domingo, 19 de dezembro de 2010

De Acapulco a Salina Cruz

De Acapulco a Salina Cruz


Uma inovação!! Descobri um site que, a partir do percurso no “google maps”, cria o mapa altimétrico…para os eventuais interessados – e desconhecedores – eis o link: www.ridewithgps.com
Como vêm, cada vez tenho mais com que me entreter e menos tempo para escrever…

No regresso à estrada, de novo sozinho, sinto uma sensação desconfortável. Seja por lamentar o indesejável fim da aventura do Brian, por pensar que me pode acontecer o mesmo a qualquer momento, ou pela simples quebra de rotina – apesar de terem sido poucas semanas a pedalar juntos, acaba por ser uma ligação intensa, pois são 24 horas por dia. Além do mais, em termos logísticos também tenho novidades… comprei o atrelado ao Brian e tudo o que transportava nos dois alforges grandes, atrás, mais o equipamento de campismo, vai no atrelado. Mas como não quero mandar fora os alforges nem o saco, a carga aumentou alguns quilos…também ganhei um descanso para a bicicleta, o que dá jeito para parar…deixo de estar dependente de uma árvore, uma pedra grande ou outro qualquer ponto de apoio para encostar a Dempster. Por vezes não tirava uma foto ou, pelo menos, não do ângulo que cria, porque não podia largar a bicicleta…
Como nunca conduzi com atrelado, estava com expectativas como seria: se mais exigente fisicamente (são três rodas a fazer atrito); se traria problemas de equilíbrio; como seria nas curvas; e em velocidade. Mas afinal, com um ou outro pequeno percalço nas manobras para estacionar e para recuar, não senti qualquer diferença. Aliás, até acho que me sinto melhor a rolar com o atrelado, e estou confiante que também ajudará a diminuir o problema dos raios partidos – uma das causas era seguramente a sobrecarga centrada na roda de trás, que se evidencia em quatro pneus gastos, enquanto o da frente é o primeiro e ainda fará mais uns milhares de quilómetros...
Deixei Acapulco pela Avenida Costera Miguel Alemán, que contorna a baía. Apesar do trânsito ser intenso e de estar a adaptar-me ao atrelado, rolo sem problemas de maior. Para me desenvencilhar do trânsito, nestes países em que a condução é um constante salve-se-quem-puder, tenho de ser afoito. Já percebi que todos forçam a barra, mas no fim alguém cede passagem. E eu, mais tenso do que procuro exteriorizar, não sou excepção: espreito pelo canto do olho, vou de ouvido atendo e todos os sentidos alerta, mas procuro aparentar decisão e determinação… só me detenho nos semáforos.
Para trás fica o Parque Papaya, um enorme espaço verde onde crianças e adultos passam boa parte dos fins-de-semana; praias pequenas, partilhadas por embarcações de pesca artesanal, algumas ainda com o peixe de olhos brilhantes e as primeiras famílias de veraneantes; barracas de comes e bebes que despertam devagar da longa noite de Domingo.
À medida que avanço, a fisionomia urbana e social, mudam…depois do Paseo de Farallón, que cruza a cidade da baía para a montanha, os edifícios crescem, as cores são mais claras, as paredes mais limpas, mais estandardizadas, os nomes mais ocidentais e frequentemente em inglês, os transeuntes já não são só morenos e de cabelos e olhos negros brilhantes, as lojas vendem marcas globais.

Um pouco de cor…

A estrada começa a subir para Las Brisas, o sol é intenso a qualquer hora do dia, transpiro abundantemente mas o que não esquecerei tão cedo é o fumo dos escapes dos automóveis…a meio da subida paro para respirar um pouco e sinto náuseas, seguramente do abundante dióxido de carbono. Os carros são velhos – alguns parecem saídos de um qualquer cemitério de automóveis – normalmente carregados de passageiros – e aqui, carregado pode significar 7 passageiros adultos – e como a subida é acentuada, largam autenticas nuvens de fumo preto, ao ritmo de ruidosas aceleradelas e pesadas reduções. Agora a baía de Acapulco, orgulhosa com os seus modernos arranha-céus, fica lá em baixo, por trás de uma estreita barreira de vegetação. Continuo a subir, quero chegar rapidamente ao topo, descer à ilharga da baía de Puerto Marqués, e livrar-me deste cheiro nauseabundo… A baía de Puerto Marquês é quase uma lagoa, rodeada de frondosa e verdejante vegetação, ligada ao pacífico apenas por uma estreita faixa de águas azuis. Teria sido um pequeno paraíso antes da construção invejosa ter descoberto os seus encantos…agora vão crescendo prédios nas localizações mais ousadas e mais assassinas…

Cruz Grande...

Mal deixo a estrada urbana e regresso à minha velha companheira estrada 200, parece que tudo não passou de um sonho, tal a diferença. Na verdade, não há qualquer tipo de continuidade/descontinuidade entre a malha urbana de Acapulco e os seus arredores. O povoado seguinte – Palos – é uma aldeola de poucos milhares habitantes, igual a qualquer outra, onde a vida decorre ao ritmo do balancear da cama de rede pendurada no alpendre, onde o burro e o cavalo continuam a servir de meio de transporte e de carga, onde pequenas taquerias são a única opção para comer, onde o leite rareiam nas miscelaneas...

Cruz Grande

Cruz grande ainda está a despertar. Queria comer algo antes de iniciar a jornada, mas não vislumbro qualquer taqueria aberta. Numa esquina, uma sexagenária de cabelo alvo e olhos mortiços, vende sumos naturais na pequena banca onde se alinham diversos frutos, duas “picadoras”/”misturadoras” eléctricas, o boião do açúcar, leite, uns frascos coloridos que não sei para que servem e um enorme bloco de gelo que derrete lentamente…não resisti à gula, ignorei os riscos do gelo e deleitei-me com o delicioso batido de ananás.
Em contrapartida, o largo do mercado vai-se compondo, não faltando peixe e marisco frescos a cheirar a mar…


Copala - Pequeno almoço

Como não consegui tomar o pequeno-almoço em Cruz Grande, ao fim de vinte quilómetros a pedalar começo a sentir necessidade de comer. Copala é o primeiro povoado que cruzo e tem uma taqueria modesta mas com umas cores muito alegres, o que a torna apelativa. Enquanto três miúdos pequenos disputam o único boneco de plástico, a jovem mãe desaparece na cozinha a preparar-me uns ovos “al (seu) gusto”. Vieram com chouriço, feijões e tortilhas, reforçados com as bananas que trazia nos alforges…

Marquelia – Côr à beira da estrada

Sem que nada o faça prever, pois não se vislumbra vestígios de qualquer povoado perto, numa qualquer curva da estrada surge um telheiro com duas mesas, dois pares de cadeiras e duas mulheres, seguramente mãe e filha. Numa “mala” de plástico, meia dúzia de garrafas de bebida flutuam na água que já foi gelo, depois de ser água. Mãe e filha entretêm-se a descascar, cortar em tiras e distribuir por pequenos sacos de plástico, frutos (ou legumes?) que desconheço. Por muito que coma e beba, tenho sempre sede de algo fresco e fome de tudo. Paro e começo por uma bebida que, afinal, para os parâmetros ambientais locais, pode considerar-se fresca. Nos alforges trago uns “roles” de canela, fofos e bem doces, que vou saboreando à sombra do telheiro. Mas a curiosidade falou mais alto e fui saber que raio estavam a preparar. Deram-me uma lasca para provar enquanto me explicavam que as mais esverdeadas eram manga ainda verde e as brancas jicama. Comiam-se, como tudo neste país, com um molho picante de tons alaranjados. Naturalmente a mãe pergunta-me o que estava eu a comer (os roles) e pediu-me também para provar. Trocámos, assim, de comidas, creio que tão desconhecidas e surpreendentes para mim a delas, como para elas a minha…

Em nenhures – jicama, troca de alimentos

O hotel Lozano anunciava sauna e jacuzzi, pelo que passei sem sequer parar. Fui até ao fim de Cuajinicuilapa (os nomes são “inesquecíveis”!) mas não vislumbrei qualquer outra indicação de alojamento. Restava-me, pois, regressar ao início da cidade e alojar-me no primeiro hotel, que não quis por me parecer caro. Mas ao passar de novo junto ao entroncamento para o Lozano, que fica a 100 metros da estrada, decidi ir espreitar. Afinal, o jacuzzi e a sauna devem fazer apenas parte de algum filme, pois nem a chave encontravam para me mostrar o quarto. O preço era modesto e lá me “quedei”. No pequeno jardim, três jovens, um deles muito jovem mesmo, empacotavam livros em cima de uma mesa improvisada. Claro que quando viram chegar um extra-terrestre com todo o aparato – o atrelado na bicicleta ainda suscita mais curiosidade às pessoas – param os pacotes e meteram conversa.

Cuajiniculiapa - Vendedores de livros

Preparava-me para ir tomar banho quando o Juan bate à porta. Trazia uma garrafa de 1l de água em cada mão, que me estende. Já vou, meio incrédulo, para pegar nas duas quando ele me pergunta qual prefiro – eram de marcas diferentes… Peguei numa ao acaso e agradeci, desajeitado – ainda não me tinham brindado com uma oferenda destas. Fechei a porta mas senti que faltava algo…os três bebiam as suas águas frescas – estava mais um dia tórrido – e juntei-me a eles. Brindámos e bebemos até à última gota, ao som de Alexandre Fernadez e Paquita del Barrio, que desconhecia e me ficaram no “goto”. Afinal são empregados de uma editora e percorrem o país todo a distribuir livros de diversos géneros – ficção, ensaio, ciência, escolares, infantis…
De manhã, como saímos em simultâneo, reparei que traziam, entre outros apetrechos, ferro de engomar! E pensava eu que andava com a “casa às costas”…

Um magote de jovens divide-se em dois grupos, um de cada lado da estrada, e esticam uma corda, fazendo uma autêntica portagem. Na verdade, aproveitam a enorme lomba, ali colocada para fazer abrandar o trânsito, e vêm, de lata, quase vazia, em punho, sorriso tímido, voz trémula, ar acanhado, pedir uma contribuição para pintar a escola. Quando lhes pergunto se àquela hora não deviam estar a ter aulas, parecem surpreendidos com a pergunta, e dizem que não houve “classes” hoje. Encolhem os ombros quando pergunto porquê – parece ser normal não haver aulas e não se saber porquê – mas, ainda assim, lá ficaram na sua tarefa inglória de recolha de fundos para pintar a escola…

Pinotepa (perto de) - recolha de fundos para pintar a escola

Quando desci do hotel já a rua ia ganhando cor e vida, com as primeiras vendedoras ambulantes a armarem as bancas no escasso passeio. A variedade de produtos é pobre, como pobres são todos aqueles rostos magros e secos…queijo embrulhado em folhas de couve, tortilhas, feitas à mão, dentro de um pequeno balde de plástico, fruta e peixe e marisco seco, eis ao que se resume o pequeno mercado improvisado, composto por uma escassa dezena de vendedoras em Jamiltepec.


Jamiltepec - mercado de rua

Mais adiante, junto à igreja, que parece desproporcionada para a dimensão da povoação, homens e jovens vão-se perfilando encostados ao muro, à espera que algum empregador local passe de dedo em riste e dispare na sua direcção…

Vendedor de sumos, raspados e refrescos…

Em Humedad, após 10 rápidos quilómetros de constante descida, fui despertado pelo alarido dos alunos da escola primária, que interromperam o ensaio de um qualquer número teatral ou militar, para me acenarem e gritarem ruidosamente. Dirigi-me ao portão da escola e lá estavam todos desalinhados, em enorme excitação, sob o olhar compreensivo do professor. Em escassos segundos estava rodeado de miúdos e o professor aproveitou para dar uma aula de … geografia. Quem sabe onde fica o Canadá? E a Argentina? E quais são os países da América Central? Com que países faz fronteira o México? E quando eu me preparava para tirar o mapa do México, constatei que não o tinha! Que porra, só pode ter ficado no hotel, pois estive, estendido na cama, a ver o percurso…

Humedad - miúdos da escola primária

Voltar para trás e fazer 10 duros quilómetros de constante subida, ou prescindir do mapa pelo resto do percurso no México pareciam ser as únicas opções, quando o professor (por alguma coisa é professor!) me apontou a solução óbvia: porque não apanhar um “colectivo” para ir e voltar e deixava a bicicleta ali, no pátio da escola. Nesta zona, os colectivos são pequenas carrinhas de caixa aberta, com dois bancos laterais sob uma estrutura metálica, coberta com uma tela de plástico…não têm limite de passageiros nem de carga, mas como estão sempre a passar, consegui um lugar sentado!
Regressei com o mapa, que tinha deslizado para debaixo da almofada…

Pinotepa (perto de) – os meus anfitriões do pequeno-almoço

À medida que progrido para Sudeste, pressinto maior pobreza. Casas minúsculas, de adobe e telhado de zinco; um ou outro porco amarrado a uma árvore; escassas galinhas esgaravatando o lixo que se estende à beira da estrada, por vezes com cheiros nauseabundos, a que se juntam os ainda mais horrendos odores das carcaças de animais mortos na estrada, em diferentes estados de putrefacção: cães, cobras, lagartos, ratazanas do tamanho de coelhos, e mesmo equídeos e bovinos… apesar da abundância, os abutres não parecem dar conta do recado.

Rio Grande - Mototaxi

O burro e o cavalo surgem esporadicamente como meio de transporte; nalguns povoados, a “mototaxi” substitui integralmente o carro, numa imagem romântica mas seguramente indiciadora de pobreza. No rio, em vários rios, mulheres, homens e crianças passam o dia dentro de água, debruçados, com uma “peneira” artesanal nos braços, extraindo seixos que acumulam em pequenos montículos para venda.

San Jose de Progresso - para quem duvida das vantagens da bicicleta...

Talvez a pobreza aqui não seja maior que na Baja Califórnia, mas tem um ar mais chocante, mais injusto, mais contraditório. Na Baja Califórnia, existe uma enorme harmonia/identidade entre o Homem e a Natureza: tudo é árido, tudo é seco, tudo é agreste, tudo é pobre e os Homens parecem fazer, naturalmente, parte dessa paisagem.
Aqui, no Sudeste Mexicanos, há olhares que sorriem, até se lhes perguntar sobre amanhã…

Rio Grande – jovens que não ousam sonhar…

Tinha pensado terminar a jornada em Puerto Escondido, supostamente mais um belo destino na costa do pacífico, mas, a cerca de 20 quilómetros, surge a laguna Manialtapec, rodeada de frondosa vegetação, refúgio de aves, de cores e silêncios, espelho sereno da tarde tranquila.

Lagunas Manialtepec

“La Alexandria” foi o último clik! É pouco mais que uma placa discreta, com uma seta para um carreiro e indicação de campismo, cabanas e restaurante. Ia acampar, mas deixei-me cativar pela serenidade e simpatia do senhor Nacho Oliveira (acha que é de ascendência portuguesa…) e aceitei dar mais 50 pesos por uma cabana – à escolha, pois era o único hóspede.


Lagunas Manialtepec - La Alexandria

O sol ainda espreitava, intenso, bem do alto. Eu, cá em baixo, deambulei de canoa pelo lago, espantando aves, emaranhando-me nas raízes dos mangais, escondendo-me nas sombras das palmeiras, à espera que a bola em chamas incendiasse o lago e a floresta.

Em Puerto Escondido, a “carretera costera” parece uma muralha física que divide a cidade: a faixa costeira, completamente dedicada ao turismo; e o interior urbano, com o seu mercado repleto de cores e aromas, lojas ruidosas e coloridas, trânsito apressado, anarquizado e muito poluidor, pessoas como rios, ou rios de pessoas, que deslizam devagar…

Puerto Escondido

A zona turística não vai para além da rua que circunda parte da baía. É charmosa, repleta de cor, de restaurantes, hotéis e lojas de souvenirs, tudo numa escala muito pequena e eclética, onde se pode encontrar, por exemplo, a Posada Sossego (um dormitório sombrio e decadente, mas literalmente com portas e janelas para o mar, onde pernoitei por menos de 5€), mas também hotéis de luxo, onde um dos luxos maiores é não se dar por eles…

Puerto Escondido

Deambulava pela cidade, enquanto esperava que um técnico da Telcel me conseguisse repor o telefone a funcionar, depois de o ter mergulhado na sanita, quando me deparei com um coloridíssimo desfile à Senhora da “Soledad”, por entre foguetes, buzinas, apitos da polícia, a tentar controlar o trânsito, e fanfarra. A fechar o cortejo seguiam jovens crianças de ar ausente no olhar profundo…




Puerto Escondido

La iguanera é uma reserva privada que se dedica à preservação de iguanas no seu habitat natural. O discreto anúncio na beira da estrada tem uma seta que não aponta para a esquerda nem para a direita, mas sim para baixo, para o solo. Afinal é porque o acesso se faz por uma escada discreta, que desce paralelamente à estrada. Um biólogo recebe-me ao fundo das escadas e, por 20 pesos, visito o iguanário com guia qualificado.

Iguanário – juvenis à beira da libertação

…e outras ainda sob protecção das aves

Primeiro, as pequenas gaiolas com as iguanas de quase um ano, prestes a atingirem a idade em que serão libertadas. Por trás, gaiolas com as mais juvenis, protegidas com rede fina para evitar que as aves as ataquem e comam. Nas árvores frondosas, em redor, basta olhar com atenção para ver preguiçosas iguanas, esverdeadas, amareladas e até uma ou outra preta. Têm tamanhos diferentes, cores diferentes, mas invariavelmente aquele ar pachorrento e arcaico, fossilizado…


Iguanário

O tratador larga uns molhos de folhas e ramos de arbustos, e é ver as iguanas, aparentemente adormecidas, afluírem de todo o lado, numa confusa disputa pela comida. Não falta uma breve escaramuça entre dois machos, pela primazia do grupo e domínio da prole… Finda a refeição regressam às árvores: uns disfarçam-se sob a folhagem, outros preferem abraçar-se aos troncos…

Iguanário

Pouco depois de San Isidro, opto pelo desvio para Ventanilla, Mazunte e Puerto Angel, onde tenciono pernoitar. Apesar de seguir um percurso próximo da costa, após Ventanilla a estrada é acidentada, com subidas e descidas curtas mas muito íngremes.
Para além de querer visitar Puerto Angel, uma das razões da escolha deste percurso é visitar o “tortuguero”, em Mazunte, um centro de preservação dde tartarugas. Depois de, em 1990, ter proibido a exploração de tartarugas marinhas, o México criou o “Centro Mexicano de la Tortuga”. O centro é composto essencialmente por quatro áreas: dois tanques dedicados às tartarugas marinhas, onde nadam graciosamente diversos exemplares de grande dimensão e diferentes espécies; vários pequenos charcos com pequenas tartarugas “terrestres”; uma zona de "cuidados de saúde"; e o aquário.

Também não gosto de ti...

Tartaruguero - Olha para nós tão giras...

Apesar de o “tortuguero” atrair visitantes em grandes autocarros, carros de matrícula mexicana ou estrangeira e mesmo bicicleta, Mazunte é uma pequena aldeia abraçada ao mar, onde não há hotéis mas cabanas, posadas e albergues, um centro de yoga, minúsculos ateliers de artesanato, comida vegetariana e onde os escassos turistas que se vêm, parecem ser jovens hippy que vagueiam com ar pachorrento pelos recantos da aldeia.

Puerto Angel

Puerto Angel é mais uma pequena aldeia piscatória, que se estende ao longo da pequena baía. As pequenas embarcações coloridas repousam ao longo do areal, preenchendo-o quase por completo. Ao entardecer, os pescadores afluem lentamente à praia, junto ao pontão, e vão-se juntando em magotes em animadas conversas. Parecem discutir estratégias para a pescaria da noite que se avizinha e quem é o próximo a sair para a faina. Com meia dúzia de homens a empurrarem sincronizadamente, o barco desliza do areal até ficar a flutuar nas águas calmas da baía. Normalmente dois homens saltam para dentro e, por vezes, após algumas operações de mecânica, para pôr a funciona motores com ar estafado, afastam-se devagar.
Um após outro, os barcos vão desaparecendo por trás das colinas que forma a baía, fundindo-se no mar da noite. Hão-de confiar ao mar uns escassos metros de rede verde e voltar de madrugada com o que lhes calhou em sorte – pouco, a avaliar pelo que vi de manhãzinha, quando passava pelo mercado improvisado junto ao pontão…

Deixei o quarto escuro, porta e janela de ferro, com ferrolhos ruidosos e cadeado pesado, sob o chilrear ensurdecedor dos pássaros. Não sei como se chamam, mas são negros como os melros, talvez um pouco maiores, cobrem de negro as copas das e começam a cantar furiosamente aos primeiros raios de luz.
Ontem, depois de ter jantado, passei por um “comedor” que, visto de fora, me pareceu simpático e onde decido tomar o pequeno-almoço. Entrei por um pequeno telheiro e, sem dar por isso, estava numa “sala” que não era mais que a continuação do quintal, pois não tinha porta, nem paredes… As três mulheres presentes, uma idosa e duas mais jovens, olhavam-me com ar surpreendido e interrogador, quando perguntei se podia “desayunar”. E ainda não tinha terminado a pergunta, já estava arrependido de ter “entrado” ali…a única mesa, onde teria de me sentar, estava suja e gordurosa como ainda não tinha visto, a cozinha, contígua, tinha um aspecto tenebroso, as moscas passeavam tranquilas pela massa das tortilhas na bacia de plástico…

Puerto Angel – tortilhas artesanais

A custo, sentei-me e nem sabia o que responder à pergunta sobre o que queria comer – como queria os ovos, entenda-se. Pedi também café – apesar de “nunca” tomar café – para ter um sabor forte que ajudasse a “anular” a comida que viria e a minha (in)disposição mental para a ingerir…
Os ovos vieram e, como seria de esperar nem eram maus. As tortilhas eram um pouco mais azedas que o habitual e comi poucas. O café era verdadeiramente intragável e depois de lhe pôr açúcar – coisa que nunca faço – ficou impróprio para acompanhar a comida…
Deixava devagar Puerto Angel, pela estrada sinuosa e empinada, quando uma barraca nas imediações me despertou a atenção. Os raios de sol, ainda frio, reflectiam-se na pele seca e dourada de Luciano Bautista, que amanhava peixe à velocidade da pobreza, presente em redor. Ao lado, uma enorme grelha sobre o braseiro acabado de fazer, esperava pelo peixe que haveria de assar, e que iria ser vendido – assim o esperava o estômago de Luciano Bautista e a família – em Puerto Angel e, principalmente, en San Pedro Pochutla…



Porto Angel - Luciano Bautista

De regresso à estrada 200, e depois do habitual interrogatório dos inúmeros, inexplicáveis e – percebe-se, por vezes, nos comentários de alguns mexicanos – indesejados postos de controlo militar que povoam as estradas do país, deparo-me com uma camioneta (de caixa aberta), decorada com estandartes religiosos, parada na berma da estrada. Ao lado, um grupo de adolescentes de trajes iguais e, mais uma vez, com figuras religiosas, concentrava-se em redor de uma mesa improvisada, comendo.
Depois de alguma resistência inicial à minha presença, às minhas perguntas, à minha intromissão, ofereceram-me do pequeno-almoço (ovos cozidos, tortilha e sumo) e convidaram-me para estar às 12 horas, do próximo dia 12 de Dezembro, em Zinacantante, perto de San Cristobal de las Casas, a sua terra natal, onde concluiriam a “4ª visita a la Virgen de Juquila” e “14 carrera de la Antorcha”.

Peregrinos de Zinacantante - correm 80 kms por dia...pela virgem

Este grupo de 11 jovens, o mais novo dos quais tem somente 12 anos, foi o primeiro de dezenas e dezenas de peregrinos com que me cruzei e que enchem as estradas do México por altura do dia 12 de Dezembro, o dia da Virgem de Guadalupe – mãe do México, como todos lhe chamam. De todas as idades, homens ou mulheres, descalços, de sandálias ou ténis, cada um à velocidade que consegue, invariavelmente com uma (an)to(r)cha acesa na mão, correm, em estafeta, cerca de 80 quilómetros por dia, dormem na berma da estrada, em jardins, coretos, passeios, leitos de rios, comem invariavelmente tortilhas com o que há…nos próximos dias seremos companheiros de viagem, ultrapassar-nos-emos diversas vezes, partilharemos pequenos almoços, combinaremos encontros, admirar-nos-emos e respeitar-nos-emos mutuamente…
As baías de Huatulco surgem referenciadas como ex-líbris turístico – a não perder, portanto. Devia ter desconfiado de tal unanimidade… na verdade é um enorme empreendimento turístico, construído em meados da década de 80 pelo governo mexicano… São avenidas largas de várias faixas para escassas dezenas de carros, campo de golfe, hotéis, marina(s), aeroporto…Enfim, duas dezenas de quilómetros de construções artificiais, cimento e pouco mais, vendido em pacotes chave-na-mão para turistas sem alma…
O sol ia girando, o vento começou a soprar de frente, os pontos que o mapa apresentava, na realidade não eram mais que meia dúzia de “casas” à beira da estrada. O desvio às “preciosas” baías estava a custar-me um fim de dia indesejado e imprevisível… Comecei a equacionar regressar ao campismo selvagem mas estava sem água para beber ou cozinhar. Coyul deveria estar perto, mas não teria, por certo, alojamento. Se tivesse uma miscelanea já seria bom… Ainda não foi desta que a estrada me esqueceu e me declarou inimizade… uma pequena construção circular, com telhado de colmo e flores e plantas circundantes, tinha uma pequena mesa no exterior com várias garrafas de bebida alinhadas – só podia ser um café.... Parei e pedi um sumo à sexagenária que baloiçava na cama de rede, enquanto conversava tranquilamente com o Artur, que comia umas quesadilhas.
Enquanto tomava a bebida, fui conduzindo a conversa para o meu objectivo, com perguntas cuja resposta conhecia de antemão: a quantos quilómetros estava Coyul, se havia lá algum hotel ou sítio para dormir, então onde é que havia? Ah, tão longe, tanto vento e já anoitecendo… precisava de um local para pernoitar… E, depois de uma pequena pausa a senhora disse-me que podia pernoitar ali; tanto podia montar a tenda ali mesmo, naquele simpático recinto circular, com telhado de colmo e um pequeno muro que protegia do vento, como dormir na cama de rede, da qual se foi levantando…
Aceitei de imediato e, não fora o receio de mosquitos (nos últimos dias vi vários avisos e informações sobre Deng), teria pernoitado na confortável cama de rede, onde dormi uma soneca enquanto o sol se ia e a minha anfitriã me preparava o jantar…

Coyul – montei a tenda sob um tecto de colmo

Ainda as estrelas não tinham ido brilhar para outras latitudes, já o Artur deixava a cama de rede, pendurada a meus pés, e partia no carro ruidoso. Já dormitava quando chegou e ainda dormitava quando partiu… Pouco depois ouviu-se mais uma vez o ruidoso som metálico da porta a abrir, seguido dos passos arrastados e da voz rouca do Alfredo. Devia ter um vizinho à espera, pois em escassos minutos ambos cavaqueavam a dois metros de mim, por entre goles de duas “modelo”. Ontem, acabara de jantar quando o Alfredo chegou, aos tropeções, arrastando os pés, caindo de bêbado…
Arrumei a tenda envolto na penumbra do dia nascente, despedi-me do meu anfitrião e amigos (já eram dois) e regressei à estrada. Verdadeiramente gostava de me ter despedido da mulher, mas acredito que não tenha querido aparecer, com vergonha…
Tal como a Gina – a empregada do turismo, em Puerto Escondido – tinha dito, há três dias, o vento era forte ou muito forte, soprava de forma errática num raio de mais de 180 graus, contra mim. Comecei por maldizê-lo, mas rapidamente mudei de táctica: preparei-me mentalmente para um dia de combate e assim foi até ao fim, até Salina Cruz, sem tréguas nem piedade, tornando penosa uma jornada que poderia ser fácil, pois a estrada, apesar de quase sempre encravada entre colinas, não tem grandes declives.
À esquerda, ao longe, a Sierra Madre del Sur cedeu lugar à Sierra de Juárez. Em frente, na linha do horizonte, deve ser a Region de Chimalapas, com a Sierra Três Picos e, visível, a Sierra Atravessada – é esta e a Sierra Madre de Chiapas, que me esperam, mais o vento que sopram…À direita, as pequenas colinas verdes deixam, de quando em vez, que o mar e a montanha se mirem. Árvores de grande porte salpicam as lagoas de águas verdes, criando a ilusão de que crescem no mar…

A caminho de Salina Cruz – há sempre algo novo em redor…

As povoações são ralas e muito pequenas, fazendo parecer Santiago Astata uma “cidade”. Os próximos 50 quilómetros do mapa estão em branco… por vezes (a)parece uma casa enfiada nos matagais: não se percebe se é habitada nem como o poderia ser…oito ou dez metros quadrados, paredes com o esqueleto de paus finos, à vista por fora, tapados a barro vermelho por dentro, telhado de colmo ou lata, um porco amarrado a uma árvore, por uma corda atada ao pescoço, uma galinha, talvez duas, esgaravatam a terra seca e pedregosa, o cão jaz inerte a uma sombra, sujo, com os ossos bem vincados por entre chagas em ferida e pele sem pelo – se está vivo, antes estivera morto…
A minha amiga estrada nº 200, tem abundância de lombas – ou tepes, como cá se chamam. São autênticas barreiras para obrigar o trânsito a abrandar – e é bom que abrande mesmo, porque são de tal forma acentuadas que, não parando, o carro, ou mesmo a bicicleta, arrisca-se a deixar lá um membro… aproximo-me, abrando, quase paro e as três jovens e uma adulta que ladeavam a estrada, afinal não esperam o autocarro ou táxi para irem desta serra deserta de vida, em busca de vida ainda que noutro deserto. Estas quatro mulheres, vestidas com roupa domingueira, lavada e asseada, trazem uma coca-cola e uma garrafa de água numa mão e dois ou três sacos, com cinco laranjas cada, noutra mão. Ladeiam-me, caminhando lado a lado com a bicicleta e repetem desencontradas: coca-cola, água, laranjas, compra-me algo. E os olhos procuram os meus olhos – ou o contrário, já não sei. E eu estou desarmado, porque não trazia os óculos escuros – que falha! Os olhos prendem-se, as vozes ecoam, a bicicleta teimam em não andar depressa – por certo que vinha numa mudança elevada e não desmultipliquei – ou serão as pernas que estão cansadas, ou a cabeça que está confusa, ou o sentimentalismo a sobrepor-se. Três das quatro mulheres já desistiram de mim, uma quarta caminha a meu lado, fazendo ecoar o silêncio que nos rodeia. Disse-lhe que lhe comprava algo mas parava apenas naquela sombra, a dez metros. A coca-cola estava fresca, contrariamente à água. Eram dez pesos. Ela estendia-me um saco de laranjas misturadas com os olhos negros. Disse-lhe que comprava uma laranja para comer ali, não podia transportar um saco de laranjas na bicicleta…ficou confusa, pois as laranjas eram vendidas em sacos de cinco… mas lá desatou o saco e deu-me uma laranja. Perguntei quanto era e repetiu: 10 pesos da coca-cola. Tinha doze pesos trocados e foi o que lhe dei…
A sombra tinha uma pedra lisa que me serviu de assento. Muito devagar, descasquei melhor a laranja. Adiante, quatro fantasmas de mulher sem rosto, sem olhar nos olhos, com roupa domingueira, lavada e engomada, dirigiam-se de braços estendidos, de voz estendida, de olhar estendido, a cada carro que a lomba obrigava a abrandava, acompanhavam-no até passar a lomba, à espera de um olhar, de uma voz, de uma mão com uma moeda de dez pesos para trocar pela sua mão de água, laranja ou coca-cola… Ainda arranjei espaço para mais uma água, quente como o olhar que vi nas mãos que ma estenderam.
Segui devagar pela estrada plana e ventosa e continuei a ver reflectido no sol poente quatro almas de mulher que se arrastam com uma garrafa de coca-cola em chamas pendurada dos braços calcinados…

Salina Cruz – a cidade mais feia do México?

15 comentários:

  1. Vamos conseguindo viver e até nos habituamos à ideia da pobreza extrema, mas deve ser chocante ver o que tu viste nos olhos de crianças e jovens que não ousam sonhar. Não há então futuro?

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  2. Pelas fotografias conhecemo as cores e pelas palavras os odores e paladares. Um rico manjar de sensações servidas por verdadeiro mestre.
    Força.

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  3. Desde Inuvik, já "vamos" em salina cruz a acabar este inesquecível México.Depois do brian e de uma breve repetição do contacto com aquela azáfama americana,volta a simples melancolia em paisagens humanas ricas de reflexão,cheias da exuberância natural e por isso creio mais marcante a pobreza material,e a angústia dos olhares.Para quem queira ouvir um pouco daqueles sons,Paquita del Bairrio e Alejandro Fernández, que o Idilio encontrou em Cuajiniculiapa com os vendedores de livros Juan&Ca no hotel Lozano, que embora sendo música tipica popular dão um acrescento sonoro agradável às descrições destas paisagens, visite e inscreva-se gratuitamente no fantástico site grooveshark.com onde, sem correr o risco de ser acusado por roubo de copyright, podem ouvir toda a música que existe num interface muito prático.
    Continue Idilio à Guatemala,El Salvador,aqui o esperamos.
    Cumps,
    JMeireles

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  4. “ E os olhos procuram os meus olhos – ou o contrário, já não sei. E eu estou desarmado, porque não trazia os óculos escuros – que falha! “
    Idílio
    Não foi falha ter visto, parado e deixado ver através dos seus olhos a pobreza que rasga estas paragens… Faz-nos bem a quem assiste aqui na “plateia”ver e ouvir a realidade que o rodeia, um mundo que não é cor de rosa, que apesar de muito belo, transporta muita dor de quem nada tem…um mundo controverso.
    Não é sentimentalismo, ser sensível a quem sofre uma vida de escravo , “sem futuro”…dá muito que pensar…
    Obrigado por esta janela do mundo , pelas imagens em foto, como nas descrições ….com palavras… sábias e por vezes provocadoras…
    Foi boa opção, o atrelado :)
    Boas pedaladas!
    “Buon Camino”
    H.Dias

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  5. Continuação de boa viagem...
    Um bom Natal companheiro.
    RPinto

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Idílio,

    andamos para aqui a festejar o natal, mas o que nós queríamos mesmo era ter um natal assim. E viva méxico! :)

    bjinho,

    Susana.

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  8. Nunca percebi porque é que o descanso de bicicleta não é um apetrecho 'obrigatório'. Eu não vivo sem o meu e como tu, falharia muita foto de pedalada. Há muito mais vida exposta aqui do que no início da tua saga, a dada altura sentia que estava a viajar no Laos, tal a semelhança de ambiente em certas fotos e descrições. Já apanhei dezenas de 'boleias' nesses colectivos e são viagens sempre marcantes. O contacto com as pessoas é muito próximo e ao fim de meia dúzia de kms já me sinto um deles. As iguanas são espectaculares mas tens fotos de pessoas excelentes nesta quadra natalícia. Despeço-me aqui desejando-te uma boa continuação de aventura e um Bom Natal onde quer que te encontres nessa estrada infindável.

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  9. Caro amigo,
    Não sei bem qual é o seu estado de ânimo nesta altura natalícia. Talvez a paisagem e a temperatura anulem um pouco o efeito do Natal a que estamos habituados. DE qualquer forma fico a pensar se não acusará alguma nostalgia por estes dias. Espero que a sorte lhe seja favorável e que encontre poiso e companhia para um Natal partilhado. Um abraço enorme e um desejo imenso de o ver ir avançando, persistente, destemido e muito atento a detalhes que fazem dos seus relatos sempre uma viagem a sonhar, como nos tem vindo a habituar. Um Feliz Natal Idílio!

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  10. Feliz Natal Idílio, onde quer que te encontres.
    Grande abraço, Luís M.

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  11. vou passar o natal à terra
    o que eu gosto desta expressão
    apetecia um bacalhau com broa
    uma garrafa de tinto
    o grito de golo no estádio
    um abraço
    mas é tudo tão longe...

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  12. e agora? que te posso desejar? um Natal especial? um Natal único? será de certeza!... então que seja um Natal simplesmente feliz! tens a distância dos outros, mas parece-me que estarás mais próximo de ti que nunca... *s

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  13. Descobri a sua aventura numa noticia do Expresso.Acabei de percorrer em sentido inverso o seu blog até ao primeiro post parabéns pela coragem e determinação.Feliz Natal Bom Ano Novo e continuação de Boa Viagem.

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  14. Feliz Natal e Boas entradas um grande beijo da leonor e família

    Temos pena de não nos termos conectado contigo, agora tens é que me aceitar no skype. Fico a espera. beijinhos

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