladação, consegui reunir toda a tralha na estrada de serviço que, se ontem ameaçava lama, hoje era um verdadeiro pântano. Comecei a pedalar devagar, sentindo a bicicleta deslizar descontroladamente. Por mais de uma vez tive de saltar à pressa do selim evitando o espalhanço in extremis. Mas cerca de três quilómetros adiante a coisa tornou-se pura e simplesmente impraticável e as rodas deixaram de deslizar. Ainda percorri umas dezenas de metros com ela pela mão, constatando o estranho poder daquele barro, que parecia cola de onde era difícil arrancar os próprios sapatos! Com um pau, ainda insisti em ir limpando alguma terra dos pneus para que pudessem deslizar na forqueta, mas nem cinco metros conseguia progredir com cada operação de limpeza. À ilharga, na estrada em construção, as enormes caterpilares continuavam, no seu ruído constante, a remover terra, espalhá-la e endireitar o solo. E eu ali especado, com uma raiva contida por ainda não terem terminado o raio da estrada. Parecia-me que mais umas dezenas de metros e o piso era mais liso, talvez mais compacto, talvez, se lá chegasse, conseguisse avançar, ainda que com a Dempster pela mão. E já me preparava para desmontar bagagens e regressar ao velho último recurso, quando reparei numa máquina que, de pá erguida, descia a estrada na minha direcção. Algo me disse que vinha ajudar-me e não me enganei. O jovem maquinista, sorridente, perguntou-me se estava tudo bem e, antes mesmo que respondesse, disse-me para carregar as coisas na máquina que ia ajudar-me. Em segundos enfiei tudo na enorme “pá” da máquina e lá fomos, no ritmo lento do mastodonte, barro fora. Disse-me que o asfalto distava uns dois quilómetros mas não me podia levar até lá, pois estava a ajudar-me por iniciativa própria e esperava que o chefe não desse por isso e o chateasse. Levou-me até ao fim da subida e do barro mais denso, onde me largou com o mesmo sorriso e votos de boa viagem… Agora o piso não era de barro denso e pegajoso mas uma mistura de saibro e lama saltitante – pelo menos podia-se andar… – mas antes de voltar a pedalar tinha de dar uma limpeza “mínima” na Dempster, pelo menos na enlameada transmissão. Por isso prossegui a pé até ao asfalto, onde consumi o resto da água a lavar a transmissão que, com uma boa dose de óleo e parcimónia nas mudanças, me pareceu em condições de prosseguir até Piedra Buena.
Depois de uma apurada operação de limpeza…
Ou o vento mudou ou a direcção da estrada de alterou, pois os 60 quilómetros até Piedra Buena demoraram a passar. Sorte que a jornada era curta… No pequeno povoado de Piedra Buena há pelo menos quatro hotéis e, para meu espanto, pelo menos três estavam lotados. Depois de perguntar a um polícia onde afinal me poderia alojar, encaminhei-me para o “complexo turístico isla pavon”, já fora da cidade. Mas no cume da pequena colina à saída da cidade, um miúdo franzino e ar vivaço mandou-me parar. Estendeu-me a mão, apresentou-se como artesão – exibindo o colar que trazia ao pescoço – e vinha oferecer-me uma casa para eu ficar, pois tinha escutado a conversa com o polícia, disse. É uma casa pequena, mas podes tomar duche, dormir e mesmo cozinhar. Ele próprio percorreu o Uruguai de bicicleta e acha que só um louco vem para a Patagónia no Inverno. Agradeci-lhe e segui na peugada da “máquina” dos avós, que conduzia devagar, à minha espera. Chegámos à pequena casa de madeira pintada de verde, que exibia um pequeno anúncio na janela a dizer “para alquillar” e, enquanto me preparava para um duche, foi-me contando mais alguns pormenores da sua ainda curta vida… nasceu ali no pueblo mas logo que cresceu foi para Buenos Aires, em busca de cultura e conhecimento. Conheceu muita gente, interessou-se pelo artesanato e aprendeu o que sabe com outros artesãos. A vida de artesão já o levou ao Uruguai, Chile e Bolívia, onde participa em feiras de artesanato, mercados e locais turísticos. Agora pretende alargar a rota e subir ao Peru, quem sabe Equador e Colômbia. Perguntei-lhe se conseguia viver apenas com o fruto do seu trabalho artesanal e disse que com quatro horas de trabalho diário, para repor as peças vendidas, consegue-se. Há que controlar os custos, escolher sítios baratos para comer, partilhar a dormida com outros artesãos – por vezes dormindo em casa de artesãos locais – mas consegue-se. E aquele trabalho manual e, ao mesmo tempo, artístico, é uma excelente terapia, um bom karma, diz. No canto da sala/cozinha da pequena casa, estendiam-se os arames, alicates, tecidos, fios e mais uma série de materiais que ia manejando com cuidado e precisão, apesar de descontraidamente. Quis pagar-lhe o aluguer da casa, mas quase se ofendeu… então comprei-lhe algumas peças de artesanato “para dar às chicas” e fiquei a vê-lo tomar mate e manejar as ferramentas e materiais como se estivesse ausente. O Edgar, que regressa à sua estrada de artesão na sexta-feira, depois de ter passado dois meses em Piedra Buena, dormia em casa dos avós e só utilizando esta casa para o seu labor ou quando tinha alguma chica. Como hoje não tinha chica, depois de concluir a sua jornada e me mostrar a planta, lá fora, onde deveria ficar a chave amanhã quando partisse, deixou-me a casa toda para mim. Não é desarmante a atitude absolutamente generosa, pura, fraterna, deste miúdo artesão? Quantos de nós faríamos o mesmo, perante um estranho, um estrangeiro, um desconhecido, mal encarado…? Não tenho viajado muito pela Europa civilizada, deprimida e lamurienta no seu luxo, fausto, opulência… mas já calcorreei vários milhares de quilómetros em bicicleta e, tendo encontrado simpatia, a diferença é abissal! Deve ser mesmo estatisticamente verdade que são os que menos têm aqueles que mais compartilham. Imagine-se se os que tanto têm, tivessem semelhante generosidade. De Piedra Buena a Rio Gallegos são cerca de 240 quilómetros de deserto, com um hotel, restaurante e gasolineira pelo quilómetro 105, em Marchand. Era para aí que eu apontava as agulhas quando comecei a pedalar, pelas geladas nove horas da matina. O vento silvava e trazia mais frio ao frio. As nuvens eram espessas e mantinham o frio mais frio. As poças de água na berma da estrada e as pequenas lagoas circundantes, irradiavam frio que se juntava ao frio. Os camiões que passavam, ruidosos, transportavam um vácuo frio que acrescentava frio ao frio. O planalto infinito e infinitamente plano gelava o olhar. Pedalava para sul, para o frio da fria patagónia, em busca da fronteira da fria Tierra del Fuego e da cidade de Ushuaia. Passou por mim uma ambulância de “traslados”, que se deteve uma centena de metros adiante, na berma da estrada, com os piscas ligados. Não deveria ser para mim, pois ainda não me considero a necessitar de ser trasladado… mas, ao passar, a porta abriu-se e o jovem condutor saiu com um sorriso no olhar, uma mão estendida para me cumprimentar e a outra com um iogurte: é para o desayuno, sorria, deveras contente com o encontro. Esperou que bebesse, recebeu a embalagem vazia e abraçou-me. Eu não encontrava palavras para expressar a surpresa e a gratidão, não pelo iogurte mas pela atitude…
De Piedra Buena a Güer Aike, voei nas asas do vento…
O vento soprava a favor e não fora o frio glacial, seria um dia perfeito. Mal dava pelos quilómetros passarem, pedalando entre trinta e quarenta quilómetros hora. Rapidamente percebi que Marchand seria um bom local mas para almoçar e comecei a traçar nova meta… Rio Gallegos parecia demasiado ambicioso e arriscado, pois os últimos trinta quilómetros seriam perpendiculares ao vento, mas se em Guel Aike houvesse hospedagem, seria perfeito. O hotel Marchand surge como um oásis no deserto. Não com a beleza estonteante das águas azuis de Ubari, onde as palmeiras circundantes e o deserto de areias douradas se miram, mas com a sobriedade de um edifício novo, de telhados verdes e janelas enormes, que emerge do deserto cinzento e tristonho. O interior, para alem de muito espaçoso e luminoso, protege-nos das agruras deste deserto gélido e ventoso, mas sem no-lo roubar, deixando-o ao alcance de uma mirada pelas amplas janelas. Transpor a porta do le Marchand é entrar no ventre materno, sentir a sua protecção, resguardo, conforto. E sair de lá foi um duro teste mental, até porque num recanto desabrigado do exterior ia assistindo, enquanto comia, a um bailado infernal de sacos de plástico, ramos de árvore e tufos de ervas soltas… chocavam uns com os outros, elevavam-se em espiral uns metros acima do solo, rodopiavam e digladiavam-se violentamente, até caírem, exaustos, no solo, por breves instantes, para recomeçarem indefinidamente. Transpor o umbral da porta, agora lançando o peito à fúria dos elementos, arrepiou-me todo o corpo e fez-me tremer – não de emoção nem medo, apenas de desconforto físico! Mas eu estou a caminho do Ushuaia e não posso esperar uma passadeira vermelha, mesmo sendo a cor mais linda do mundo… Ainda temi se o vento teria mudado de direcção, mas não. Eu é que tinha mudado momentaneamente de rumo – e deu para perceber, e temer, quão atroz seria se tivesse de enfrentar este vento, em vez de lhe oferecer as costas. Repousado do almoço e reabastecido de energias, a tarde decorreu como a manhã ou ainda mais veloz. A média chegou a beijar os 30 kms/h e rolei umas duas horas a cerca de 40 kms/h. Sentia-me um verdadeiro “rei do asfalto” e já sonhava com um despique com o Sheleck mais novo.
Nandus…
…e gaúchos
Apesar de a estrada ser praticamente uma recta infinda e plana, de quando em vez surgiam umas curvas e contra-curvas inexplicáveis – chego a pensar que são intencionais, para evitar que os condutores adormeçam – por vezes coincidentes com subidas ou descidas curtas. E quando uma descida coincidia com um segmento de estrada perpendicular ao vento, a adrenalina subia ao máximo e via-me obrigado a travar, receoso de ser projectado para fora da estrada pelo vento furioso. Mais uma vez, só pensava na sorte que estava a ter… com ele contra, ou mesmo perpendicular, estaria metido numa alhada difícil de contornar… Uma descida mais longa e a ruta 3 recebe a ruta 5, aquela por onde chegaria se tivesse prosseguido de Gregores para Calafate. Mas o que lá vai, lá vai e, como diz um amigo, há que deixar sempre alguma coisa por ver – no meu caso, rever – para poder voltar. No entroncamento das duas rutas, a 3 faz 90º, rumo a oriente, fundindo-se com a 5, que vinha de ocidente. O que não virou foi o amigo vento, que agora me fustigava lateralmente. Felizmente Güer Aike dista um par de quilómetros e nem hesitei quando vi a placa indicando o hotel Güer Aike e o grande edifício antigo, todo revestido de chapa ondulada. Toquei à campainha e surgiu a Alicia, sessenta e oito anos bem conservados, seguramente com a ajuda do sorriso permanente e das constantes boa disposição e amabilidade. Mandou-me entrar logo, para fugir ao gelo e vendaval que varriam a zona. O interior do edifício não destoa da imagem exterior, antigo mas extremamente acolhedor, não apenas pela temperatura amena, mas também pelas madeiras, pelas cores fortes, pelo mobiliário antigo. Na verdade, transpõe-se a porta e parece que viajámos um bom bocado no tempo – o que, afinal, não é de estranhar, pois o edifico tem uns cento e cinquenta anos e apenas a madeira do soalho foi renovada…
Alicia…
Depois de preencher o livro de hóspedes – não o oficial livro de registos, mas o livro que a Alicia estende amavelmente e pede que escrevamos uma mensagem pessoal, uma marca, uma memória – e tirar uma foto – a Alicia também me tirou várias, para garantir uma para o álbum de fotografias dos hóspedes – rumei tranquilamente a Rio Gallegos. O vento era mais fraco que no dia anterior e os menos de trinta quilómetros não tiveram estórias. Rio Gallegos é mesmo desinteressante e limitei-me a tratar de diversos assuntos, entre eles a marcação da viagem para Lisboa… pois é, já cheira a regresso, já sinto a estrada a escoar-se… Mais uma vez com o vento norte e eu a rumar a sul, era ver os quilómetros desaparecerem. E como a paisagem continua monótona, indistinta e sem atractivos, limito-me a pedalar, fazer jogos mentais, contas de cabeça… parece que o Cláudio, do hostel de El Bolson, tinha mesmo razão. A Tierra del Fuego argentina não tem continuidade com o restante território do país, sendo necessário atravessar uma parcela do Chile para poder regressar ao território argentino. Assim, há que voltar às burocracias fronteiriças… Do lado argentino surpreendi-me com a linda “gendarme” que me mandava avançar, ainda eu distava umas duas ou três centenas de metros do edifício fronteiriço, até estacionar mesmo em frente à porta de acesso. Uma delicadeza provavelmente para todos os ciclistas – mas o sorriso e a amabilidade da jovem polícia, desfazem qualquer resíduo de má disposição matinal – sim, ainda não seriam 11 horas. No interior, o jovem que me recebeu por trás da vitrina, depois de confirmar que eu viajava de bicicleta, perguntou-me a que horas saí de Rio Gallegos. Quando disse 9h, olhou espantado para o relógio, para os colegas e para mim. Expliquei-lhe que era o vento que me empurrava, eu apenas dava uma ajuda pedalando…
Aos grilos…
Na fronteira chilena, em todas as fronteiras chilenas, há sempre um formulário relativo às mercadorias que transportamos, com uma lista de produtos suspeitos, entre os quais lácteos, enchidos, frutas e legumes. Que raio!! Já me tinha esquecido destes zelosos procedimentos e lá declarei com verdade tudo o que trazia. O jovem inspector acompanhou-me à bicicleta e tive de abrir os alforges, mostrando os produtos suspeitos. Menos mal, o fiambre e queijo, embalados, podiam passar; as sanduíches já preparadas com produtos iguais, também; a fruta, não! ou a comia, ou era confiscada e destruída… duas bananas e três maçãs, não era demasiado para um segundo pequeno-almoço, e ali fiquei a trincar a fruta ao frio, sob o olhar discreto do inspector, à distância… onde é que já vi este filme!!? lembrei-me. Exactamente na fronteira a norte de Bariloche onde, há dez anos, eu o amigo Serra comemos uns quilos de fruta, sob o olhar atento e conversa futebolística dos guardas fronteiriços… parece que a tradição se mantém.
Magalhães…
O estreito de Magalhães aproximava-se e havia que embarcar na “balsa” de ponta delgada para a outra banda do canal. É a segunda vez que estou na margem do famoso estreito e, principalmente quando se observa o mapa do Chile, repleto de glaciares, milhares de ilhas e ilhotas, canais e mais canais, todos falsos e apenas um verdadeiro, como no jogo do labirinto, sinto uma enorme admiração pelo fabuloso feito do navegador luso. Onde raio foi ele buscar a “certeza” que havia uma passagem para o pacífico, pelo mar do sul (na verdade há mais que uma…)? Mas mesmo depois de adquirir essa certeza, como sabia que era ali a entrada – é verdade que não há muitas falsas possibilidades a norte, mas poderia ser mais a sul. E lançado para dentro do canal, quantos avanços e recuos terá feito, em quantos becos sem saída se terá metido!? Contra ventos e marés, contra a própria tripulação – amotinados – contra as doenças que dizimaram muitos marinheiros, e sabe-se lá quantas mais tormentas, o Homem escreveu a História e provou o seu sonho, para ir morrer envenenado por uma seta letal… É justa a estátua que tem em Punta Arenas. A “balsa” é um desconfortável ferry que liga a estrada interrompida e, por isso, transporta carros, principalmente camiões argentinos. Quando cheguei à bilheteira para comprar o bilhete, disse que viajava em bicicleta e o empregado, do outro lado do guichet, disse-me “passe, no mas”. Agradeci a borla e resguardei-me do frio constante. A travessia é curta e rápida. Na margem sul do canal, a fila de camiões era interminável e como o ferry é pequeno, provavelmente nem à meia-noite esta rapaziada se despacharia…
Boa ideia esta dos refúgios…
Para Cerro Sombrero faltavam uns 45 quilómetros. Não era demasiado, apesar do vento estar oblíquo… pedalava rapidamente, procurando chegar antes do anoitecer, quando surge uma pequena barraca a escassas dezenas de metros da estrada. Instintivamente pensei: é um refúgio! Exactamente como aquele em entre-vientos, no município de Rio Verde, a norte de Punta Arenas… parei a bicicleta na berma da estrada e fui confirmar, embora se visse bem da estrada a palavra “refugio”. Abri a porta e lá estava: uma pequena mesa com um banco corrido de madeira; um beliche de metal, desta vez sem colchões; e um fogareiro cilíndrico. Não é tarde nem é cedo, vou poupar a dormida do hotel Cruz del Sur, em Cerro Sombrero… não há lenha para fazer fogueira e não vou sacar uns postes da vedação derrubada, mas mesmo assim será acolhedor. Claro, desta vez faria “a festa” sozinho, especialmente sem a presença da meia dúzia de chilotes tisnados e sisudos, ginetes inveterados que não olham ao clima na sua árdua tarefa de pastores e condutores de gado pela inóspita patagónia e tierra del fuego. Não saborearia o amargo mate, nem repartiria com eles o bolo de mel da Madeira. Não os veria estender a manta e dormir no chão, matarem um borrego antes do sol nascer e desaparecerem a cavalo, conduzindo as mais de duzentas vacas. O vento soprou toda a noite com violência e aparato, rugindo e zunindo contra a pequena cabana. A chuva batia com estrondo na chapa zincada do refúgio. Eu acordava com aquele filme de terror e perguntava-me o que fazer no dia seguinte… estava bem, tinha água para um dia e comida também. Não iria para a estrada com aquele temporal patagónico. O Ushuaia teria de esperar… Mas não era a primeira vez que a noite se apresentara madrasta e o dia surgia esplendoroso, nem o contrário. Recordo que quando calcorreei a Irlanda de bicicleta, quase todas as madrugadas a água se abatia com estrondo sobre a tenda e só um dia apanhei uma molha! Ainda antes do sol nascer, a chuva parou e apenas o vento persistia, fustigando a barraca com estardalhaço. Quando a luz se começou a infiltrar pela minúscula janela, arranjei coragem para pôr a cabeça fora da porta e avaliar a situação. O dia estava quase lindo, com o céu praticamente limpo, o sol começando a despontar por entre uns fios de nuvens pálidas e o vento a soprar com força, não de norte, como eu desejava, mas de oeste… do mal o menos, levaria com ele de lado, o que lá mais para o fim do dia até daria jeito, pois a estrada haveria de ter alguns percursos para este e sudeste. Tomei um pequeno almoço incomparavelmente mais frugal do que era habitual – não sei se já relatei esta refeição, mas tipicamente são três peças de fruta, um litro de leite e umas 250 gramas de flocos de aveia que vou juntando na marmita, o que me dá uma óptima sensação de “aconchego”, confiança e energia para pedalar 80 ou 100 quilómetros – despedi-me da cabaninha de lata, toda forrada a platex(?), e regressei à estrada, provando e comprovando a antipatia do vento. Aparentemente há duas vias para San Sebastian e, depois, Rio Grande, na Argentina, embora ambas de rípio: ou pela estrada Y79, aquela que segui; ou pela creio que CH257. Perguntei a dois interlocutores diferentes qual a melhor, e ambos me indicaram a Y79. Calhava mesmo bem, pois ia para Este e assim o vento ajudaria.
Até no deserto…
O rípio estava em bastante bom estado, permitindo-me rolar depressa. Talvez nalgum momento de excesso de entusiasmo, lá voltei à velha tradição dos furos no atrelado. Além disso, não faltou uma lagoa que parecia um rio e inundara a estrada. Felizmente passou uma pick-up quando me preparava para descalçar os ténis e lançar os penantes à água, oferecendo-se para fazer o transbordo. Mil gracias, senhores, pois a água estava gelada, havias uns locais ainda profundos e a distância deveria rondar uns bons trinta metros.
Entre dois San Sebastian…
Há um San Sebastian do lado chileno e outro do lado argentino. Do lado chileno – uma dúzia de casas, se tanto – fica a Hosteria Frontera e vinha mesmo a calhar, ao fim de mais 130 quilómetros. Mas a proprietária apontou para a lista de preços afixados na parece, indicando 25 000 pesos chilenos (250 argentinos, que é a moeda que tenho) – um exagero não apenas para a minha bolsa, mas comparando com todos os preços que já paguei em qualquer dos dois países. Fiz-me “mula”, disse que era demasiada plata para mim… que assim tinha de prosseguir para San Sebastian na Argentina… mais umas pausas… ainda lhe perguntei se não tinha espaço para campismo, pois tinha visto na placa a indicação de camping. Que sim, mas que o terreno estava todo encharcado – o que era verdade. Então dei o primeiro passo atrás, em direcção à porta, enquanto dizia a mim mesmo em voz alta que seriam mais uns dez quilómetros até à Argentina e assim até já ficava mais perto de Rio Grande. Aí a senhora Ximena perguntou quanto tinha e respondi, vitorioso, 150 pesos, mais algum para jantar, pois quero jantar – para perceber que faria mais uns trocados comigo. Ela anuiu e consegui uma redução de preço principesca!! Tenho de começar a poupar, que a passagem aérea foi muito cara… De manhã, depois de ingerir o parco pequeno-almoço, mesmo aproveitando alguns restos de outra mesa cujas ocupantes acabavam de se retirar, ia iniciar a jornada quando a Ximena veio à porta dar-me uma última palavra… queria saber se eu publicava a minha viagem nalgum lado e, nesse caso, para fazer referência à hoosteria – género publicidade – rematando com um “mande-me para cá todos os portugueses”! Não pelo pedido dela, mas à excepção do preço elevado, o serviço é bom, as instalações boas e a Ximena, não sendo a rainha da simpatia, é completamente profissional, eficiente e prestável. Mas não sejam “idílios”, não se ponham a espremer a Ximena, pois ainda levam a senhora à falência! Os últimos doze quilómetros de rípio, lado a lado com ovelhas e bovinos pastando, patos flutuando nas lagoas azuis da planície, várias raposas espreitando o sol e um ou outro camião em sentido contrário, levaram-me, desta vez sim, à última fronteira e de regresso à Argentina. Rio Grande surgiu quando previsto e como previsto: gelado, tristonho, feio, frente ao frio Atlântico Sul. Para mim deverá representar apenas uma pausa no “curto” caminho que me separa de Ushuaia. Ontem à tarde começou a nevar. Uns fiozinhos de algodão, que o vento forte fazia dançarem loucamente, antes de se estatelarem nas ruas sujas. Levantei-me apreensivo com o estado do tempo, com a desconfortável sensação de que o Ushuaia distava muito mais que os duzentos e vinte quilómetros indicados no mapa… temia fundamentalmente o vento. O dono do hostel viu-me arrumar o equipamento na manhã fria e, apontando para o céu sombrio, disse que ia chover, talvez mesmo nevar… era mesmo o que eu precisava ouvir! Fosse como fosse, e apesar do ar ameaçador do céu e do vento forte que já se fazia sentir, iria regressar à estrada e tentar cumprir os quase 110 quilómetros até Tolhuin. Um dia de cada vez… e a estória deste dia é uma estória de vento contra e grande espírito de sacrifício, sofrimento mesmo, que se prolongou até à porta da magnífica cabana del bosque, em Tolhuin, como pretendia, onde o Hugo me acolheu com a serenidade e a amabilidade de um homem grande, livre e em paz. Escrever sobre este dia, seria um grito constante, um lamento seco, contra a natureza agreste, que parece apostada em negar-me a satisfação de chegar ao fim da estrada. Quase não tive olhos para o “mar do sul”, de uma tranquilidade surpreendente, encimado por contrastantes jogos de cor, resultado da luta constante entre nuvens de distintas tonalidades e densidades e o sol teimoso, mas raramente triunfador. Ou para o surpreendente arvoredo – morto, decrépito ou moribundo – que povoa as suaves colinas. Na realidade, não raras vezes amarrava o olhar ao asfalto, cerrava os dentes ou dirigia impropérios ao vento e à natureza. Contava os metros, os quilómetros e as dezenas de quilómetros. Os que passavam e os que faltavam… e nem quando avistei Tolhin, branco do nevão de ontem; gelado e congelado do nevão de ontem; sitiado e de ruas desérticas do nevão de ontem; pude relaxar e deslizar tranquilo. Tive de manter o dente cerrado e o pedal espremido. E parece que a estrada para Ushuaia tem muito gelo… por causa do nevão de ontem!! Que raio, parece que me atrasei dois dias!!
Tolhuin, lago Fagnano
Ontem, no cume do esforço, pensava: que raio, nas competições de ciclismo, a última etapa é de “exibição”, passeio, triunfo dos vitoriosos, parecendo haver um acordo tácito de não ataques – para além do próprio percurso ser “fácil”. Porque não tenho direito ao mesmo tratamento, indignava-me!? E não é que hoje, ao abrir a porta do mundo, me deparo com um céu azul e sem nuvens e o silêncio absoluto da manhã estremunhada, sem bafo nem sopro, com os pulmões congelados pelo frio. Nem queria acreditar e fui à porta por mais de uma vez… O enorme lago Fagnano tem início nas imediações da aldeia de Tolhuin, sendo uma das suas principais atracções. As águas, densamente azuis, perdem-se na longínqua cordilheira nevada que o rodeia. A estrada alonga-se à ilharga da margem, num jogo de escondidas definido pelas colinas e floresta, num surpreendentemente cemitério de árvores em decomposição no solo. Apesar do relevo irregular, em constante carrossel, e do frio gélido da manhã, gozava cada quilómetro, incrédulo com a acalmia face ao dia anterior.
A caminho de Ushuaia…
Vila Marina
Lago Escondido
Afastou-se o Fagnano, veio o Escondido e, com ele, o último “paso” da viagem: o paso Garibaldi, que não deve chegar sequer aos 500 metros de altitude. Mas se a altitude e a subida são “desprezíveis”, nesta latitude é suficiente para constituir uma barreira climatérica… e a neve inundou literalmente a estrada, tornando os últimos cinquenta quilómetros, até Ushuaia, um verdadeiro exercício de equilibrismo e perícia!! Nas zonas de sombra, a estrada apenas tinha bem definido, e facilmente transitável, os rodados dos carros, mas apenas “numa via”. Raramente me atrevia por lá, pois quando vinham carros, num ou noutro sentido, tinha de “fugir” rapidamente, o que implicava cruzar gelo e neve de vários centímetros e muito irregulares, até à “berma” imaginária da estrada. Nas zonas ensolaradas, era uma pasta de neve onde a Dempster deslizava como faca em manteiga, tornando irreais as subidas e “divertidas” as descidas. Paulatinamente, os quilómetros passavam e Ushuaia aproximava-se. Cerro Castor, a “estância de esqui mais austral do mundo” – tudo o que existe por aqui, parece ser “o mais austral do mundo”!
De Lago Escondido a Ushuaia, com o passo Garibaldi pelo meio
Mais uma subida, mais uma curva, o Cerro Olívia pelas costas, e a baia de Ushuaia vem ao meu encontro de braços estendidos, com a cidade nevada estendida na palma da mão. Aos lábios afluiu-me um leve sorriso… Afinal o Ushuaia era já ali e a viagem, por fim, chegou aio fim…
Ushuaia, a viagem, por fim, chegou aio fim…
A doença da Dempster
A estrada não termina em Ushuaia! Continua por mais 24 quilómetros, pelo Parque Nacional Tierra del Fuego, até à baia Lapataia. O fim da estrada esperava-me há mais de 13 meses e 30 000 quilómetros. Eu buscava-o, agora mesmo desejava-o, ainda que sem saber se seria o cumprimento se a morte de um “sonho” – seria seguramente o fim da jornada. Fosse como fosse, teria de enfrentá-lo…
Os últimos 24 quilómetros da ruta 3, pelo Parque Nacional Tierra del Fuego
Pela manhãzinha, pequei na Dempster, desta vez apenas com uma leve mochila, e percorri em verdadeiro ritmo de passeio e grande gozo, a estrada de neve – o último nevão foi demasiado recente e intenso – que se alonga entre picos nevados e floresta densa, esbranquiçada de salpicos dependurados nos ramos. Passei pelo “tren del fin del mundo” que, a julgar pelos estreitos carris, mais parece um comboio de brincar, várias lagunas com nomes coloridos mas invariavelmente brancas de gelo, um arquipélago, castores, patos, pouca lama (o piso ainda estava gelado, mas as partes expostas ao sol prometem adrenalina no regresso) e quase sempre neve ou gelo. Ao fim dos matemáticos 24 quilómetros, lá estava o “fim do mundo”, o “fin da ruta 3”, anunciando Buenos Aires a 3079 quilómetros e o Alasca a 17848 (presumo que em linha recta, pois não me recordo de ter feito tantas curvas…).
Sessão fotográfica – a consagração… do Benfica. Só apontavam ao peito e à cabeça!
Após uma longuíssima e divertida sessão de fotografias – equipado com o rigor que a grandeza do Glorioso impõe – com uma dúzia de japoneses, que faziam fila e repetiam, um grande grupo de patrícios brasileiros, e outros cuja nacionalidade não identifiquei, excepto duas portugas que ali apareceram a reclamarem por não ter equipamento lagarto, fiz 180º e dei a primeira pedalada de regresso.
Baia Lapataia
O sol, que já ia alto, a temperatura agradável e o tráfego mais intenso, transformaram a estrada numa transitável camada de lama. Três quilómetros após o ponto de retorno, a Dempster manifestou-se definitivamente desagradada. Em silêncio, como é seu costume e meu gosto, mas irredutivelmente! Nem mais uma volta as rodas deram. Em termos simples, a peça no eixo de trás que possibilita que, quando pedalamos para a frente, tenhamos tracção, e quando pedalamos para trás – ou paramos de pedalar – a roda continue a girar, pifou. Tanto fazia pedalar para trás, como para a frente, não havia tracção e as rodas não giravam…parecia um filme do Chaplin.
A Dempster adoeceu…
Parado, olhei-a, olhos no guiador e sorriso nos lábios, com uma tranquilidade e paciência que me são inusuais, procurando percebê-la. Fiz-lhe algumas perguntas, a que me respondeu cabisbaixa e triste, mas ainda não descodifiquei as respostas… O que é isto, uma birra? Ou o nosso contrato era “só” até ao fim da “ruta”, até ao “fin del mundo”, nem mais uma rodada? Não queres que atinjamos os 30 000 quilómetros? Olha que só faltam 12… Ia respondendo sem convicção, num código que, como disse, ainda não deslindei completamente, mas fiquei com a sensação que não estava a acertar no motivo… Olhei mais atentamente na sombra rebuscada do guiador e, por trás duma lágrima invisível, pareceu-me vislumbrar outra possibilidade: Gostaste tanto desta viagem e deste fim, que preferes ficar por aqui a viver a tua vida e não voltar para trás, para Lisboa, comigo? Hum… será isso uma mensagem, um alerta, um apelo…? E fiquei a matutar nesta inverosímil possibilidade. Como pode a Demspter, passando por tanta dureza, tanto frio e calor, tanta chuva, neve, lama, tanto solavanco, tantos furos, “ossos” partidos, reumatismo e artroses que a fazem gemer e ranger o dente, tanta subida e descida, tanta vida! querer persistir na mesma loucura!? Que raio, deve haver uma razão mais prosaica. Além do mais, uma bicicleta é uma bicicleta, faça o que fizer e ande por onde andar. Não tem vontade, nem consciência, muito menos sentimentos ou pensamentos. Ocorreu-me que as peças são capaz de ter uma validade limitada e que, nos últimos tempos, as condições climatéricas não têm sido as melhores. Provavelmente há apenas que substituir a peça e esquecer o assunto. Assim como assim, só faltam vinte quilómetros para regressar a Ushuaia e, depois, não conto pedalar mais… na Argentina. Sem grande convicção e menos paciente que no início do diálogo, expliquei-lhe que viver em Lisboa não é tão mau, pois a cidade é linda; voltar a trabalhar “no mesmo”, também não é tão mau. Basta encarar o dia-a-dia como se duma viagem – desta viagem – se tratasse: nas situações duríssimas, pensar apenas nos próximos dez metros a transpor; em condições muito duras, olhar apenas até à próxima curva da estrada; em condições sofríveis, estender a mente até ao próximo quilómetro; em condições boas, antecipar os próximos dez quilómetros; e quando nos sentirmos planar e passar a barreira do “aqui e agora”, esperar que o momento se eternize, sem memória do tempo ou do espaço. E quando acordei desta prédica, encontrei a Dempster olhando-me fixamente, com o que me pareceu ser um olhar de mofa. Felizmente passou uma pick-up dos guardas do parque, que nos transportaram meia dúzia de quilómetros até à saída do parque. Depois seria mais uma dúzia, com algumas descidas, até Ushuaia… Pelo sim, pelo não, decidi perdoar a ousadia à Dempster e levei-a ao médico de clínica geral, onde fica a fazer tratamento até amanhã. Pelo diagnóstico, não é grave, e a doença parece ser apenas do foro físico mas, em segredo, o médico não garantiu que não hajam perturbações mentais… “foi muito tempo, sabe? Parece ser uma doença rara, mas quando bate, bate forte…”
Bónus: Ushuaia
The End

15 comentários:

  1. Companheiro Idílio, isto é muita prosa para uma só vez.... não consegui "desligar" e assim passei toda a manhã sem ajudar o PIB nacional, mas nem por um momento lamento!
    Absolutamente heróico!
    Grande abraço.
    RPinto

    ResponderEliminar
  2. Neste último post não resisti a ver primeiro as fotos e ler mais tarde.Como já alguém disse sinto-me uma "formiga" diante de um "elefante" depois de este mês ter feito o Caminho Português de Santiago uns míseros quilómetros que para mim foi uma experiência de vida a continuar.O que o senhor fez foi uma experiência de muitas vidas. Parabéns por tudo ...

    Cumprimentos

    JR

    ResponderEliminar
  3. Li comovido esta última etapa da tua odisseia. Relembrei todos os locais por onde também passei há dois anos atrás (embora no meu caso fosse início de Outono), Bariloche com a sua rota dos 7 lagos e a mítica e inesquecível rota 40... até de Bajo Caracoles guardo uma memória viva do que pode ser um ermo no fim do mundo. Mesmo com um relato tão vivo como o teu, é difícil imaginar e perceber o que acabaste de experienciar, mas fico feliz por ti e agradecido por toda a partilha. Depois de tanta dificuldade é com um sorriso nos lábios que leio o relato cheio de humor da tua conversa final com Dempster. Parabéns... e até á próxima aventura :)

    ResponderEliminar
  4. sei que não és fã do conceito, mas tinha que vir dar-te os parabéns... (de aniversário, os outros já se tornam repetitivos!) Espero que esteja a ser mais um dia verdadeiramente "idílico" (ou muito me engano, ou criaste novo significado para o adjectivo ;-) ...). Fantástica prosa final... mas estás a dever-nos notícias da recuperação da Dempster... *

    ResponderEliminar
  5. Parabéns e obrigado!
    Acompanhei esta grande viagem desde o primeiro dia e só quero agradecer pelo magnifico relato e fotos. Passei belos momentos a ler este blogue e retirei dele alguns "ensinamentos" e conselhos para a vida. Mais uma vez agradeço ter partilhado esta sua experiência.

    João Pereira

    ResponderEliminar
  6. If. Excelente narrativa das terras argentinas. E agora? A Austrália?
    Um abraço. Zé Mouronho

    ResponderEliminar
  7. Verdadeiramente fantástico....
    Acompanhei a jornada confortavelmente sentado no meu sofá a imaginar o espírito de sacrifício e a vontade de vencer jornada a jornada esse sonho tornado realidade....bem haja companheiro
    continuação de muitas e boas pedaladas
    João Teixeira

    ResponderEliminar
  8. Idílio, tendo ontem reencontrado a dempster, sã e salva, no aeroporto da portela, fica provado que não há como um coração tolerante e generoso para curar um mal de alma.. ela não queria voltar, coitadinha, e como eu a compreendo! :-) bem-vindos e obrigada pela partilha desta magnífica aventura!
    sofia

    ResponderEliminar
  9. reportagem da chegada ao aeroporto na BenficaTV, ontem pelas 14h24

    http://www.slbenfica.pt/Videos/BenficaTV/Videos_BenficaTV.asp?video=212dukUSlRnchB3XxETOwMjMfZHdhNWam5WZi9SYjlmZuVmQv4Way9Gcz9Cdw5ybwF2cuMXYzFmciFGasFGczV2Lvozct1mdlRWZ&tipo=0

    ResponderEliminar
  10. Magnífico!!!
    Ainda por cima é do Benfica como eu! Espero que escreva um livro!!!
    Abraço
    Nuno Ferreira

    ResponderEliminar
  11. Magnifico uma jornada para a vida escrita por um verdadeiro apaixonado pelo que faz. Li o seu relato de toda a viagem em dois dias...melhor do que muitos livros. Muitos parabéns peça iniciativa e persistência....
    Um muito obrigado por me transportar a países longínquos

    ResponderEliminar