Bacalhau de Bicicleta com Todos
Este blog não é de receitas (nem despesas). Pelo menos não culinárias... Pretende ser uma janela por onde espreito os meus amigos, de onde lhes acenarei e por onde vos deixarei entrar nos meus dias.
terça-feira, 28 de fevereiro de 2012
A convite da Matilha Bicycle Crew, em parceria com a Casa da América Latina, em Lisboa, no próximo dia 13 de Março, pelas 21h, vou partilhar com os meus amigos memórias e fotos de encontros e desencontros que povoaram os dias em que me aventurei, de bicicleta, desde Inuvik, no noroeste do Canadá, ao Ushuaia, no sul da Argentina, durante 14 meses, ao longo de 30000 km.
Não será obviamente o relato detalho da viagem do Bacalhau, mas será um gosto poder interagir, dialogar e partilhar afectos com quem me acompanhou a meio-mundo de distância.
A entrada é livre; vem dar umas pedaladas.
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
Peru II - De Leimebamba a Cajamarca
Peru II - De Leimebamba a Cajamarca
Choveu toda a noite e a manhã não trouxe sinais de melhoria. De impermeável, calças e uns botins de neopren, que se anunciam à prova de água e vento, mas na realidade apenas retardam um pouco a chegada da água aos pés e mantém um pouco mais o calor, deixei o povoado pela estrada de terra, enlameada e a subir, a caminho do alto de calla calla. Seriam cerca de 30 quilómetros de subida contínua, até dobrar os 3680 metros. A chuva na era muito intensa, e as dezenas de miúdos que desciam a estrada para a escola, pareciam ignorá-la por completo. Creio que apenas vi dois de guarda-chuva e mais um par de miúdos que partilhavam o mesmo casaco, num exercício curioso: os braços interiores ao longo do corpo e os exteriores enfiados nas mangas, como se fossem siameses… Caminhavam devagar, sós ou em grupos e, invariavelmente, davam os bons dias, detendo-se muitas vezes para nos seguir com o olhar.
O declive não é muito intenso e, não fora a chuva – que desistiu a meio da subida – e o piso pesado, teria sido uma jornada bem agradável, pela orla das encostas verdejantes, onde não faltam vacas pachorrentas pastando e ribeiros ribombando.
Subindo a Calla Calla
Depois de um almoço frugal no cume de Calla calla, onde não faltaram as inseparáveis bananas, duas mangas deliciosas e um pouco de doce de morango, que tornou comestíveis as quatro empanadas de galinha, secas como palha carbonizada, lançamo-nos às nuvens e ao nevoeiro. Infelizmente, do lado ocidental do cume, a visibilidade era praticamente nula, avistando-se pontualmente cumes que perfuravam as nuvens e nesgas de profundos vales de verdes luxuriantes. Há mesmo um miradouro anunciado, que deve proporcionar vistas deslumbrantes… tivemos de nos ficar pela imaginação!
Os 60 quilómetros desde o alto de calla calla até Balsas, na margem do rio Marañón, são de contínua descida. Umas vezes suave, outras alucinante; umas vezes no meio das nuvens e da neblina, outras com as rodas bem assentes na terra, ora avermelhada, ora esbranquiçada, ora negra, invariavelmente molhada ou mesmo enlameada; umas vezes cruzando pontes arcaicas de madeira, outras sentindo nos pés a água fria dos pequenos ribeiros que passamos a vau; umas vezes debaixo de chuva, outras procurando fugir-lhe; umas vezes com o olhar prisioneiro da estrada, outras prisioneiro das ravinas sem fundo, à distância de um passo (uma roda) em falso, outras, ainda, da louca cadeia montanhosa, que tanto perpassa o céu, como se lança no vazio sem fundo; sentindo sempre a vertigem da estrada, das rectas rápidas e curtas, das curvas sucessivas que se projectam no espaço.
A descida de Calla Calla a Balsas, oferece tudo o que um aventureiro de bicicleta pode desejar… adrenalina constante, paisagens deslumbrantes, surpresas em cada curva, cada momento
Naquela floresta infinita de cumes montanhosos, uma qualquer curva da estrada presenteia o olhar com uma cordilheira completamente diferente: as formas suaves e a cor verdejante das montanhas, desaparece por completo, surgindo uma cordilheira inóspita, de rocha cinzenta metálica, arestas vivas e picos agrestes. No sopé avista-se uma grossa faixa de água – é o caudaloso rio Marañón.
Perscrutando a montanha para lá do rio, avista-se uma linha ziguezagueante, subindo até desaparecer nas nuvens. Ainda não terminou o dia, ainda não digeri 30 quilómetros de subida contínua e 60 de descida alucinante, ainda não vislumbrei o local onde descansarei umas horas e já me entra pelos olhos e alma adentro o dia seguinte – este carrossel infernal, que tem tanto de fascinante quanto de diabólico; tanto de atracção quanto de repulsivo; tanto de apaixonante quanto de odioso. Mas que não permite um minuto que seja de neutralidade, de indiferença, de vazio. Explode permanentemente no corpo e na alma, catapultando-me sempre para diante, cansando-me tanto ou mais as emoções que o esforço físico…
E o rio Marañon traz diferentes paisagens… só a adrenalina e o êxtase se mantêm inalteráveis até Balsas
Balsas é uma rua na margem do Marañón. E na rua que é Balsas, estavam montadas duas redes de voleibol, onde miúdos e graúdos disputavam os pontos com grande alarido. No espaço que medeia os dois “campos” ainda havia espaço para uma partida de futebol entre catraios, pois os maiores jogavam no campo que fica no fim da aldeia, a uns trezentos metros do início…
O único alojamento existente é a hospedaje las palmeras, pelo que a escolha não podia ser mais fácil. Quando perguntamos se há duche, um aceno de cabeça foi a resposta. Parece que houve um “derrumbe” à tarde, provocado pelas fortes chuvas dos últimos dias, tendo levado consigo as redes de água e electricidade… Mas com o poderoso rio à ilharga, a água não faltava. Castanha, da cor da terra que arrasta, lá se arranjaram dois balditos para o duche rápido, na pequena casa de banho às escuras. O jantar, por encomenda, foi comido à luz da vela, não se vendo bem a cor nem o conteúdo. Mas o chá do pequeno-almoço não oferecia dúvidas: a água das canecas parecia já conter a infusão, apesar das saquetas ainda estarem intactas no pires…
A equipa de jovens técnicos, hospedada há quase uma semana na hospedaje, vai regressar a Lima sem realizar o trabalho para o estudo de impacte ambiental da central hidroeléctrica que está planeada a jusante. Iam descer o Marañón em rafts, até ao local de construção da barragem, para recolherem amostras e informação da fauna e flora, mas foram surpreendidos pelo enorme caudal do rio, provocado pelas chuvas recentes. O Daniel, jovem engenheiro florestal, parece debater-se com um problema insolúvel: que valor monetário atribuir às espécies endémicas, exclusivas desta região, que se extinguirão pura e simplesmente com a construção da barragem… o dilema entre o progresso económico e a preservação ambiental, mais uma vez parece insuperável…
Na hospedaje, várias pessoas mostravam-se incrédulas quando dizíamos que íamos para Celendín de bicicleta. Parecia intransponível a cordilheira que tínhamos pela frente...ao que parece, seriam 40 quilómetros de subida ao inferno, em constantes zig-zags, transpondo vários patamares, sem que se visse ou adivinhasse o fim.
Balsas fica para trás. Para a frente fica o céu…
Transposta a ponte sobre o Marañón, e percorridas escassas centenas de metros paralelos ao rio, a estrada começa de imediato a subir. A paisagem é árida, com cactos e arbustos desfolhados, de espetos com ar ressequido dispersos pelas encostas agrestes. A estrada estende-se pela encosta fora, desaparecendo numa curva fechada. Ao longe, o olhar abarca uma espécie de anfiteatro semicircular, tocando as nuvens, com duas ténues linhas oblíquas sulcando a “parede” formada pela montanha – são as marcas difusas da estrada distante… mais ao perto, sucedem-se os Ss, as curvas de 180º, as subidas ao patamar seguinte; para trás vai ficando o vale onde corre o Marañón e vai emergindo, do outro lado do rio, o caminho ontem percorrido. Por vezes imagino um espelho, ou as duas faces de uma mesma moeda: a vertigem da descida de ontem inverte-se e estende-se agora aos meus pés, mas a subir. À medida que subo, vai crescendo a panorâmica do vale e das duas encostas simétricas. Olho aquela dimensão inapropriável, olho aquela grandeza incomensurável, olho aquela vastidão desmedida, olho para esta pequena molécula perdida no espaço e desato-me a rir, sem razão definida. Talvez esteja louco, talvez seja da altitude, talvez precise de rir para libertar a emoção ou o medo, ou talvez esteja mesmo extasiado por me encontrar aqui e agora, tocando o infinito, suspendendo o tempo, transpondo o abismo.
No topo do mundo
Também há cor…
É diminuta a presença humana ao longo do caminho, mas quando a montanha abre um pouco a sua carapaça inóspita, surgem algumas casas dispersas. Numa delas, vários jovens empoleirados em árvores colhem guábas para vender. Pergunto-lhes se me vendem uma ou duas e uma moça toda despachada diz, do cimo da árvore, que sim. Ordena a um miúdo que me dê várias e que escolha as melhores. Estende-me umas quatro vagens grandes e recusa persistentemente os três soles que lhe quero dar. A moça insiste para não aceitar, que é “regalo”. E eu insisto que também os soles são “regalo”. Depois de um longo braço-de-ferro, lá aceita as moedas e vai escolher mais guábas para me dar, que partilho com o Luís, entretanto chegado.
Guábas…
Uns quilómetros adiante, uma das escassas casas que avisto, tinha uma ardósia à porta com a parca ementa: borrego guisado e porco frito. Está calor, as energias precisam de ser reforçadas, pois a jornada está a menos de metade, e aproveitamos o que há.
Mais umas curvas transpostas e desponta uma nova encosta, envolta nas nuvens, a vedar o caminho. Definitivamente não sairemos daqui sem transpor as nuvens… Na encosta vêm-se, bem definidos, cinco patamares de estrada em zig-zag. O último desaparece literalmente nas nuvens altas. A progressão é lenta, mas um par de horas mais tarde somos nós que desaparecemos no meio das nuvens, que jogam um estranho jogo de luz e sombra, ora deixando o sol inundar de luz o planalto aos nossos pés, onde não falta meio arco-íris, ora cerrando completamente a cortina branca, reduzindo a visibilidade a escassos metros.
Superando as montanhas, tocando as nuvens, bebendo o nevoeiro, espreitando o arco-íris…
Quando julgava que estava transposta a última barreira, eis que surge do meio do nevoeiro nova inflexão da estrada, continuando a apontar aos céus. O dia ia longo e não desejava, de todo, mais um cume para transpor, até porque as nuvens ameaçavam derreter a qualquer momento, mas as regras do jogo são estas e há que estar sempre disponível para as surpresas! Além do mais, esta última etapa rumo aos céus, ainda tinha dois belíssimos momentos para oferecer...
Há tempos para além do tempo…
Do meio da bruma, emergiram três vultos caminhando na berma da estrada. À medida que me aproximava, foram-se definindo as formas de uma mulher, um miúdo e um cão e quando já estava bem perto, percebi que a mulher, de chapéu alto na cabeça, xaile pelas costas e cachecol ao pescoço, empunhava um velo de lã numa mão e o fuso na outra, fiando lã enquanto caminhava. Tímida, com um ar terno no olhar e sorriso simpático, deixou-se fotografar no seu labor.
Com humor e boa disposição, mesmo nos momentos mais duros
Poucos quilómetros adiante, jazia na berma da estrada um camião com um ar absolutamente moribundo, que me tinha ultrapassado há uma boa hora. Condutor e passageiros olhavam com ar desalentado para o monte de lata e ferrugem, mas recuperaram a alegria e boa disposição ao avistarem dois ciclistas loucos, mantendo animada conversa connosco. A correia de distribuição tinha rebentado e o motor aquecia imenso, até à beira da fusão dos metais! Um jovem tinha ido buscar um bidão de água umas dezenas de metros adiante e esperavam chegar ao destino vertendo água directamente no radiador – ou coisa do género, pois de motores ainda sei menos do que de bicicletas. A boa notícia – para nós e para eles – é que a subida terminava daí a 500 metros e depois era só descer até Celendin.
No fim da subida, enquanto vestia o corta-vento, lá veio o camião, a passo de caracol, com um rapaz empoleirado em cima do motor, despejando água por um funil improvisado de uma garrafa de água. Ultrapassei-os pouco depois, sempre por entre acenos mútuos e votos de “suerte”.
Saneamento a cores…
De Celendin a Cajamarca a paisagem torna-se mais suave, os campos mais habitados, com grande quantidade de vacas e diversas estações de “arrefecimento” de leite, da Nestlé, ao longo do caminho. Os vestuários garridos e os chapéus altos – tipo cartola – generalizam-se na indumentária feminina; homens, mulheres e crianças recolhem lenha, que transportam, ajoujados, às costas, curvados quase a 90º; mulheres de todas as idades, de faces entre o rosado e o tisnado pelo rigor do clima, entremeiam a fiação e tecelagem com o pastoreio ou simplesmente enquanto se deslocam, a pé, pelas estradas sem fim, muitas vezes de rádio a tiracolo…
A estrada sempre leva e tráz…vidas, modos de vida, rostos, sorrisos e tristezas
Pedalávamos encosta arriba, deixando longe Celendin e aproximando-nos de Encañada, já depois do almoço numa aldeia sem nome, em dia de feira, num comedor sem ementa, numa sala sem luz, onde se arrimavam, tapando quase por completo uma parede, mais de 60 grades de cervejas grandes, onde o Luís provou o famoso cuy e eu uma truta estorricada na fritura, quando um simpático aldeão nos convidou a entrar na queijaria comunitária e provar o queijo. Dois jovens debruçavam-se sobre uma grande cuba metálica, mexendo o leite e preparando a coalhada. Ao lado “repousava” um monte de queijos, de três ou quatro quilos cada, que seriam vendidos para Lima, a 10 sois o quilo. Num prato improvisado, um grande de naco de queijo salgado, era-nos oferecido. Daí a pouco surgiu directamente no coadouro um naco de “quesadillo” – a coalhada fresca – para provarmos também. Fui buscar uns pãezinhos um bocado secos, que andavam há vários dias esquecidos nos alforges, e atafulhámo-nos até poder…
A meta de chegar a Cajamarca foi sendo arredada do horizonte pelo relevo e paragens etnográficas e gastronómicas que íamos fazendo. Além do mais, quando a estrada começou, finalmente, a descer para Encañada, o piso era péssimo e enlameado, e as nuvens, há muito ameaçadoras, deram largas à fúria, desatando num curto aguaceiro torrencial. O Luís ainda se safou do dilúvio, mas eu furei a meio do penúltimo degrau – sim, a estrada aqui é sempre em degraus, seja encosta acima, seja encosta abaixo, pois não existem estradas planas – e tive de mudar a câmara debaixo de água a jorros.
Pernoita e jantar em Encañada
Era suposto haver uma “hospedaje” em Encañada, mas afinal os donos estão em Cajamarca e a hospedagem está fechada. A povoação é pequena, enlameada, escura e não tem qualquer outro alojamento. Ainda nos disseram para ir à estação de serviço, mas o dono – que tem um enorme edifício, parece-me que em avançado estado de preparação para exactamente uma “hospedaje”, não se condoeu do nosso estado e necessidade. Parecia que a única alternativa era lançarmo-nos aos derradeiros 30 quilómetros – com uns dez de subida – para Cajamarca. Mas à saída de Enseñada, uma mulher preparava “petiscos” no fogareiro ambulante, para vender aos transeuntes – tipo barraca de couratos, mas em versão decadente. O Luís perguntou-lhe se não conhecia um local onde pudéssemos pernoitar e, hesitante, lá disse que sim, que poderia arranjar-nos um “quarto”. Era o que queríamos ouvir e nem hesitámos quando vimos a família a retirar duma arrecadação os sacos de cereais e outras bugigangas. Tinha chão cimentado, uma lâmpada no tecto, um telhado de zinco – com buracos, é certo, mas não parecia chover lá dentro – e quatro paredes. Tudo o que necessitávamos, portanto. E até havia “banhos” e duche – de água fria, claro…
7h30 da manhã, dia de eleições – o voto é obrigatório
De volta ao asfalto – já quase não me lembrava da cor… – rapidamente chegámos a Cajamarca. A capital do departamento, com quase 200 000 habitantes, e sem os prédios altos a que estamos habituados no ocidente, estende-se por uma vasta área plana, embora rodeada de montanhas. Como outros povoados mais pequenos, à distância sobressai a grande mancha de cor avermelhada, das paredes de tijolo e das telhas de barro.
Cajamarca, vista da silla del índio
Cajamarca, plaza de armas
Iguarias…outro figo pita!!
E caldo de cabeça de carneiro!!
A “plaza de armas”, com a sua fonte antiga – com origem no tempo do império inca – é o coração da cidade e a zona melhor preservada e mais agradável. As ruas próximas da “plaza”, têm uma intensa actividade comercial e milhares de pessoas em constante vai-e-vem. Hoje, dia da primeira volta das eleições presidências, as ruas têm um movimento louco, uma diversidade etnográfica, de trajes, usos e costumes, deslumbrante, num colorido irrepetível. A “plaza de armas” parece um desfile multicultural, multigeracional, pluri-social, numa fusão do passado ancestral e do presente moderno, onde não faltam os fotógrafos de Polaroid em punho, a fiadora de fuso na mão, fiando coloridos fios de lã, os aldeãos, de pequena estatura, trajes garridos, chapéus altos, de cor bege, na cabeça e dentes dourados ou prateados…
A minha única preocupação dos últimos tempos é a Dempster. E o meu principal objectivo em Cajamarca é conseguir repará-la convenientemente, de modo a que se porte nos próximos 13 000 quilómetros, como se portou nos anteriores 19 000… mas a tarefa não parece fácil. O primeiro contacto com uma (boa) loja de peças para bicicleta, não tinha o que necessito. Depois de uma pesquisa na net, descubro o “taller el rayo”, que tem duas moradas – o que me parece sinal de “grandeza”, que pode significar qualidade… Uma das moradas fica a dois quarteirões do “hostal los balcones de las gáveas”, onde estamos hospedados. Apesar de Domingo e dia de eleições, vou ver se está aberto. Mas a modesta porta está fechada – há que esperar pelo dia seguinte.
Pela manhã, lá vou ao el rayo da calle Ayacucho, mas é uma oficina paupérrima, sem qualquer tipo de peça. No entanto, depois de expor o meu problema – a Dempster estava no hostal – o idoso proprietário, e mecânico, disse-me que na “el rayo” da rua San Martin havia o que eu necessitava para uma bicicleta “moderna” como a minha. Telefonou para o Max, para saber se estava na oficina e avisando-o que eu iria para lá.
Apesar do espaço modesto, da escassez de “repuestos”, da juventude do Max – dono e técnico do “taller” – lá conseguiu reunir o conjunto de peças shimano a substituir, ainda que de uma gama fraquita: corrente, cassete, desviador, pedaleira (conjunto com crencos) e calços de travões. Tudo orçava em 604 pesos (pouco mais de 150 €). É verdade que e o desviador é o mais fraquinho da shimano e o Luís achava que nem sequer servia para bicicletas de 9 mudanças, mas ao fim do dia, depois de mudar também o cabo das mudanças, a Dempster estava funcional, com todas as mudanças a entrarem e saírem bem – espero que até ao Ushuaia!
Banhos del Inca é uma pequena povoação que dista meia dúzia de quilómetros de Cajamarca e que, como o nome indica, tem um complexo de banhos termais. Aliás, foi nesse local que Atahualpa, o último imperador Inca, se reuniu com Pizarro e foi de lá que o levaram, prisioneiro, para Cajamarca, onde foi preso, “julgado”, condenado e, mais tarde, morto – dizem os locais, que após ter pago a quantia de ouro estipulada por Pizarro para o libertarem…
As termas de Banhos del Inca é um espaço tranquilo, aprazível, com várias opções, desde sauna, massagens, piscinas, banhos (ou poços, como os designam) individuais, com água de várias temperaturas. No centro do complexo, um conjunto de “tanques” de água a 72º impressiona pelo calor que liberta, pelas nuvens de vapor com o típico odor do enxofre, pelo borbulhar, pelos tons ferrugentos e ocres do solo… enquanto o Max reparava a Dempster, eu “aquecia e arrefecia” nos Baños del Inca!
Choveu toda a noite e a manhã não trouxe sinais de melhoria. De impermeável, calças e uns botins de neopren, que se anunciam à prova de água e vento, mas na realidade apenas retardam um pouco a chegada da água aos pés e mantém um pouco mais o calor, deixei o povoado pela estrada de terra, enlameada e a subir, a caminho do alto de calla calla. Seriam cerca de 30 quilómetros de subida contínua, até dobrar os 3680 metros. A chuva na era muito intensa, e as dezenas de miúdos que desciam a estrada para a escola, pareciam ignorá-la por completo. Creio que apenas vi dois de guarda-chuva e mais um par de miúdos que partilhavam o mesmo casaco, num exercício curioso: os braços interiores ao longo do corpo e os exteriores enfiados nas mangas, como se fossem siameses… Caminhavam devagar, sós ou em grupos e, invariavelmente, davam os bons dias, detendo-se muitas vezes para nos seguir com o olhar.
O declive não é muito intenso e, não fora a chuva – que desistiu a meio da subida – e o piso pesado, teria sido uma jornada bem agradável, pela orla das encostas verdejantes, onde não faltam vacas pachorrentas pastando e ribeiros ribombando.
Subindo a Calla Calla
Depois de um almoço frugal no cume de Calla calla, onde não faltaram as inseparáveis bananas, duas mangas deliciosas e um pouco de doce de morango, que tornou comestíveis as quatro empanadas de galinha, secas como palha carbonizada, lançamo-nos às nuvens e ao nevoeiro. Infelizmente, do lado ocidental do cume, a visibilidade era praticamente nula, avistando-se pontualmente cumes que perfuravam as nuvens e nesgas de profundos vales de verdes luxuriantes. Há mesmo um miradouro anunciado, que deve proporcionar vistas deslumbrantes… tivemos de nos ficar pela imaginação!
Os 60 quilómetros desde o alto de calla calla até Balsas, na margem do rio Marañón, são de contínua descida. Umas vezes suave, outras alucinante; umas vezes no meio das nuvens e da neblina, outras com as rodas bem assentes na terra, ora avermelhada, ora esbranquiçada, ora negra, invariavelmente molhada ou mesmo enlameada; umas vezes cruzando pontes arcaicas de madeira, outras sentindo nos pés a água fria dos pequenos ribeiros que passamos a vau; umas vezes debaixo de chuva, outras procurando fugir-lhe; umas vezes com o olhar prisioneiro da estrada, outras prisioneiro das ravinas sem fundo, à distância de um passo (uma roda) em falso, outras, ainda, da louca cadeia montanhosa, que tanto perpassa o céu, como se lança no vazio sem fundo; sentindo sempre a vertigem da estrada, das rectas rápidas e curtas, das curvas sucessivas que se projectam no espaço.
A descida de Calla Calla a Balsas, oferece tudo o que um aventureiro de bicicleta pode desejar… adrenalina constante, paisagens deslumbrantes, surpresas em cada curva, cada momento
Naquela floresta infinita de cumes montanhosos, uma qualquer curva da estrada presenteia o olhar com uma cordilheira completamente diferente: as formas suaves e a cor verdejante das montanhas, desaparece por completo, surgindo uma cordilheira inóspita, de rocha cinzenta metálica, arestas vivas e picos agrestes. No sopé avista-se uma grossa faixa de água – é o caudaloso rio Marañón.
Perscrutando a montanha para lá do rio, avista-se uma linha ziguezagueante, subindo até desaparecer nas nuvens. Ainda não terminou o dia, ainda não digeri 30 quilómetros de subida contínua e 60 de descida alucinante, ainda não vislumbrei o local onde descansarei umas horas e já me entra pelos olhos e alma adentro o dia seguinte – este carrossel infernal, que tem tanto de fascinante quanto de diabólico; tanto de atracção quanto de repulsivo; tanto de apaixonante quanto de odioso. Mas que não permite um minuto que seja de neutralidade, de indiferença, de vazio. Explode permanentemente no corpo e na alma, catapultando-me sempre para diante, cansando-me tanto ou mais as emoções que o esforço físico…
E o rio Marañon traz diferentes paisagens… só a adrenalina e o êxtase se mantêm inalteráveis até Balsas
Balsas é uma rua na margem do Marañón. E na rua que é Balsas, estavam montadas duas redes de voleibol, onde miúdos e graúdos disputavam os pontos com grande alarido. No espaço que medeia os dois “campos” ainda havia espaço para uma partida de futebol entre catraios, pois os maiores jogavam no campo que fica no fim da aldeia, a uns trezentos metros do início…
O único alojamento existente é a hospedaje las palmeras, pelo que a escolha não podia ser mais fácil. Quando perguntamos se há duche, um aceno de cabeça foi a resposta. Parece que houve um “derrumbe” à tarde, provocado pelas fortes chuvas dos últimos dias, tendo levado consigo as redes de água e electricidade… Mas com o poderoso rio à ilharga, a água não faltava. Castanha, da cor da terra que arrasta, lá se arranjaram dois balditos para o duche rápido, na pequena casa de banho às escuras. O jantar, por encomenda, foi comido à luz da vela, não se vendo bem a cor nem o conteúdo. Mas o chá do pequeno-almoço não oferecia dúvidas: a água das canecas parecia já conter a infusão, apesar das saquetas ainda estarem intactas no pires…
A equipa de jovens técnicos, hospedada há quase uma semana na hospedaje, vai regressar a Lima sem realizar o trabalho para o estudo de impacte ambiental da central hidroeléctrica que está planeada a jusante. Iam descer o Marañón em rafts, até ao local de construção da barragem, para recolherem amostras e informação da fauna e flora, mas foram surpreendidos pelo enorme caudal do rio, provocado pelas chuvas recentes. O Daniel, jovem engenheiro florestal, parece debater-se com um problema insolúvel: que valor monetário atribuir às espécies endémicas, exclusivas desta região, que se extinguirão pura e simplesmente com a construção da barragem… o dilema entre o progresso económico e a preservação ambiental, mais uma vez parece insuperável…
Na hospedaje, várias pessoas mostravam-se incrédulas quando dizíamos que íamos para Celendín de bicicleta. Parecia intransponível a cordilheira que tínhamos pela frente...ao que parece, seriam 40 quilómetros de subida ao inferno, em constantes zig-zags, transpondo vários patamares, sem que se visse ou adivinhasse o fim.
Balsas fica para trás. Para a frente fica o céu…
Transposta a ponte sobre o Marañón, e percorridas escassas centenas de metros paralelos ao rio, a estrada começa de imediato a subir. A paisagem é árida, com cactos e arbustos desfolhados, de espetos com ar ressequido dispersos pelas encostas agrestes. A estrada estende-se pela encosta fora, desaparecendo numa curva fechada. Ao longe, o olhar abarca uma espécie de anfiteatro semicircular, tocando as nuvens, com duas ténues linhas oblíquas sulcando a “parede” formada pela montanha – são as marcas difusas da estrada distante… mais ao perto, sucedem-se os Ss, as curvas de 180º, as subidas ao patamar seguinte; para trás vai ficando o vale onde corre o Marañón e vai emergindo, do outro lado do rio, o caminho ontem percorrido. Por vezes imagino um espelho, ou as duas faces de uma mesma moeda: a vertigem da descida de ontem inverte-se e estende-se agora aos meus pés, mas a subir. À medida que subo, vai crescendo a panorâmica do vale e das duas encostas simétricas. Olho aquela dimensão inapropriável, olho aquela grandeza incomensurável, olho aquela vastidão desmedida, olho para esta pequena molécula perdida no espaço e desato-me a rir, sem razão definida. Talvez esteja louco, talvez seja da altitude, talvez precise de rir para libertar a emoção ou o medo, ou talvez esteja mesmo extasiado por me encontrar aqui e agora, tocando o infinito, suspendendo o tempo, transpondo o abismo.
No topo do mundo
Também há cor…
É diminuta a presença humana ao longo do caminho, mas quando a montanha abre um pouco a sua carapaça inóspita, surgem algumas casas dispersas. Numa delas, vários jovens empoleirados em árvores colhem guábas para vender. Pergunto-lhes se me vendem uma ou duas e uma moça toda despachada diz, do cimo da árvore, que sim. Ordena a um miúdo que me dê várias e que escolha as melhores. Estende-me umas quatro vagens grandes e recusa persistentemente os três soles que lhe quero dar. A moça insiste para não aceitar, que é “regalo”. E eu insisto que também os soles são “regalo”. Depois de um longo braço-de-ferro, lá aceita as moedas e vai escolher mais guábas para me dar, que partilho com o Luís, entretanto chegado.
Guábas…
Uns quilómetros adiante, uma das escassas casas que avisto, tinha uma ardósia à porta com a parca ementa: borrego guisado e porco frito. Está calor, as energias precisam de ser reforçadas, pois a jornada está a menos de metade, e aproveitamos o que há.
Mais umas curvas transpostas e desponta uma nova encosta, envolta nas nuvens, a vedar o caminho. Definitivamente não sairemos daqui sem transpor as nuvens… Na encosta vêm-se, bem definidos, cinco patamares de estrada em zig-zag. O último desaparece literalmente nas nuvens altas. A progressão é lenta, mas um par de horas mais tarde somos nós que desaparecemos no meio das nuvens, que jogam um estranho jogo de luz e sombra, ora deixando o sol inundar de luz o planalto aos nossos pés, onde não falta meio arco-íris, ora cerrando completamente a cortina branca, reduzindo a visibilidade a escassos metros.
Superando as montanhas, tocando as nuvens, bebendo o nevoeiro, espreitando o arco-íris…
Quando julgava que estava transposta a última barreira, eis que surge do meio do nevoeiro nova inflexão da estrada, continuando a apontar aos céus. O dia ia longo e não desejava, de todo, mais um cume para transpor, até porque as nuvens ameaçavam derreter a qualquer momento, mas as regras do jogo são estas e há que estar sempre disponível para as surpresas! Além do mais, esta última etapa rumo aos céus, ainda tinha dois belíssimos momentos para oferecer...
Há tempos para além do tempo…
Do meio da bruma, emergiram três vultos caminhando na berma da estrada. À medida que me aproximava, foram-se definindo as formas de uma mulher, um miúdo e um cão e quando já estava bem perto, percebi que a mulher, de chapéu alto na cabeça, xaile pelas costas e cachecol ao pescoço, empunhava um velo de lã numa mão e o fuso na outra, fiando lã enquanto caminhava. Tímida, com um ar terno no olhar e sorriso simpático, deixou-se fotografar no seu labor.
Com humor e boa disposição, mesmo nos momentos mais duros
Poucos quilómetros adiante, jazia na berma da estrada um camião com um ar absolutamente moribundo, que me tinha ultrapassado há uma boa hora. Condutor e passageiros olhavam com ar desalentado para o monte de lata e ferrugem, mas recuperaram a alegria e boa disposição ao avistarem dois ciclistas loucos, mantendo animada conversa connosco. A correia de distribuição tinha rebentado e o motor aquecia imenso, até à beira da fusão dos metais! Um jovem tinha ido buscar um bidão de água umas dezenas de metros adiante e esperavam chegar ao destino vertendo água directamente no radiador – ou coisa do género, pois de motores ainda sei menos do que de bicicletas. A boa notícia – para nós e para eles – é que a subida terminava daí a 500 metros e depois era só descer até Celendin.
No fim da subida, enquanto vestia o corta-vento, lá veio o camião, a passo de caracol, com um rapaz empoleirado em cima do motor, despejando água por um funil improvisado de uma garrafa de água. Ultrapassei-os pouco depois, sempre por entre acenos mútuos e votos de “suerte”.
Saneamento a cores…
De Celendin a Cajamarca a paisagem torna-se mais suave, os campos mais habitados, com grande quantidade de vacas e diversas estações de “arrefecimento” de leite, da Nestlé, ao longo do caminho. Os vestuários garridos e os chapéus altos – tipo cartola – generalizam-se na indumentária feminina; homens, mulheres e crianças recolhem lenha, que transportam, ajoujados, às costas, curvados quase a 90º; mulheres de todas as idades, de faces entre o rosado e o tisnado pelo rigor do clima, entremeiam a fiação e tecelagem com o pastoreio ou simplesmente enquanto se deslocam, a pé, pelas estradas sem fim, muitas vezes de rádio a tiracolo…
A estrada sempre leva e tráz…vidas, modos de vida, rostos, sorrisos e tristezas
Pedalávamos encosta arriba, deixando longe Celendin e aproximando-nos de Encañada, já depois do almoço numa aldeia sem nome, em dia de feira, num comedor sem ementa, numa sala sem luz, onde se arrimavam, tapando quase por completo uma parede, mais de 60 grades de cervejas grandes, onde o Luís provou o famoso cuy e eu uma truta estorricada na fritura, quando um simpático aldeão nos convidou a entrar na queijaria comunitária e provar o queijo. Dois jovens debruçavam-se sobre uma grande cuba metálica, mexendo o leite e preparando a coalhada. Ao lado “repousava” um monte de queijos, de três ou quatro quilos cada, que seriam vendidos para Lima, a 10 sois o quilo. Num prato improvisado, um grande de naco de queijo salgado, era-nos oferecido. Daí a pouco surgiu directamente no coadouro um naco de “quesadillo” – a coalhada fresca – para provarmos também. Fui buscar uns pãezinhos um bocado secos, que andavam há vários dias esquecidos nos alforges, e atafulhámo-nos até poder…
A meta de chegar a Cajamarca foi sendo arredada do horizonte pelo relevo e paragens etnográficas e gastronómicas que íamos fazendo. Além do mais, quando a estrada começou, finalmente, a descer para Encañada, o piso era péssimo e enlameado, e as nuvens, há muito ameaçadoras, deram largas à fúria, desatando num curto aguaceiro torrencial. O Luís ainda se safou do dilúvio, mas eu furei a meio do penúltimo degrau – sim, a estrada aqui é sempre em degraus, seja encosta acima, seja encosta abaixo, pois não existem estradas planas – e tive de mudar a câmara debaixo de água a jorros.
Pernoita e jantar em Encañada
Era suposto haver uma “hospedaje” em Encañada, mas afinal os donos estão em Cajamarca e a hospedagem está fechada. A povoação é pequena, enlameada, escura e não tem qualquer outro alojamento. Ainda nos disseram para ir à estação de serviço, mas o dono – que tem um enorme edifício, parece-me que em avançado estado de preparação para exactamente uma “hospedaje”, não se condoeu do nosso estado e necessidade. Parecia que a única alternativa era lançarmo-nos aos derradeiros 30 quilómetros – com uns dez de subida – para Cajamarca. Mas à saída de Enseñada, uma mulher preparava “petiscos” no fogareiro ambulante, para vender aos transeuntes – tipo barraca de couratos, mas em versão decadente. O Luís perguntou-lhe se não conhecia um local onde pudéssemos pernoitar e, hesitante, lá disse que sim, que poderia arranjar-nos um “quarto”. Era o que queríamos ouvir e nem hesitámos quando vimos a família a retirar duma arrecadação os sacos de cereais e outras bugigangas. Tinha chão cimentado, uma lâmpada no tecto, um telhado de zinco – com buracos, é certo, mas não parecia chover lá dentro – e quatro paredes. Tudo o que necessitávamos, portanto. E até havia “banhos” e duche – de água fria, claro…
7h30 da manhã, dia de eleições – o voto é obrigatório
De volta ao asfalto – já quase não me lembrava da cor… – rapidamente chegámos a Cajamarca. A capital do departamento, com quase 200 000 habitantes, e sem os prédios altos a que estamos habituados no ocidente, estende-se por uma vasta área plana, embora rodeada de montanhas. Como outros povoados mais pequenos, à distância sobressai a grande mancha de cor avermelhada, das paredes de tijolo e das telhas de barro.
Cajamarca, vista da silla del índio
Cajamarca, plaza de armas
Iguarias…outro figo pita!!
E caldo de cabeça de carneiro!!
A “plaza de armas”, com a sua fonte antiga – com origem no tempo do império inca – é o coração da cidade e a zona melhor preservada e mais agradável. As ruas próximas da “plaza”, têm uma intensa actividade comercial e milhares de pessoas em constante vai-e-vem. Hoje, dia da primeira volta das eleições presidências, as ruas têm um movimento louco, uma diversidade etnográfica, de trajes, usos e costumes, deslumbrante, num colorido irrepetível. A “plaza de armas” parece um desfile multicultural, multigeracional, pluri-social, numa fusão do passado ancestral e do presente moderno, onde não faltam os fotógrafos de Polaroid em punho, a fiadora de fuso na mão, fiando coloridos fios de lã, os aldeãos, de pequena estatura, trajes garridos, chapéus altos, de cor bege, na cabeça e dentes dourados ou prateados…
A minha única preocupação dos últimos tempos é a Dempster. E o meu principal objectivo em Cajamarca é conseguir repará-la convenientemente, de modo a que se porte nos próximos 13 000 quilómetros, como se portou nos anteriores 19 000… mas a tarefa não parece fácil. O primeiro contacto com uma (boa) loja de peças para bicicleta, não tinha o que necessito. Depois de uma pesquisa na net, descubro o “taller el rayo”, que tem duas moradas – o que me parece sinal de “grandeza”, que pode significar qualidade… Uma das moradas fica a dois quarteirões do “hostal los balcones de las gáveas”, onde estamos hospedados. Apesar de Domingo e dia de eleições, vou ver se está aberto. Mas a modesta porta está fechada – há que esperar pelo dia seguinte.
Pela manhã, lá vou ao el rayo da calle Ayacucho, mas é uma oficina paupérrima, sem qualquer tipo de peça. No entanto, depois de expor o meu problema – a Dempster estava no hostal – o idoso proprietário, e mecânico, disse-me que na “el rayo” da rua San Martin havia o que eu necessitava para uma bicicleta “moderna” como a minha. Telefonou para o Max, para saber se estava na oficina e avisando-o que eu iria para lá.
Apesar do espaço modesto, da escassez de “repuestos”, da juventude do Max – dono e técnico do “taller” – lá conseguiu reunir o conjunto de peças shimano a substituir, ainda que de uma gama fraquita: corrente, cassete, desviador, pedaleira (conjunto com crencos) e calços de travões. Tudo orçava em 604 pesos (pouco mais de 150 €). É verdade que e o desviador é o mais fraquinho da shimano e o Luís achava que nem sequer servia para bicicletas de 9 mudanças, mas ao fim do dia, depois de mudar também o cabo das mudanças, a Dempster estava funcional, com todas as mudanças a entrarem e saírem bem – espero que até ao Ushuaia!
Banhos del Inca é uma pequena povoação que dista meia dúzia de quilómetros de Cajamarca e que, como o nome indica, tem um complexo de banhos termais. Aliás, foi nesse local que Atahualpa, o último imperador Inca, se reuniu com Pizarro e foi de lá que o levaram, prisioneiro, para Cajamarca, onde foi preso, “julgado”, condenado e, mais tarde, morto – dizem os locais, que após ter pago a quantia de ouro estipulada por Pizarro para o libertarem…
As termas de Banhos del Inca é um espaço tranquilo, aprazível, com várias opções, desde sauna, massagens, piscinas, banhos (ou poços, como os designam) individuais, com água de várias temperaturas. No centro do complexo, um conjunto de “tanques” de água a 72º impressiona pelo calor que liberta, pelas nuvens de vapor com o típico odor do enxofre, pelo borbulhar, pelos tons ferrugentos e ocres do solo… enquanto o Max reparava a Dempster, eu “aquecia e arrefecia” nos Baños del Inca!
quinta-feira, 29 de setembro de 2011
Chile - de San Pedro de Atacama a Valparaíso
Chile - de San Pedro de Atacama a Valparaíso
A tralha...
Depois dos duros dias passados no sul da Bolívia, desejava transpor a fronteira chilena e aterrar em San Pedro de Atacama. Tinha bastante presente o que li algures sobre o local: “apesar de ser uma pequena povoação perdida no deserto, comparada com o sul da Bolívia, é um maravilhoso oásis…”
Transpostos os últimos quilómetros de terra e neve com a Dempster pela mão, sem sentir o corpo gelado, apenas escutando o seco bater do coração na manhã sempre fria, avistei, finalmente, a nesga escura de asfalto desaparecendo nas encostas brancas dos montes gelados. Para a esquerda era seguramente a fronteira com a Argentina e o famoso “paso” Jama, de que ouvi contar maravilhas paisagísticas; para a direita, a estrada precipitava-se numa interminável descida, desaparecendo no infindo deserto, com passagem por San Pedro de Atacama.
À beira da estrada algumas famílias divertiam-se com as habituais brincadeiras na neve. Eu é que não tinha qualquer sentido de humor, desejando apenas sair rapidamente da zona gelada e poder sentir no corpo os frágeis raios de sol que brilhavam no céu azul.
Os mais de quarenta quilómetros de descida, devolveram-me, finalmente, a energia, o calor e a boa disposição, bem afundados nas peripécias dos últimos tempos. E trouxeram San Pedro, um pequeno povoado completamente perdido na imensidão do deserto.
Esperava avistar a povoação à distância, brilhando qual diamante, como um magnífico oásis no deserto. Mas não, o povoado quase não se distingue da paisagem árida e monocromática do deserto. Apenas a presença da pequena mancha de árvores verde-pardo, que salpicam algumas ruas e praças, deixam adivinhar a sua presença.
Igreja de San Pedro
Inicialmente achei que devia estar na cidade errada, ou talvez ainda estivesse na Bolívia… As ruas de terra, as casas de um só piso, invariavelmente de paredes em adobe, o telhado da igreja, também ele numa espécie de adobe ou terra, o próprio “mercado” à entrada da povoação, com apenas meia dúzia de vendedores e pouco mais produtos, correspondiam mais à imagem das pequenas povoações bolivianas do que ao Chile moderno, urbano e “desenvolvido” que tinha na cabeça. Mas afinal era só uma questão de olhar um pouco além da superfície… as ruas de terra estavam imaculadamente limpas, as paredes das casas, cuidadosamente preservadas na sua tipicidade e as que eram pintadas, exibiam igual cuidado. Por detrás das portas e janelas, proliferam os negócios do turismo, numa interminável oferta de restaurantes e bares; colorido artesanato andino; repetidos programas de excursões às atracções naturais da região; abundantes “centros de comunicações”, com internet e cabinas telefónicas; lavandarias, geladarias, mercearias; e um número interminável de hospedagens. As duas ou três ruas principais, parecem uma passerelle multicultural, multinacional, multilingue, onde se cruzam pessoas de todas as idades, estilos e tamanhos.
Mas se dúvidas tivesse sobre o país em que me encontrava, bastava atentar nos preços!! dos mais elevados de toda a viagem – pelo menos do universo hispânico… Por um quarto esconso, com “banho compartido”, cobraram-me 18 000 pesos (27€) e tudo o resto seguia o mesmo padrão…
Deambulando pelas ruas de San Pedro, dei por mim a visitar a igreja, onde uma discreta folha A5 anunciava o programa das festividades locais para os dias 28 e 29 (dia de San Pedro). Estava, então, explicado o invulgar afluxo de turistas e seguramente algum excesso nos preços…
Com início a meio da tarde do dia 28, no primeiro dia de festejos a música submerge as ruas do povoado, por onde desfilam diversos grupos musicais, numa surpreendente diversidade de sons, ritmos, sonoridades, coreografias e instrumentos, terminando na igreja, num certo clímax sonoro.
Festejos de San Pedro – desfiles pelas ruas da vila
No Domingo, as ruas voltam a ser o palco da festa, percorridas por uma estranha procissão/desfile, com tanto de religioso quanto de pagão. A procissão é encabeçada por San Pedro, no seu “altar altaneiro” e encerrada por uma coreografia onde um touro, um cavalo e um par de ginetes interagem. De permeio, são vários os grupos e as coreografias alusivas a lendas ou acontecimentos marcantes da região de San Pedro de Atacama. Mais uma vez, o desfile termina na igreja, numa amálgama de cor, movimento e sonoridades.
As notícias em San Pedro não são as melhores: os passos fronteiriços com a Argentina estão encerrados. Há perspectivas de Jama poder abrir “em breve” mas Sico – o que pretendia cruzar – está fechado sine die e os dois dias que contava passar no pequeno povoado já vão em quatro…
San Pedro, para além de ser um atractivo turístico, de per si, é o epicentro de um vasto conjunto de invulgares monumentos naturais. A curta distância do povoado destacam-se o vale da lua, o vale da morte e as ruínas de Pukará. Um pouco mais afastado, fica o Salar de Atacama, um impressionante deserto de sal onde emergem lagoas de cores irreais, poiso de flamingos cor de fogo. Ainda mais afastado encontram-se os géisers de Tatio e as lagunas altiplânicas.
Vale de la muerte
Os vales da lua e da morte – este último parece dever o nome a um erro de fonética, pois consta que o padre belga Le Peige, ao avistar o local tê-lo-á designado de Valle del Marte, em linha com o vale vizinho, que designou de Valle de la Luna, mas o sotaque francófono terá levado os locais a entenderem como Valle de la Muerte – impressionam mais pelo magnífico enquadramento – com a vasta cordilheira andina, altiva na cadeia de sucessivos vulcões, cobertos pelo resplandecente manto de neve – do que pela invulgaridade das suas formas ou a dimensão. Claro que o facto de ter visitado Tupiza e as deslumbrantes formações rochosas dos arredores, mata o efeito surpresa e diminui o impacto dos vales atacameños. Ainda assim, o entardecer metálico, a dança das cores e das sombras, com a luz do sol esvaindo-se pelos vales, ao mesmo tempo que incendeia os cumes da cordilheira nevada, transporta-nos para além da esfera terrestre.
Três virgens
Vale de la luna
Não vou permanecer indefinidamente em Atacama, até porque o pequeno povoado, as suas ruas, o museu, o artesanato, as portas e pátios, já não me surpreendem nem escondem grandes segredos. De bicicleta, dou uma última volta pelas ruas em silêncio e vou até ao posto fronteiriço. O Paso Jama está aberto ao tráfego pesado mas não se perspectiva a abertura do Paso Sico. Ainda insisto sobre a evolução prevista para os próximos dias em Jama, mas o carabinero olha primeiro para mim, depois para a bicicleta e de novo para mim com ar de gozo, acena a cabeça e diz que não poderei passar de bicicleta. Viro as costas e avanço para o “plano B”, que é como quem diz: quem não tem cão, caça com gato.
De regresso à estrada, com a cordilheira andina sempre no horizonte
Ao fim de quatro ou cinco dias sem pedalar – já nem sei ao certo – soube-me bem sentir a Dempster deslizar no silêncio da planície e na vastidão do deserto; sentir que estava de novo “a caminho”; sentir-me restabelecido, forte e confortável; deixar San Pedro e dirigir o olhar ao almejado sul.
Na verdade não tinha qualquer plano para além dos próximos dois dias, do sul do Salar de Atacama. Não estudara estradas nem rotas chilenas; nada li sobre atractivos turísticos no norte do Chile – para além da zona do Salar – nem ligações fronteiriças. Alem do mais, não sei quais as fronteiras abertas e onde poderei passar, pois a maioria dos “pasos” fronteiriços só costumam abrir em Novembro. Mas o que me aborrecia mesmo era renunciar ao início da Ruta 40… por pouco tempo, já se vê, pois aborrecimentos nesta viajam é coisa que não resiste muitos minutos nem muitos quilómetros!
Cerca de duas dezenas de quilómetros após San Pedro, surge o desvio para a laguna Cejar. Não faço ideia se fica muito distante ou se vale a pena o desvio, mas uma vez que não poderei visitar as “lagunas altiplânicas”, decido visitar Cejar. O caminho é cada vez mais arenoso e o piso irregular, sem qualquer ponto de referência no inóspito deserto. Ao fim de quase uma dúzia de quilómetros surge a pequena barraca de acolhimento aos turistas e a respectiva bilheteira.
Laguna Cejar
À primeira vista achei que tinha sido um grande barrete e uma perda de tempo, mas à medida que me libertei do preconceito e deixei o olhar beber os irreais tons da água das lagoas, para depois cavalgar as translúcidas cordilheiras andinas, repousando, por fim, na estreita faixa de ervas douradas, devolvi o sorriso ao sol vigilante.
O regresso ao asfalto brindou-me com mais uma bela surpresa. Repentinamente, e sem se fazer anunciar, teve início um atroz bailado de areia que, em escassos segundo escondeu o sol, o céu e as montanhas, engolindo o silêncio e a própria faixa da estrada. Com a cabeça e os olhos o mais protegidos que consegui, “arrastei-me” até ao povoado de Toconao. As, já de si poeirentas, ruas do povoado não se distinguiam do vasto areal do deserto vizinho, não se vislumbrando vivalma e, para meu desespero, a única residencial existente estava totalmente ocupada por uma empresa. Já equacionava estender a tenda no jardim da praça de armas, ao abrigo de um qualquer conjunto de arbustos, quando um ancião que passava, vergado pela idade e pelo vento, me disse existir uma casa à entrada da povoação onde alugavam quartos. Deu-me as “coordenadas” e fui lá ter sem falhas.
Salar de Atacama
Para sul, ladeado, à distância, pela magnifica alvura da cordilheira andina, numa infindável sequência de vulcões, e pelo absolutamente inóspito Salar de Atacama – considerado o deserto mais seco do mundo – rapidamente cheguei ao desvio para a laguna Chaxa. Ao deserto sucedeu-se o salar, que é como quem diz, a areia desapareceu da paisagem mais próxima, sendo substituída por incríveis blocos de sal.
Salar de Atacama – laguna Chaxa
A visão é completamente apocalíptica, com o solo a fazer lembrar um infinito campo minado, um corpo esventrado de onde emerge uma imensa carapaça de blocos de sal, em formas irregulares e arestas agressivas, nos tons do deserto. O pequeno carreiro interpretativo, para alem explicar a origem, formação e composição do deserto, alerta para formas de vida que o povoam. Claro, as aves, com destaque para os espantosos flamingos, que se alimentam graciosamente nas águas carregadas de sal, são apenas a mais atractiva, não necessariamente a mais sublime. A concentração de minerais e a sua mistura, despoleta uma variedade irreal de cores, tonalidades e odores, num enigmático pasmo pictórico. E o voo dos flamingos, vermelhos de sangue contra o azul do céu, proporciona momentos de luxúria cromática.
Slar de Atacama – laguna Chaxa
Peine é a “última fronteira” do Salar de Atacama. É a aldeia mais a sul do salar e o último poiso antes de lançar o peito à aridez mortal dos mais de duzentos quilómetros que me separam de Baquedano, o próximo povoado. Claro que duzentos quilómetros são uma distância risível no contexto desta viagem, mas não são duzentos quilómetros quaisquer. Há que adicionar principalmente a volatilidade do clima que, garantem-me, em escassos minutos pode passar da mais prazenteira companhia ao mais tempestuoso inimigo. E durante o percurso não só não há qualquer aldeia, casa ou casebre, como não há uma rocha, uma árvore, um muro ou resguardo onde montar a tenda e fugir aos elementos. É verdade que ontem tive uma pequena amostra do que seria uma tempestade no deserto, mas evito pensar demasiado no tema, pois é claro que não saberia o que fazer se nos próximos dois dias se repetisse a “gracinha”.
Salar de Atacama – campo de exploração mineira
Salar de Atacama – estrada de terra e sal…
Tal como no mapa, a estrada que cruza o sul do salar, de Peine até ao campo da Companhia Chilena de Lítio, é uma recta infinda. O piso é uma estranha combinação de terra e sal que, dizem, é duro como cimento, quando seco, tornando-se um lamaçal resvaladiço como o gelo, quando molhado. Mas parece que esse perigo não existe por aqui, pois por estas bandas “nunca” chove. A paisagem é desoladora, aterradora, completamente estéril e indiferenciada. De um e outro lado da estrada erguem-se os pequenos blocos de sal, como o campo minado, esventrado, rasgado por sulcos profundos que delimitam estropiados pedaços de sal da cor do pó do deserto. Muito ao longe ergue-se a cordilheira Domeyko e para trás vai-se perdendo a cordilheira andina. Uma vez por outra passa um carro em grande velocidade – normalmente são pick-up’s de empresas mineiras, os únicos que se aventuram por estas bandas.
A Companhia Chilena de Lítio parece estar a construir uma montanha no deserto. Uma, não, várias montanhas de sal, que crescem no deserto plano, rivalizando com os montes distantes.
Findo o salar, volta o deserto. Há que transpor a cordilheira Domeyko, não excessivamente elevada, para depois iniciar a longa travessia do deserto. Mas se a subida da cordilheira não é demasiado longa nem inclinada, rapidamente sou descoberto pelo inimigo mais temível: o vento, que desce velozmente pelas sucessivas gargantas por onde a estrada se contorce, em constantes curvas e contra-curvas. Tenho de desistir de pedalar e contentar-me em conseguir empurrar a Dempster contra o vento e a subida. Felizmente não serão mais de dois ou três quilómetros, ao longo dos quais vou sendo olhado com espanto e invariavelmente cumprimentado pelos inúmeros camionistas que circulam pela estrada. São dezenas e dezenas de grandes camiões num constante vai-e-vem, transportando a riqueza mineral do deserto para os portos distantes.
Transposta a Domeyko, sinto-me esmagar pela vastidão do interminável horizonte, numa linha irregular de colinas que despontam num mar infinito de areia, sombra, frio e vento. Durante a dúzia de quilómetros seguintes, o forte vento contra é mitigado pelo declive, ainda que suave, da estrada. Mas finda descida, comecei a sentir todo o peso do vento, fortemente ampliado pela desoladora paisagem e pela infrutífera busca de um recanto, uma vala, um morro onde pudesse acampar, resguardar-me e rebuscar energia física e mental.
Pedalava a 10 kms/h, no limite do esforço; teria ainda umas três horas de luz; algo haveria de surgir nos próximos trinta quilómetros. Era esse o jogo psicológico para empurrar as pernas e iludir o desânimo. Algures, entre o quilómetro 115 e 110 da estrada, vislumbram-se umas longínquas instalações mineiras. Sei que nem vale a pena tentar chegar lá, mas desvio-me pelo trilho que me parece mais consistente, contorno uma pequena elevação de areia e consigo erguer a tenda, que parece poder resistir ao vento. Não tenho vontade de comer, ou melhor, não tenho vontade de preparar o jantar. Sandes, bolachas, barras energéticas e água q.b., são um delicioso repasto. Para sobremesa, peço ao vento que me deixe tranquilo e à tenda que resista. Por hoje, parece-me que já é desejar o céu.
Depois da tempestade, a bonança?
As manhãs parecem ser mais serenas que as tardes e noites. O dia amanheceu tranquilo, solarengo e sem a mais leve brisa. E o meu estado de espírito não podia reflectir maior simbiose com a natureza. Queria pedalar depressa; queria apanhar aquela infinita descida, tão ténue que só as pernas a podem sentir, na velocidade que imprimem com um mínimo esforço; queria saborear a desolação da paisagem, seca, árida, inóspita até às entranhas, absolutamente monótona; queria olhar o vazio e reter o infinito; queria soprar o vento e vê-lo fugir aterrorizado; queria imaginar um mundo só meu, naquele pedaço de ausência. E com as loucuras á solta, cavalgando as dunas de curvas tão suaves que ameaçam nem existir, eu próprio me perdi de mim e só me reencontrei uns trinta quilómetros antes de Baquedano, quando um grande complexo mineiro saltou à estrada com as suas regras, sinais de trânsito, horríveis edifícios e a agitação habitual de quem vê o mundo traduzido em cifrões.
Baquedano é um horrível entreposto, devotado à actividade transportadora: restaurantes, mercearias, hospedagem, bomba de gasolina e … casebres a cair, de velhos, de feios, de lixo. O que mais impressiona é o contraste dos resplandecentes camiões, carros e pick-up’s – últimos modelos das maiores marcas mundiais – que enchem os parques e a beira da estrada, com as decadentes casas e ruas da povoação. Na verdade é o espelho do Chile, onde o ouro e a lata, o esplendor e a decadência, não andam de “mãos dadas”, antes se olham à distância, num acentuado, por vezes chocante, contraste.
Como é sobejamente conhecido, o Chile é uma estreita e longuíssima faixa de território, delimitada pelo pacífico e pela cordilheira dos Andes. Com excepção do norte do país, a linha fronteira entre o Chile e a Argentina coincide – sem ser coincidência, claro está – exactamente com o cume da cordilheira andina: se a água correr para o Pacífico, é território chileno, se correr para o Atlântico, é território argentino. Ao olhar o mapa, a ruta 5 sobressai como uma linha contínua que se prolonga desde a fronteira com o Peru até ao extremo sul da longínqua ilha de Chiloe.
Gorada a possibilidade rumar ao estremo sul do continente ao longo do território argentino, cruzar o propagado lindíssimo paso Jama e calcorrear a mítica ruta 40 de fio a pavio, terei a ruta 5 por companhia. Apesar de acalentar a esperança de poder cruzar a fronteira “em breve”, o mais provável é ter de me manter do lado ocidental dos Andes por muitos dias e milhares de quilómetros.
Sobre a paisagem ao longo dos 1000 quilómetros, desde Baquedano a la Serena, pouco há a dizer. É o deserto de Atacama, o deserto mais seco do mundo; é areia em 360º do campo de visão; são minas e mais minas indicadas pela sinalética da berma da estrada. Sem grandes serras ou montanhas à vista, não se pode dizer que seja uma planície, embora os desníveis sejam muito ténues, com diversas subidas e descidas de vinte e mais quilómetros; são rectas intermináveis, que fatigam o olhar. Não há povoados dispersos, apenas cidades que distam uma ou mais centenas de quilómetros entre si.
Ruta 5… adeus trópicos
Pedalar pela ruta 5 é um exercício verdadeiramente solitário, um desafio mais mental do que físico, tanto mais que se está sempre sob a ameaça de uma brusca fúria meteorológica e, depois da experiência da travessia do Salar de Atacama, não consigo arredar completamente do espírito o receio de uma tempestade de areia ou um “simples” vendaval.
Mas ao longo desta primeira etapa ciclística pela ruta 5, há sempre alguma estória para não esquecer e mais tarde recordar…
Da incaracterística e feia Antofagasta, cidade portuária por onde se esvai muito do minério da região, recordo que só para aí à sexta tentativa consegui levantar dinheiro num multibanco… já desesperava. E recordo também o longo e simpático passeio marítimo, um extenso espaço ajardinado e com diversas infra-estruturas desportivas, onde dezenas ou centenas de pessoas de todas as idades praticavam desporto… Interrogo-me sempre porque raio não temos algo semelhante de Lisboa ao Guincho, ou de Lisboa a Vila Franca… ou de Vila Franca ao Guincho – isto para falar só da zona onde vivo, claro está!
Taltal dista mais de 230 quilómetros de Antofagasta, o que implica acampar no coração do Deserto de Atacama. Algures, num local designado no mapa como Varilhas, a ruta 5 prossegue o seu interminável percurso, surgindo um desvio à direita indicando Taltal, pela ruta B710. É por aí o meu rumo, ciente que doravante nem a companhia dos camiões terei, pois esta é uma estrada muito pouco transitada. Talvez uma dezena de quilómetros depois do desvio, há como que uma pequena área de descanso, que mais não é que um terreiro alisado na berma da estrada. Estava parado um carro e uma senhora e um jovem pareciam lanchar. Juntei-me a eles no meu frugal almoço e a Maria Eugénia, talvez quase sexagenária, ofereceu-me gentilmente uma fanta e, na sequência da conversa, disse que era português. O jovem, para aí de uns trinta e cinco anos, olho-a de um modo tão intenso e alegre que cheguei mesmo a pensar se também seriam portugueses. E quase! A Maria Eugénia, chilena de Antofagasta, assessora de comunicação da “fiscalia” – a administração fiscal chilena – conhece a Europa de fio a pavio e Portugal de ponta a ponta. Adora Lisboa, “uma das mais bonitas cidades europeias – e olhe que conheço quase todas as cidades importantes da Europa”. Tem amigos na cidade e arredores – Mafra, Cascais, etc. – e está ligada a um projecto de livro e respectiva adaptação para televisão, na Argentina se não estou em erro, mas o nome já me “passou” – é verdade, esta parte está, lamentavelmente, um bocado imprecisa, mas estou a escrever estas memórias uns meses depois, depois da enorme e irremediável perda do meu “livrinho vermelho”, onde ia anotando alguns pormenores quotidianos.
Despedimo-nos com fraternidade e a promessa de que em Outubro de 2012, quando a Maria Eugénia voltar a Lisboa, tomaremos um café…
Ruta B710…
Pedalei uns bons trinta quilómetros sempre a subir, numa daquelas subidas suaves mas intermináveis, mesmo ao meu gosto. O dia ia-se esgotando e as sombras do deserto caíam de manso sobre a estrada e o vasto vale, subindo lentamente pelas encostas das colinas. O vento não era forte mas estava vivaço e preocupava-me a resistência da tenda maltratada e como fixar as estacas na areia do deserto. Buscava algo diferente; talvez uma pequena colina, uma vala, um buraco onde pudesse resguardar-me um pouco do vento. Numa qualquer curva pareceu-me haver um pequeno desnível na areia, a não mais de uma vintena de metros da estrada. Mas mais importante: havia uma série de pedras de média dimensão nas imediações! Eram algo com que nem me tinha atrevido sonhar, pois serviriam perfeitamente para prender a tenda – recolheria tantas quantas as necessárias, colocá-las-ia nos bordos da cobertura da tenda que, seguramente, iria resistir a vento “normal”.
Alvorada na ruta B710
Quando me dei por satisfeito com a segurança da tenda – até porque o vento tinha amainado – escurecera e, sob a colina próxima, do céu escorria sangue sobre o cume em fogo. Fiquei ali a ver a negridão da noite escura acentuar-se e sorver o sangue do sol poente… quando me estendi no interior da tenda, sob a fina película de nylon, senti uma parte de mim elevar-se acima do cume mais alto das redondezas numa risível tentativa de captar o infinito: o silêncio infinito que brotava de cada poro de areia; a solidão infinita, única habitante que ousa desafiar o “nada” e cavalgar incessantemente o deserto; as estrelas do infinito universo, que piscavam os olhos de espanto. Nunca o “nada” e o “tudo” estiveram tão perto de mim como no deserto – em todos os desertos onde acampei; nunca o vazio e a plenitude tiveram maior expressão; nunca a vida e a morte se apresentaram tão perfeitas. Nada como o deserto, nada.
Tal com a Maria Eugénia me tinha dito, depois de transpor a longa subida, lá para as bandas do cerro Paranal e do European Southern Observatory, é sempre a descer até Paposo, uma pequena aldeia de pescadores junto ao mar. Não fora o terrível vendaval que, num repente, se ergueu dos quatro pontos cardeais, com rajadas absolutamente loucas, com areia, plásticos, embalagens de metal e plástico, plantas, numa dança possessa, e teria gozado uma das descidas mais alucinantes de que tenho memórias; assim vivi um período de incalculável adrenalina, a raiar o medo… à medida que estrada se ia enfiando por um, cada vez mais estreito, canyon a aleatoriedade e intensidade iam diminuindo. Mas, extraordinária natureza, de repente, em não mais de cem metros, senti-me entrar literalmente numa câmara frigorífica. A temperatura baixou instantaneamente e senti-me enregelar – o pacífico, gelado e difuso na neblina cerrada, surgia umas curvas adiante e umas dezenas de metros abaixo. E, com ele, Paposo, a minúscula aldeia de pescadores.
Em Paposo, parei na primeira casa que vi com ar de “tienda”. Mais do que comida, queria fugir ao frio gélido da rua. Enquanto ingeria lentamente as “galhetas” e o sumo acabado de comprar, reparei no papel espetado na parede anunciando a venda de pescados, mexillones e outras espécies que desconheço. Perguntei, um bocado ao acaso, se não serviam comida feita por ali na aldeia – pescado ou marisco… A miúda regressou com a resposta daí a uns segundos, seguida do pai e da mãe: “ainda era muito cedo – umas 11h30, de facto – e estavam a preparar o almoço. Mas se quisesse esperar meia hora, serviam-me almoço”.
Taltal não estava longe, aquela família parecia mesmo simpática e lá fora continuava um frio pouco pacífico. Esperei na sala cálida, frente á cozinha onde o pai preparava uma irresistível sopa, ou caldeirada, ou o que seja, de mariscos vários, e depois ainda me apresentou um prato enorme cheio de mar – sim, aquele peixe, de tão alvo, tão fresco, tão suave, parecia condensar nele toda a pureza do gelado pacífico.
Depois de tão aprazível almoço, até parece que o frio se foi e o nevoeiro se recolheu, regressando à estrada com a leveza do prazer pelos momentos vividos naquela terra de ninguém.
Ruta 5, de Paposo a Taltal
A estrada contorna de perto a linha de costa, ora rochosa, ora arenosa, ora suave, ora abrupta, sempre difusa no denso nevoeiro. Minúsculos barcos com um, no máximo dois, pescadores, bamboleiam-se no suave oscilar das ondas. Algumas colónias do que julgo serem corvos marinhos, pelicanos cinzentos e gaivotas, preguiçam nas rochas esbranquiçadas de caca. Numa colorida capela à beira mar, um trio de abutres com ar severo, parece velar as almas abraçadas pelo mar.
Ruta 5, de Paposo a Taltal
Taltal surge defronte ao mar, refugiada no extremo da Baía de Nossa Senhora, num surpreendente colorido de pequenas casas de madeira, em contraste com o chumbo do mar ao entardecer e das douradas encostas arenosas, que lhe aparam as costas. Em Taltal respira-se o mar, no pequeno porto de pesca artesanal, colorido por duas dúzias de vistosos pequenos barcos; no mercado de pescado, onde pequenas caixas ostentam o brilho e odor frescos do mar; nos poucos restaurantes que anunciam variedade de nomes familiares de pescado; na pequena doca onde homens de impermeáveis coloridos, martelam, lixam e pintam barcaças pouco maiores que eles; no pequeno passeio fronteiriço ao mar e nos pontões que se debruçam mar adentro, aproximando-se mais do sol longínquo, dos barcos adormecidos, das focas que, de quando em vez, mostram as barbas acima da linha de água, dos patos, corvos, gaivotas e outros familiares que mergulham como mísseis na água escura da noite, saindo uns metros adiantes, uns frustrados outros engolindo o prémio da caçada.
Taltal, aldeia tradicional de pesca artesanal
Do céu espreitam nuvens ameaçadoras. Para Chañaral há que regressar à ruta 5, ao fim de uma quinzena de quilómetros de suave subida. A meio da subida, a ameaça concretiza-se e começa mesmo a chover com força. Nem por encomenda, do outro lado da estrada há um pequeno santuário com uma cobertura em plástico. Decido esperar e ver no que dá a chuva, que abranda daí a poucos minutos. Quase no fim da subida, poucos quilómetros antes de chegar à ruta 5, assisto a mais um estranho fenómeno desta natureza indómita. Á minha frente e direita o céu começa mesmo a limpar, mostrando clareiras de intenso azul; à minha esquerda uma enorme massa de nuvens, ou densa neblina – não sei diferenciar – cavalga velozmente encosta abaixo, em direcção à estrada. Penso que se conseguir passar antes “dela”, me safarei, e pedalo desalmadamente. Mas é impossível fugir à natureza, e rapidamente desaparece tudo ao meu redor: o céu azul, a estrada negra, as placas de sinalização da estrada, a areia do deserto. Parece-me que até as rodas da bicicleta desaparecem da minha vista, tão denso é o nevoeiro, quase chuva. Chego à ruta 5 e os carros e camiões passam devagar, com luzes e piscas ligados. As bermas ou não existem ou são autênticas crateras esburacadas e tenho de pedalar no limite do asfalto, tanto quanto possível sobre a linha branca. Pedalo em enorme tensão, com o ouvido à escuta, tentando diferenciar o sentido do ruído dos motores, para me lançar no último minuto para a berma. O resultado foi um furo na roda da frente. Gelado, molhado, tenso, foi preciso apelar à maior racionalidade, resistência e sentido de humor, para encarar a situação e fazer o que tinha de ser feito: mudar a câmara…
Muitos quilómetros volvidos, algumas tangentes, buzinadelas e condenatórios acenos de cabeça, o nevoeiro começou a abrir e pude respirar alguma tranquilidade. Este seria mais um dia difícil, dominado pela incerteza. No mapa havia um ponto assinalado como “las bombas”. Deveria distar uns noventa quilómetros de Taltal e era a minha única esperança de poder pernoitar num local abrigado. No fim de uma suave descida, senti a alegria de avistar Las Bombas. Era uma única casa, nada mais, mas servia refeições e dispunha de meia dúzia de exíguos quartos, enfileirados ao lado do restaurante – tudo o que mais desejava naquele momento estava ali, à minha disposição. Pouco interessava se não havia água quente nem duche, pouco interessava se o colchão parecia meia-lua… havia uma cama e um óptimo jantar quentinho.
Para Chañaral parecia existirem dois caminhos alternativos: prosseguir pela ruta 5, num percurso mais longo e monótono; ou tomar a estrada que vai directa ao parque nacional Pan de Azúcar. Se já estava inclinado em seguir esta via, a conversa da dona da hosteria las bombas, reforçou a opção.
A caminho de Pan de Azúcar, antes da lama tomar conta do caminho
Nem um quilómetro após las bombas, surge, à direita, o desvio para Pan de Azúcar. A estrada é da tal mistura de terra e sal, a mesmo combinação que já conhecia do Salar de Atacama, dura como cimento, quando seca, e mole como puré, quando molhada. Claro que nem me lembrei desse pormenor quando virei costas ao asfalto e me embrenhei pelo vale ondulado, de sombras e cores esbatidas do deserto. Pedalei com prazer e leveza durante dez quilómetros. Nem mais! Em menos de 100 metros as rodas da bicicleta afundaram-se completamente; a lama, finíssima como farinha e pastosa como cola, agarrou-se às rodas, que deixaram de ser de borracha para serem apenas uma massa disforme de terra. Nem mais um passo, nem mais uma pedalada, nem mais um centímetro. Desmontei e senti aquela massa deslizar-me debaixo dos pés, numa desagradável sensação de desequilíbrio. Com enorme esforço consegui inverter a marcha mas as rodas não rodavam, não conseguia mover-me naquele atoleiro, pareciam areias movediças… pus as mãos ao barro,procurando limpar um pouco as rodas, os guarda-lamas e abrir os travões. Consegui mover-me dois ou três metros e repeti a operação. Exausto e cada vez a deslocar-me menos, não me restou alternativa a retirar alforges, desmontar o atrelado e deslocar uma coisa de cada vez, até sair do atoleiro.
Todo sujo, com tudo completamente enlameado, com a corrente, desviador, pedaleiras numa pasta de lama, não podia sequer tentar pedalar… restava-me percorrer os dez quilómetros de regresso caminhando. Entretanto chego a uma pequena curva e deparo-me com uma pick-up acabadinha de capotar. Ainda o casal e os dois filhos gatinhavam do interior para a lama, quando cheguei junto deles. Claro que perdeu a tracção e foi por ali fora… felizmente vinha devagar, diz. Os miúdos pareciam desorientados com o susto. Prometi-lhes que mal chegasse a las bombas avisaria o dono, a ver se conseguiam enviar ajuda para a carrinha, pois os quatro estavam apenas assustados…
Já transpirava abundantemente, caminhando apressado ao lado da Dempster, quando me lembrei de utilizar os 2,5 litros de água para limpar a transmissão e tentar regressar pedalando – é que a saúde da Dempster preocupa-me tanto ou mais que a minha e não podia arriscar pôr-me a pedalar assim, danificando a transmissão… pareceu-me que a operação foi minimamente bem sucedida e lá regressei de bicicleta a las bombas, perante o ar espantado dos donos.
Explicada a insólita situação e dado conta do acidentado, passei uma boa hora a lavar a Dempster e a tralha toda. Em consequência, era quase noite quando cheguei a Chañaral…
Estrada para Chañaral
Da feia Chañaral apenas retenho o simpático pequeno-almoço no hostal playa mar. Não por alguma singularidade do manjar, mas porque uma dúzia de dias e oitocentos quilómetros mais tarde, numa rua de la laguna, nas imediações de Valparaíso, um homem sorridente e espantado se me dirige e cumprimenta efusivamente, oferece-me a casa para pernoitar, um chá e muita simpatia: era o Joaquim, em cuja companhia, da mulher e neta, tinha tomado o pequeno-almoço no playa mar.
Abrigo de pescadores
Até Caldera, a ruta 5 segue o litoral, solitário e selvagem. Espantosamente, no frio, nevoeiro e solidão do inverno, há algumas tendas de campismo erguidas no meio dos pedregulhos, à ilharga da linha de água. Percebo que funcionam como abrigo para pescadores que, empoleirados nas rochas, ou esgaravatando na areia e na água, pescam. De quando em vez surgem pequenos aldeamentos junto ao mar, compostos pelo que parecem ser modestas casas de praia, agora despidas de vida na tristonha manhã do inverno. Poucos quilómetros antes da cidade, anuncia-se um estranho “zoológico de pedras”. Rochas invulgares, corroídas pelas forças da natureza, e à mistura com alguma imaginação, permitem ver elefantes, ovelhas, camelos e tudo o mais que se queira. Independentemente da zoologia, a geologia merece uma pausa.
A caminho de Caldera
Zoológico de piedra, junto a Caldera
Olá Caldeira. Adeus Caldeira. Olá Copiapó. Adeus Copiapó. Olá posada los pajaritos – restaurante e não pousada com alojamento, como deduzi do nome – que estranho zoológico este, no meio do deserto. Aqui me quedo uma noite, acampado debaixo de uma árvore, dormitório e casa de banho de muitos pajaritos… Olá Vallenar. Adeus Vallenar. Olá Incahuasi – restaurante à beira da estrada, cujo dono tocava divinamente viola, creio que apaixonado pela jovem mulher que servia ao balcão com um sorriso enorme e um brilho contagiante no olhar. Adeus Incahuasi. Olá la Serena. Façamos aqui uma pausa para contar um pouco do estado do tempo, do vale del Elqui, da Gabriela Mistral, de pisco…
La Serena pareceu-me ser um pouco uma linha fronteira entre o deserto de Atacama, já esbatido, é certo, na paisagem dos últimos dias, e o centro agrícola. Mas também as pessoas me pareceram diferentes, mais abertas, mais comunicativas, mais amistosas, mais viradas para a vida e menos para a “plata”… dá-me ideia que a secura e aridez do rico norte mineiro, contagiou um pouco as próprias pessoas que lá vivem e trabalham, muitas delas migrantes do centro e sul, em busca de “plata”.
No hostal Alameda chovia em diversos quartos, no corredor, no pátio coberto. No restaurante onde jantei, havia baldes espalhados pela sala a apararem a água que caía continuamente do tecto. As ruas pareciam pequenos riachos. A explicação parece simples: “nunca chove por cá e quando chove, são uns pingos ralos. Os edifícios não foram construídos para este clima. Há umas semanas, num só dia choveu mais que em todo o ano passado…”
Saindo das duas ou três ruas principais, onde se sucedem vistosas lojas repletas de publicidade, num forte apelo ao consumo, a cidade é muito tranquila, de edifícios pequenos e vida de aldeia. Mas com excepção do museu arqueológico, com uma razoável colecção de artefactos dieguitas, múmias e acima de tudo, uma estátua Rapa Nui, vinda da Ilha de Páscoa, e do museu histórico Gabriel Videla, não há muito mais a visitar. Claro, há o mercado la recova, onde apreciar artesanato, comer num dos diversos restaurantes, comprar umas empanadas ou bolos num dos quiosques do rés-do-chão.
Como a Dempster se andava a queixar das cruzes, decidi levá-la ao ortopedista Cerro Grande Bike Shop. Combinei uma revisão geral, limpeza e atenção especial à transmissão e eixo pedaleiro, de onde me parecia surgir um leve ruído. Acontece que era meio-dia de sábado e só me entregavam a menina na segunda-feira às treze horas. Assim se gorava a minha intenção de ir de autocarro até Pisco Elqui e regressar de bicicleta, percorrendo tranquilamente o Valle del Elqui. A alternativa era fazer uma das coisas que detesto e de que saí com o sentimento reforçado: ir numa pequena excursão com uma dúzia de turistas, ouvindo um papagaio papaguear, sem alma nem flexibilidade, a cartilha que lhe disseram para decorar. Quando lhe pedi para parar, pois queria tirar uma foto, respondeu amavelmente que parávamos “um pouquito mais adiante”, o que significou uns bons três ou quatro quilómetros. Percebi porquê… era ali o miradouro oficial, onde se parava para o retrato. Claro que não valia a pena explicar-lhe que aquela não era a vista nem a paisagem que mais me interessavam… em Roma sê romano…
Mas apesar da minha má vontade e mau feitio, reconheço que o Valle del Elqui tem um encanto especial, é de uma invulgaridade e diversidade surpreendentes.
Valle del Elqui
O Valle del Elqui começa por ser um vale indistinto, verdejante, composto por uma larga faixa de terra plana abrigada entre duas cordilheiras. Abundam as plantações de árvores, legumes e vegetais, em ordenadas e modernas explorações. Mas à medida que avançamos, o vale vai estreitando e as vinhas ocupam praticamente todo o solo, subindo pelas encostas. Curioso é o efeito das extensas telas e redes que se erguem, enfileiradas, acima das próprias cepas. Parecem estufas gigantes, embora abertas. Explica o guia que são para cortar o vento e ajuda a preservar a humidade do solo. Para trás vai ficando a planície e a estrada começa a subir progressivamente. Agora todo o horizonte se encontra fechado pela cordilheira árida e nevada. Para um latino ignorante, é uma visão contra-natura, as vinhas paredes-meias com a neve, mas parece que as uvas aqui produzidas têm elevada qualidade. Não por acaso, é exactamente nesta região que se produz o famoso pisco – que “não é mais” que aguardente de vinho.
Antes de chegar a Monte Grande, pequena aldeia onde viveu e leccionou Gabriela Mistral, ainda me surpreendi com as plantações de abacate. Impressionante a vasta mancha verde que emerge das íngremes encostas, completamente áridas e, diria, estéreis. Mas parece que um pouco de água e os mistérios da natureza fazem milagres, sendo esta uma das regiões de maior produção de abacate no Chile.
Gabriela Mistral
Monte Grande é mesmo uma pequena aldeia afundada na montanha. Daqui só podia sair poesia rústica, poesia das entranhas da terra, poesia simples e ao mesmo tempo com a força universal das leis da natureza. O museu escola Gabriela é simples e altivo; básico e essencial. Lá fora, a sua estátua mira o vale e a montanha. Parece ver para alem do tangível…
Mais acima fica a aldeia Pisco Elqui. Curiosamente o nome é recente – tem poucas décadas – e deveu-se a uma estratégia económica e comercial: criaram uma região demarcada e, à semelhança do “douro”, de “champagne” e outras, pretende que apenas o “pisco” produzido em Pisco, possa ser comercializado com esta designação… por enquanto não passa de uma pretensão, pois o Peru produz e comercializa o Pisco.
Energia solar ao serviço da culinária
Destilaria ABA
Uma visita à destilaria ABA, um almoço “típico”, cozinhado a energia solar, e uma volta por Vicuña, completam o programa, mais cedo que o costume, pois o Chile joga mais logo para a Copa América e os chilenos parecem acreditar que serão campeões…
Vicuña, a maior povoação do Valle del Elqui
De la Serena a Valparaíso, haveria umas estorietas para narrar, os fabulosos pitéus de peixe a enaltecer, a exotérica residencial “punta de chungos”, em los Villos – um autêntico museu de história natural – a avenida costeira, de la Laguna a Vale Paraíso, mas o avião não tarda a aterrar em Londres…
Ficam algumas fotos e a memória inolvidável do dia 19 de Julho, um ano após a partida de Lisboa…
A tenda esticada ao abrigo do restaurante Maria Garcia, para não voar em busca do Aladino, a dois metros da estrada/estacionamento, os camiões rugiram toda a noite, fazendo estremecer o chão e dando a sensação que, desta vez, me transformariam numa folha de papel. Dentro da tenda flutuam as vozes dos meus amigos que, a um oceano e um continente de distância, festejavam – com uma feijoada a preceito – a minha partida. Escasseiam as palavras, sobra o afecto.
Los Villos, aldeia piscatoria
Los Villos, a incrível residencial punta de chungos
Concón, abundam despretensiosos restaurantes de peixe e marisco ao longo da marginal, demasiado urbanizada, com complexos turísticos empoleirados pela escarpada encosta
Renacar
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