terça-feira, 22 de março de 2011

Colombia III - De Bogotá à fronteira (Ipiales)

Colombia - de Bogotá a Ipiales, na fronteira com o Equador

Praticamente desde Zipaquirá, onde visitei a catedral do sal, que se sente a periferia urbana de Bogotá. E se a chuva já tinha sido companhia não convidada durante a manhã, desatou a cair copiosamente à medida que me aproximava da cidade. As bermas da estrada ou pura e simplesmente deixaram de existir, ou se encontravam totalmente submersas pela água, que se acumulava e cobria parte da faixa de rodagem da direita. O trânsito era agora mais intenso e diverso, com inúmeros autocarros urbanos a juntarem-se aos camiões e carros ligeiros.
Com a humidade, o conta-quilómetros deixou de funcionar e perdi qualquer tipo de referência da distância percorrida, mas foram muitos os quilómetros galgados até surgirem as primeiras indicações: “calle 174” foi a primeira em que reparei… ora, o centro histórico, onde me dirigia, seria por volta da calle 10… e a distância entre cada calle, era enorme. Entretanto já circulava na ciclovia paralela à carretera 46. Era mais seguro do que rolar na faixa de rodagem, mas demasiado desnivelada quando cruzava as diversas calles. A chuva caía com violência e, por vezes, era difícil ver sequer o caminho. Não evitei um tralho contra um dos inúmeros pinocos que separavam a ciclovia ao meio. Felizmente ia devagar e não teve consequências... Muitos kms depois, cruzei umas passagens superiores, consegui apanhar a carrera 14 – avenida Caracas –, respirar de alívio e orientar-me para o centro histórico.


Bogotá, Plaza Bolívar

Não conheci suficientemente Bogotá para ter uma opinião relevante. No tempo que passei na cidade, quase não saí do centro histórico e dos quarteirões circundantes da praça Bolívar. Essa é a Bogotá antiga, de igrejas, museus, palácios e os edifícios político-administrativos. Mas é também a Bogotá de ruas estreitas e inclinadas, de pequenas casa coloniais, mercearias, cafés e tascas, assemelhando-se mais a uma qualquer aldeia do que à cidade de oito milhões e meio de habitantes. Não falta a carroça puxada por um cavalo estafado, a trotar no meio do trânsito, nem mesmo um burro de cangalhas no dorso, subindo, ao entardecer, a íngreme calle 9.


Bogotá
Se ao Domingo são encerradas ao trânsito várias artérias da cidade, trazendo para a rua milhares de pessoas em bicicleta, patins e skate, a correr, caminhar, ou passear o cão, num colorido, animação e alegria difíceis de imaginar, à sexta-feira, encerram a “carrera 7” a partir das seis da tarde, e a avenida inunda-se de gente para o “septimazo”. Pequenas bandas de música, palhaços, malabaristas, declamadores, barracas de jogo, vendedores de gelados, de comidas e bebidas, bugigangas e um não acabar de iguarias, enchem de cor, aromas e movimento, toda a avenida, numa animação que dura até à meia-noite.
Também não falta a Bogotá um pequeno “bairro alto”, na Plazoleta del Chorro de Quevedo, de ruas estreitíssimas, povoadas de bares, ateliers, artesanato e milhares de jovens (e menos jovens), numa cativante diversidade de sons e cores, que perduram até altas horas da noite.

Bogotá, sem playstation...

Mas claro que em Bogotá sobram ruas de miséria, sombrias, sujas, com pedintes e indigentes em enorme número, dormindo na calle, soleiras das portas, jardins. São homens e mulheres andrajosos, completamente abandonados, por vezes com deficiências e feridas horrendas… Os seus olhos amarelados, são duas velas extintas, sem luz nem calor.


Bogotá, museu Botero

Bogotá, dilúvio visto do museu Botero

Pelo que ouvi e vi nos dois dias que passei em Bogotá, concluí que a chuva cai predominantemente durante a tarde. Apesar dos meus cinco colegas de quarto se terem deitado por volta das três da manhã e dormirem a sono solo, às seis horas levantei-me e arrumei a tralha devagar, procurando fazer o mínimo barulho. Mas o quarto é absolutamente exíguo, ampliando os pequenos ruídos.
Antes das sete horas estava pronto para pedalar, pois como a cozinha só abria às oito, tive de abdicar do leite e fruta que guardava no frigorífico para o pequeno-almoço.
O céu estava bastante cinzento e as ruas húmidas. O trânsito começava a despertar para o sábado e, na calle 14, o maior movimento era do “transmilenio”, a linha de autocarros que funciona como metro de superfície. A esta hora vespertina, são mais visíveis as “misérias” da cidade…os sem-abrigo, sujos, andrajosos, tisnados e secos, dormitam nos passeios sujos. Uma mulher com ar menos miserável, de cócoras, lava roupa no passeio, retirando água de um buraco, com um copo de plástico. Os “recicladores” buscam nos montes de lixo, tudo o que possa ser vendável, com as latas no topo das preferências. Num monte particularmente grande, vários homens separam tudo: bocados de madeira para um lado, metais para outro, papel para outro e plásticos ainda para outro.
Sem chuva e com o reduzido tráfego matinal, percebe-se melhor quão extensa é a cidade, a enorme heterogeneidade urbana e social, desde o centro histórico, antigo e monumental, à zona comercial e financeira, de prédios altos, modernos mas pouco atraentes, e aos subúrbios, de prédios mais baixos, quadrados, descoloridos, tantas vezes com ar inacabado.
Apesar da enorme dimensão da cidade, é muito simples a orientação e seguro circular de bicicleta, seja pela grande quantidade de pessoas que a utilizam como meio de transporte, seja pelas várias ciclovias que ladeiam as principais artérias de acesso à cidade, muito utilizadas para lazer mas muito mais para se deslocarem.
Mas nem Bogotá é perfeita, e a clareza da orientação para deixar a cidade, de repente foi perturbada por uma estranha placa de sinalização indicando Lisboa! Ainda me senti tentado a virar à direita e seguir a seta, mas recordei-me que o meu lema é: “em caso de dúvida, virar à esquerda”, não à direita!

Em Bogotá, Lisboa é em frente, claro...

Até ao Alto del Vino, rolei na companhia do Luís Palácios, um dos inúmeros ciclistas que enchiam de cor a estrada plana, apenas interrompida pelos cerca de meia dúzia de quilómetros de subida para o dito. O pequeno café situado no topo, estava repleto de ciclistas descansando e refrescando-se. Aproveitei para o terceiro reforço do pequeno-almoço…

Alto del Vino

Tal como o Luís tinha dito, a descida iniciada no Alto del Vino era interminável. Foram mais de vinte quilómetros deslizando, por vezes velozmente e com a adrenalina a romper a pele, outras vezes com a contenção que as curvas acentuadas, ou os camiões lentos, obrigavam. A paisagem mudava drasticamente, à medida que a estrada ia mergulhando no vale profundo de densa vegetação verdejante. Ao longo da estrada iam-se sucedendo os restaurantes, invariavelmente anunciando parrillada, algumas estufas de flores e plantas, exuberantes nas cores e nas formas, dezenas de bancas vendendo frutas coloridas.
Em sentido contrário, continuava o enorme afluxo de ciclistas de todas as idades e pesos. De repente um chamou-me a atenção e, praticamente em simultâneo, gritei pelo Camilo Fandino e ele por mim. Subia velozmente, nos seus franzinos 52 quilos…
Das encostas, cada vez mais altas, jorram fios de água espumando, até se perderem em rios caudalosos, onde ganham a cor negra da água revolta, pejada de sedimentos orgânicos. Na linha do horizonte, as distantes cordilheiras elevam-se numa sequência cada vez mais alta e difusa, perfurando as nuvens, agora mais esparsas e suaves, fundindo-se no céu opaco.

De Bogotá a Vilheta

Os povoados que se erguem desordenadamente junto à estrada, destoam da beleza selvagem e harmoniosa que os acolhe. Por outro lado, as gentes que os habitam são de uma simpatia, educação, amabilidade desarmantes. Da simples vendedora de fruta, numa qualquer banca da beira da estrada, ao empregado (filho?) do restaurante onde devorei um churrasco enorme, passando pela excessiva polícia e militares, sempre presentes. Já me vou habituando, com agrado, aos afectuosos “para servilo”; “à lás ordens”; “buenos dias, senhor”; “como está, cavallero?”…
Do alto del vino a Villeta, foram quase 40 quilómetros de descida contínua, apenas interrompida aqui ou ali por subidas curtas e de declives suaves. Mas o mapa, apesar de frequentemente errado nas distâncias indicadas, parece não se enganar nas cores e (algumas) curvas de nível. E se em vez de prender os olhos ao mapa, os estender pelo sempre vasto horizonte, também não há que enganar: estou rodeado de montanhas até ao céu; e para lá chegar, há que percorrer o árduo e caloroso caminho. A juntar ao declive e aos mais de vinte quilómetros da subida, há que juntar o calor e a humidade. Sim, a jornada de hoje é de extremos. À partida de Bogotá, a mais de 2500 metros de altitude, fazia frio. Com a descida para Villeta, baixou a altitude até cerca de 500 metros, creio, e subiu a temperatura. Com a nova subida até Guaduas, que há-de ter regressado à casa dos dois mil metros, a temperatura voltou a baixar…já não sei quantas vezes encharquei e sequei a camisola hoje!
A subida para Guaduas é inesquecível, como todas as verdadeiras subidas. A estrada é um constante labirinto, com curvas e contracurvas de muitos graus. O trânsito, abundante, e essencialmente de camiões longos, lentos e ruidosos. Normalmente quando surge um, segue-se uma fila interminável, pois as ultrapassagens, apesar de acontecerem nos sítios e circunstâncias mais inimagináveis, são muito difíceis. Felizmente existe berma e as duas faixas de rodagem são largas, o que me permite rolar tranquilamente. Recordo como me surpreendi quando ocorreu um longo momento de silêncio, sem qualquer camião a subir ou descer. Só aí, no contraste do absoluto silêncio, tive consciência da brutalidade do ruído e de quão cansativo se torna...

E agora!?

Não é inédito nesta viagem, nem sequer na Colômbia, mas é surpreendente a quantidade de “lavaderos” e “montallantas” que povoam a estrada neste percurso de Villeta a Guaduas, especialmente na segunda metade do percurso. Em completo e chocante contraste com a imagem anterior, de relativo “bem-estar”, aqui as pessoas e casas são sombrias, sujas, e parece viver-se em estado de grande pobreza, para além do isolamento. Mas o negócio, a avaliar pelo que vejo, não deve correr muito mal, pois são raros os “lavaderos” onde não esteja parado um enorme camião, com uma família de três ou quatro elementos lavando e esfregando cada centímetro, incluindo os próprios pneus…Alguns levantam a cabeça quando passo e houve mesmo um homem que fez o gesto universal, do indicador a rodar na testa, simbolizando algum parafuso desapertado ou a menos, duvidando da minha sanidade mental…
O Alto Del Trigo merece uma placa sinalizadora, e avistá-la fez-me sentir bem. Afinal, era mais um desafio vencido…mas na verdade a subida ainda não estava no fim, embora faltassem poucas centenas de metros.
Para Guaduas ainda faltavam uns catorze quilómetros, presumivelmente a descer. Mas arrefecia, tinha a camisola e calções completamente encharcados de suor e, na rápida descida que se avizinhava, iria congelar. O pequeno planalto que se segue ao Alto, é uma espécie de “Canal Caveira”, mas em versão XXL. Sucedem-se os pequenos negócios, com “hotéis” de aspecto duvidoso, “montallantas”, cafés, restaurantes, bombas de gasolina e não falta mesmo um ciber-café. São cerca de dois quilómetros de negócios apontados aos camionistas. O último hotel era o “triangulo” e tinha um ar mais asseado e novo. A empregada é que parecia não entender o meu espanhol, pois foi necessário um “tradutor”, um jovem vendedor de seguros, que por ali passava, para ela perceber que eu queria um quarto para pernoitar…
A recompensa pela subida ao Alto Del Trigo não desilude. A descida é vertiginosa, com a adrenalina elevada das curvas apertadas e a frescura húmida da manhã fria e nublada. Os meus companheiros diários – os camiões de mercadorias – seguem em fila indiana, obrigando-me a deslizar mais devagar. A vantagem é que assim posso apreciar a natureza frondosa em que estou mergulhado; os pequenos pássaros amarelos que, por vezes, parecem douradas folhas de Outono desprendendo-se das árvores e ondulando na brisa; as casas de madeira e lata, quase invisíveis na vegetação; as vacas pastando, com aquele ar pachorrento e ausente que as caracteriza.

Perto de Guaduas

Uma ou duas vezes, ainda me atrevi a ultrapassar um camião mais lento, mas não gostei da experiência e troquei a adrenalina da aventura pelo gozo da manhã. Numa curva da estrada, a vegetação abria-se momentaneamente oferecendo uma panorâmica grandiosa sobre o que deduzo ser o parque nacional Los Nevados. A serrania, em tons de azul, ergue-se amplamente acima da cadeia de nuvens brancas. E no longínquo horizonte, um cerro de curvas e tons suaves parece sobrepor-se ao próprio universo, dominando os céus e a terra. Deve ser El Ruiz, nas suas neves eternas, a 5325 metros…

De Guaduas a Honda

Depois de uma subida comedida, “às portas” de Guaduas, regressa a majestosa descida até Honda. A paisagem é, mais uma vez, imponente, esmagadora, com o rio Magdalena desenhando curvas suaves no fundo do vale verdejante, logo seguido da cordilheira de los Nevados, com os seus vários cumes brancos de neve a pairarem acima das nuvens brancas e da serrania em tons de azul…apetece ficar ali parado no tempo. E fico, mas não para alem do tempo.

Pesca em Honda

É esta paisagem encantada que nos transporta até Honda, na margem esquerda do caudaloso rio Magdalena. A pequena ponte suspensa, só suporta um camião de mais de três eixos de cada vez. Paro depois do meio, para pasmar com uma dupla de pescadores mais afoitos que todos os outros. Um homem equilibra-se na ponta de uma pedra, uns metros dentro do rio, segurando a corda de uma pequena rede de pesca, que um jovem arrasta consigo rio adentro, com visível esforço. O rio é completamente opaco, da cor do barro que arrasta consigo. A espuma não deixa dúvidas sobre os remoinhos e a força da corrente. O jovem afasta-se da margem mais e mais, penetrando na zona espumosa e de repente desaparece na água. Cinco, dez segundos, não mais, e reaparece uma vintena ou trintena de metros a jusante. Nada vigorosamente para a margem. Primeiro parece não se mover uma polegada, depois aproxima-se rapidamente das pedras da margem, onde chega exausto. Entretanto o parceiro de pescaria puxa a corda em cuja extremidade surge uma pequena rede recheada de peixe. São dezenas de peixes, entre eles trutas gordas. O mergulhador junta-se-lhe e ambos esvaziam a rede para uma grande caixa e repetem a proeza. Curiosamente os demais pescadores empoleirados nas pedras, vão lançando as pequenas redes circulares, com pouco êxito. Só agora me apercebo como a ponte vibra sob os meus pés!! à passagem de cada carro…
Em Honda a estrada bifurca. Uma via vai para norte, para Medellin e a outra segue para oeste, para Manizales. Espantosamente todo o tráfego parece dirigir-se para Medellin e fico, finalmente, “sozinho” na estrada.
Sem subidas nem descidas, e sem trânsito, pedalo no silêncio colorido da vegetação. Inúmeros viveiros de “frutales”, “ornamentales” e “florales”, sucedem-se de ambos os lados da estrada. Contrariamente à beleza agressiva e exuberante das veredas e serranias da manhã, agora respiro a tranquilidade e suavidade da paisagem…sinto o descanso do guerreiro, a bonança depois da tempestade, o repouso depois do esforço – as duas faces que sempre compõem a moeda…
Mesmo sem fome, decido parar numa pequena tasca, à entrada de Mariquita. O staff é composto pela mãe e os filhos, dois rapazotes abaixo dos vinte anos e duas miúdas pouco acima dos dez. O aspecto global – das pessoas e das instalações – é de grande humildade. Mas o colorido dos frutos é o mesmo de sempre – irresistível. E a simpatia, inexcedível. Mal paro e já um dos rapazes se me dirige e cumprimenta com ar sorridente. Pergunto se há algo para comer e responde prontamente que sim: “mojarra frita ou rês assada”, diz. Desta vez opto pela mojarra, lembrando-me da pescaria ainda próxima. Enquanto a mãe prepara velozmente o meu almoço, escolho uma papaia enorme e bem alaranjada, que o rapaz me traz, instantes depois, num prato a transbordar. Com limão, estava uma delícia…


De Mariquita a Fresno

Depois de Mariquita a estrada não parará de empinar durante cerca de oitenta! quilómetros – talvez tenha uma dezena de quilómetros em “descida” ou plano, de permeio – subindo dos 500 metros acima do nível do mar aos 3860, aproximadamente. Mas para hoje, o objectivo é “simplesmente” Fresno, um ponto no mapa acima dos 2000 metros, onde há alojamento e muita simpatia colombiana.
Fresno é, visualmente, semelhante a tantas outras pequenas povoações que se localizam ao longo da estrada 50, de Bogotá a Manizales. Vista de longe, até parece atraente, na sua mancha avermelhada, em forte contraste com a infinita vastidão dos verdes campestres. Mas à medida que nos aproximamos, o vermelho dos tijolos e das telhas de canudo dos telhados, tomam a forma de um amontoado de casebres desordenados, inestéticos, sujos e inacabados. E se alargarmos o horizonte, o panorama agrava-se com o amontoado de barracas onde predomina a lata, tantas vezes ferrugenta.
Á entrada de Fresno, cerca da bomba de gasolina, duas miúdas e um miúdo, na casa dos dezoito anos, atropelam-se num alarido que me era dirigido e que não percebi. Caminhavam em sentido contrário, do outro lado da estrada e, como me afastava, gritavam cada vez mais alto. Parei quando já corriam na minha direcção…Na verdade, pareciam miúdos de 12 anos a caminho da primeira festa, sem a vigilância dos pais. Bombardearam-me com perguntas, mas o que mais me impressionou foi a espontaneidade, a naturalidade, a banalidade com que me falavam e como mandavam bocas uns aos outros e a mim próprio, como se “tivéssemos guardado gado juntos”, nos dizeres populares de aldeia. E com a mesma algazarra e alegria com que chegaram, assim foram, como se fossem as pessoas mais felizes do mundo…
Não sei quantos habitantes terá Fresno, mas talvez umas duas dezenas de milhar…sejam os que forem, ao anoitecer devem andar quase todos pelas ruas barulhentas do povoado, nos cafés, “casinos”, padarias, restaurantes, ciber-cafés, lojas disto e daquilo. De todas as idades e sexos, sós ou aos magotes, de bicicleta ou a pé, pois raramente passa um carro dentro do espaço urbano.
Depois de me despedir dos empregados e donos do restaurante onde jantei, que me trataram como se fosse um cliente habitual e amigo de sempre, procurei uma frutaria – tarefa fácil. Apreciava as mangas, que me pareciam verdes, e a proprietária da Frutiverd acercou-se com a expressão habitual: que posso servir-lhe? Lá lhe disse que queria mangas mas pareciam muito verdes e queria-as para comer de “imediato”. Pegou em diversas e seleccionou três, garantindo-me que estavam óptimas. Enquanto as pesava, chegaram dois jovens e um estende-me a mão e mete logo conversa. Tinha-me visto passar, á chegada, com a bicicleta e agora entusiasmava-se com as respostas que lhe iam dando. Concluiu rapidamente que esta era uma viagem “bastante loca” e que eu devia ser um pouco louco também! E quando confirmei a dedução dele, a excitação atingiu o auge, falando velozmente para o colega e para a (presumo) mãe, sem que tenha percebido patavina. Foi a mãe que me disse que ele queria oferecer-me as mangas e para eu escolher mais fruta, que era toda “regalada”. Ainda insisti para pagar, mas retorquiam que não e não. Só queriam tirar uma fotografia comigo! E depois das várias fotos com o telemóvel, despedimo-nos com apertos de mão, palmadas nas costas e a tocante frase, mais que confirmada pelo olhar: “cá o esperamos com mucho gusto quando vuelva”.
Não consigo perceber que gene é este, o dos colombianos, praticamente sem excepção, do mais humilde vendedor de caramelos, amendoins, ou fruta, na berma de uma estrada, no cerro de uma montanha ou no vale fechado ao mundo, ao mais “evoluído” empregado de hotel, passando pela própria polícia, que faz deles o povo mais amável, mais simpático, mais amistoso, mais educado com que me cruzei até hoje… Em cada contacto, é como se estivesse entre velhos amigos, vizinhos de sempre, com grande estima, fraternidade e espontaneidade…sei que me estou a repetir, mas é tão grande a surpresa e a intensidade que me apetece narrar cada encontro e cada diálogo…
À saída de Fresno há alguns armazéns de compra de café. Não sendo ainda a zona “cafetera” por excelência, nas encostas empinadas já abundam as plantas verde escuras, a maioria sem fruto, mas algumas com os ramos repletos das pequenas bolas verdes e, mais raras ainda, vermelhas. Também surgem cacaueiros de frutos amarelados, avermelhados ou alaranjados…na verdade é enorme a diversidade de flora que rodeiam a estrada. Identifico os abacateiros, pejados de frutos 3 vezes maiores do que os que conhecemos dos supermercados, as mangueiras, a árvore das anonas (porque têm anonas gigantes – queria comprar uma numa banca, mas a mais pequena que tinham pesava dois quilos…) e pouco mais.
Ontem passei uns minutos no site ridewithgps.com e tracei grosseiramente o percurso previsto para hoje – de Fresno a Manizales. Assustei-me apenas um bocadinho e duvidei mesmo da exactidão da informação… parece que são 90 kms, dos quais 55 a subir, atingindo os 3800 metros de altitude e aproximadamente 4800 metros de desnível acumulado. Finda a subida, serão 35 kms a descer, até Manizales…O melhor é ignorar o site e subir um km após outro.
Ao fim de 5 kms de subida contínua e muito empinada, já estava completamente encharcado e ao fim de 10 kms dei o primeiro descanso e água a mim próprio. A paisagem em redor é brutal. As nuvens, embora não “carregadas”, escondem por completo o céu. Olho para baixo e perco a precisão na profundidade do vale infinito, vislumbrando a linha fina de um rio que deve ser imponente. Subo o olhar e espanto-me com os pontos coloridos que salpicam a encosta, matizada nos mais diversos tons de verde: são casas espetadas na montanha íngreme e inacessível.


É incrível onde as pessoas constroem as casas e cultivam a montanha…

Atento um pouco mais, e parece-me o contorno de uma qualquer estrada que se estende pela encosta – deduzo que seja o caminho para Manzanares e Pensilvânia, duas aldeias afundadas no vale infindo. Levanto a mira e sinto-me minguar, até desaparecer do alcance do microscópio…Imagino um olho gigante, acima das nuvens, no meio das estrelas gigantes, olhando a terra à minha procura e, de repente, tomo consciência do poder da tecnologia que, ainda ontem, me permitiu não só traçar o percurso de hoje, como obter um gráfico colorido (e preciso!!) sobre cada subida, cada descida, cada curva e cada recta, metro a metro, se necessário… e eu que, ali, todo eu ali, não conseguia abarcar uma ínfima parte do que me rodeava, do que avistava. Mas conseguia sentir a força, a energia, o poder que emanava daquela natureza pura, agressiva, inacessível…para mim, não para os camponeses que fazem parte dela, que vivem nela, dela e com ela. Esses passam na estrada, seja de machete à cinta, de muares ou cavalos pela arreata, com passo certo e determinado, secos, tisnados, arrancar o parco sustento de cada dia.
Padua é a última povoação do mapa e o conta-quilómetros indica apenas 17 kms percorridos. Uma dúzia de homens escavam a berma da estrada a picareta. Abrem uma vala seguramente para a água. Sinto o aroma de uma padaria e faço nova pausa. Desta vez como três bolos, 600 ml de água e outros tantos de sumo de laranja. É impressionante como posso ingerir um litro ou 1,5 l de líquidos “como quem bebe um copo de água”.


“Por sendas, montes e vales”, com paisagens, subidas e descidas paralisantes

Regresso à estrada e nada muda. Bem, há pequenas mudanças…em rigor os últimos kms são foram de contínua subida. Surgiram pequenas descidas e dá-me ideia que o declive é menor… De regresso – na verdade esteve lá sempre, eu é que nem sempre terei tido olhos, ou ângulo, para ele – estão os cumes nevados do parque nacional Los Nevados. El Ruiz avista-se bem acima das nuvens e de toda a linha do horizonte.
Os quilómetros passam devagar, mas passam. Há muito que tirei o capacete, a camisola e os óculos. Faço jogos mentais, “adivinho” kms e metros, velocidade, horas e minutos, curvas da estrada.
Raramente aparece uma casa naquela montanha longe do mundo mas, quando aparece, é tão mais irreal quanto isolada. Pode aparentar uma pobreza estrema, de lata e “papel”, sombria, descolorida, desmazelada, ou exibir um colorido quintal, com uns metros quadrados de alface, outros de cebola, outros ainda de couves, outros tantos de flores, árvores e plantas de cores fortes. Até pode estar pintada de azul ou verde ou vermelho, mas tem invariavelmente as portas abertas – ou talvez nem tenha portas…

Há sempre um pouco de cor...

Vejo e sinto que me estou a aproximar. Não são só os quarenta quilómetros que o mostrador indica, são aqueles cumes pontiagudos à minha frente, o da esquerda com uma antena espetada. É estranho porque se estiver certo, e o topo da montanha for aquele, então por onde passa a estrada? O ponto mais alto da montanha tem 4023 metros de altitude e a estrada deve passar entre os 3800 e 3900. Mas de acordo com o mapa, a estrada passa à esquerda do cume, ou seja, passa lá em cima, algures no meu raio de visão, o que parece impossível na vertente íngreme, escarpada e densamente vegetada. Recuso a ideia e assumo que o mapa está errado, devendo a estrada passar à direita (na outra vertente da encosta, que não avisto) e não à esquerda do cume… Também, concluo, pouco interessa por onde passa. Certo é que o cume é “ali” e a estrada passa apenas 100 ou 200 metros abaixo daquele gigante…e eu com ela!

A estrada não pára de surpreender…estação de serviço com “parqueadero”

Os metros vão passando, e até os kms. Na verdade sinto-me bastante bem. A leve impressão do joelho esquerdo, desapareceu e sinto-me com energia e vontade de atacar os últimos 15 kms. Nesta altura já tenho pouca esperança que o gráfico de ontem esteja errado, que os 55 kms se reduzam 5 kms que seja, ou que os três mil oitocentos e tal metros, se fiquem pelos três mil e seiscentos ou setecentos. Sinto-me preparado…

Subida em escada…é mais o efeito psicológico, olhando de baixo…


Quando a montanha fecha a porta e engole a estrada

Agora a estrada entra naquela fase dos S curtos, mais parecendo uma escada. São pelo menos três patamares muito íngremes que esbarram na montanha. A parede a pique e a vegetação densa, escondem qualquer saída, mas “no último metro” lá surge mais um cotovelo, mais 180º e novo degrau… Os cumes estão mesmo ao meu lado. Lentamente vão ficando para trás…. ainda há uma lomba mas o declive é muito mais suave. Km 53 e estou no topo. Há duas ou três construções no pequeno planalto e um grupo de 4 ou 5 homens constroem algo, a vinte metros da estrada. Interrompem o trabalho e eu também. Olham para mim espantados e perguntam de onde venho. Digo que hoje venho de Fresno e eles insistem se subi de bicicleta. Digo que sim e olham uns para os outros a abanar a cabeça. Seguramente acham que não estou bom dos miolos…riem-se e pergunto se terminou mesmo a subida. Um deles diz-me que não, que há dois quilómetros de descida e mais uns três ou quatro de subida. Depois sim, é sempre a ”bajada” até Manizales. Eu é que já nem o queria ouvir…não estava preparado mentalmente para “apenas” mais 4 kms de subida. De repente foi como se todo o peso do esforço de um dia me caísse em cima num único instante…bebi, comi, descansei a cabeça uns segundos e fiz o que tinha de ser feito…

Alto de Letra, acima dos 3800 metros

No alto de letra o contador indicava 58 kms, à média de 8,2 km/h, o céu estava sombrio, de nuvens escuras e pesadas, denso nevoeiro abraçava os picos montanhosos em redor. Uma clareira luminosa no vale, parecia indicar o caminho. Tirei uma fotografia sem alma, apenas com receio de esquecer o nome do “alto” e deixei-me ir…
Apesar de ter vestido o corta-vento, sentia-me enregelar. Mas a sensação de fadiga desaparecia devagar e a adrenalina da descida mantinha-me o sangue quente nas veias – excepto nas mãos, que ia deixando de sentir. Pela velocidade, pela tensão da descida, pelas nuvens e nevoeiro, pelo anoitecer que chega mais cedo aos vales, pouco retenho da paisagem dos 30 kms de contínua “bajada” até às portas de Manizales.
Manizales pareceu-me horrível, especialmente porque tive de subir 5 kms para chegar “às portas da cidade”, ao hostal Manizales, na calle 66 com a carrera 23A. Os únicos pontos de interesse que lhe encontrei foram a costumeira simpatia colombiana, com destaque para as inexcedíveis miúdas do hostal, e o antigo “cable”, um sistema de teleférico que ligava Manizales a Mariquita, numa extensão de cerca de 100 kms, por onde era escoado o café!
Imediatamente a sul de Manizales, começa a famosa “zona cafetera”. A paisagem agora é dominada pelas encostas íngremes, onde crescem cafezais a perder de vista. Toda a economia local é dominada pela produção de café e as plantações, bem ordenadas, formam desenhos de curiosa geometria, em tons de intenso verde-escuro. São dezenas de quilómetros de cordilheiras, encostas e vales, de monocultura, apenas salpicada aqui e acolá por pequenos bosques.

De Manizales a Pereira, plantações de café





A estrada parece descer ao infinito, com declives, curvas e precipícios estonteantes, até estabilizar num planalto de onde se avista Pereira, e os seus “pequenos” arranha-céus, à distância. Gostava de inflectir para Salento e passar uns dias no vale de Cocora, mas o Luís Hilário chegou há uma semana a Quito e já deve estar impaciente à minha espera…e ainda vai ter de esperar mais de uma semana, até nos encontrarmos em Otavalo. Assim, decido prosseguir para Cartago, e “virar costas” à zona “cafetera”.

Em Dos Quebradas, nem só de pão…

Com a entrada no vale do rio Cauca, pela estrada 23, a mudança da paisagem é rápida e radical. A montanha dá lugar à vasta planície, delimitada pela serrania de los paraguas, a ocidente e o que julgo ser a cordilheira ocidental, a oriente. As nuvens pesadas, ameaçam desfazer-se em água e obrigam-me a vestir a, sempre desagradável, roupa de chuva. Mas quando as torneiras fecham e a luz do sol poente irrompe teimosamente pela carapaça de nuvens, cria uma sinfonia inebriante de tonalidades, sombras e odores.

Cartago, entardecer

Progressivamente, o vale empurra as montanhas para longe e a cana-de-açúcar emerge em toda a paisagem. São dezenas de quilómetros, milhares de hectares de cana verdejante, crescendo geometricamente no solo negro encharcado em água… Surpreendentemente, pela vastidão da extensão das propriedades, muito do trabalho é manual. Homens de longos machetes na mão, “ceifam”, limpam e cortam aos bocados as longas canas, dispondo-as ordenadamente em sucessivos montículos. Na estrada, passam camiões com quatro e cinco reboques enormes, repletos de cana, a caminho das fábricas.


Cana-de-açucar, até ao infinito


Em Yotoco, o Cauca já transbordou e o inverno ainda não chegou...



Autocarro em Villarica


Sinto Popayán como a “última fronteira” de uma Colômbia cosmopolita e urbana. Para sul, espero um país cada vez mais remoto, marcadamente rural, despovoado, selvagem, pobre, berço da população indígena e negros…


Popayán

O centro histórico da cidade é marcadamente colonial, com edifícios de grandes proporções, por vezes ocupando quarteirões inteiros, invariavelmente pintados de branco e com poucas janelas ou portas, o que lhes dá um ar robusto, austero e sóbrio. Mas basta esticar o pescoço pelas portas entreabertas, deparamo-nos com belos pátios interiores, ajardinados, enquadrados por sumptuosas varandas e arcadas, assentes em rústicos suportes de madeira ou elaborados pilares de lousa.


Popayán

Uma enorme percentagem dos edifícios está afecta a universidades e outras instituições de ensino, a organismos públicos e ordens religiosas. Talvez seja esse o segredo do excelente estado de conservação – ou, mais provavelmente, o desastroso sismo que destruiu a cidade em 1983, tendo sido totalmente recuperada nos vinte anos seguintes – mas também torna muito mais fácil e amistoso o acesso aos espaços interiores, pois mais que uma vez espreitava da rua e, de dentro, um segurança ou aluno, me mandava avançar, por vezes efusiva ou orgulhosamente.




Popayán – claustros de diversos edifícios universitários

Do topo norte da cidade, a pequena colina – morro de Tolcán – proporciona uma vista fantástica da cidade, profusamente pintada de branco, em contraste com os telhados acastanhados e com as verdejantes serranias envolventes.


Popayán Visto de el Morro de Tolcán

As ruas fervilham de gente, com enorme proporção de jovens estudantes, numa grande diversidade de gostos, trajes, tradições e tendências, dando-lhe um ar de surpreendente cosmopolitismo, irreverência e intelectualidade. Não há-de ter sido por acaso que quinze presidentes da república, eleitos, e três candidatos vencidos, são filhos de Popayán…

Popayán – Parque Caldas

Frederico Rico, orgulhoso colombiano e papayense afável, com quem me cruzei num passeio matinal junto ao rio, pediu-me para não continuar de bicicleta depois de El Bordo. Para apanhar um bus até à fronteira com o Equador, pois o sul é muito remoto, despovoado, inseguro, perigoso, ainda por cima com um relevo muito duro e, também por isso, propício aos assaltos na estrada. Ao mesmo tempo que elogia e engrandece a Colômbia do seu coração, a diversidade étnica, cultural, económica, geográfica, lamenta a má imagem internacional do país, enaltece o ex-presidente Uribe e lastima o crime e as actividades ilícitas, que ainda proliferam nas zonas remotas do país, onde não chegam estradas, luz eléctrica, nem polícias ou exército. Onde os frágeis agricultores estão à mercê do poder dos narcotraficantes, e produzir coca é dez ou vinte vezes mais rentável do que produzir café, milho ou qualquer outro bem.
Deixei Popayán sem intenção de seguir o conselho do Frederico. Fazia-me alguma confusão que existisse uma “linha divisionária”, a partir da qual os colombianos, tão simpáticos e amistosos que tinha conhecido ao longo de várias semanas, dois milhares de quilómetros e tão diversas condições, se transmutassem em pessoas perigosas e más. Além do mais, não tenho intenção de fugir à realidade de cada local, qualquer que ela seja… Mas é certo que aquele tipo de alerta, deixa sempre um pouco de apreensão no subconsciente, fico menos descontraído, inevitavelmente menos confiante e afoito em relação às pessoas. É como se os estivesse a olhar com outros olhos, procurando avaliar cada um pela sua aparência – que é o que mais detesto. Felizmente, são necessários poucos quilómetros de estrada para afastar do meu íntimo a menor suspeita, ou insegurança, em relação às pessoas. Aliás, creio que em nenhuma outra zona da Colômbia recebi comparável número de afáveis cumprimentos, ao percurso de Popayán a Pasto…
“Sempre igual e sem igual” é o slogan da cerveja Aguilla. É o que sinto em relação aos dias que já lá vão, desde que parti de Inuvik… e o sul da Colômbia é o exemplo perfeito dessa repetição impar e sem igual.

De Popayán a Mojarras

Após Popayán, regressa a montanha a sério. Regressa a grandiosidade da paisagem, das montanhas infinitas e dos vales profundos. Regressa o verde selvagem e o terreno inóspito, que um punhado de agricultores teima em cultivar. Regressam as casas mais pobres, simples e rudes que nunca. E aparecem, pela primeira vez, pessoas que transportam consigo a África negra dos seus ancestrais. Vivem nessas pobres casas, estão sentados no silêncio, parados, inertes, com os olhos perdidos no vazio, da memória, da ausência, do infinito… No extenso vale, que vai de El Bordo a Mojarras, até me parece avistar um embondeiro, sozinho na planície...

Aqui não existe antes nem depois...


...apenas a simplicidade do instante


com a linha de horizonte como limite

O Óscar tem doze anos, anda na escola, é louro e tem olhos verdes. Vive sozinho com a mãe, numa casa modesta, junto à estrada. Atravessa a estrada, puxando por uma corda uma carreta de madeira, que consiste numa prancha em cima de quatro minúsculas rodas de plástico. Em cima, leva um balde de 20 litros de água, amarrado com um cordão. Como há uma profunda valeta na berma da estrada, tem o carrito atravessado, com as rodas de trás na berma da estrada e as da frente já no quintal. Está à espera, deduzo, e ofereço-lhe ajuda. Hesita na resposta, pois não deve estar habituado a que lhe ofereçam ajuda, muito menos um estrangeiro que com ar de extraterrestre. Encosto a Dempster na berma oposta da estrada e suspendo a traseira do carrito, enquanto ele puxa à frente pela corda. Está transposto obstáculo da vala na berma da estrada, quando chega a mãe, que fica a olhar com um sorriso de espanto, vaidade, carinho(?)… Não sei, mas guardei-o para mim como sendo um sorriso raro, naquele rosto duro e meigo.

O Óscar não deve conhecer a palavra (nem o conceito) "brincar"...


Durante a preparação de um jugo de Morojo,”o inverno só trouxe pobreza e fome”, repetia com a voz e o olhar. “Vuelva pronto”, disse-me à despedida – que interpretei como “obrigado”

Depois de Remolina, acaba-se de vez(?) a “doce” suavidade da paisagem e do relevo. Não devem existir dois quilómetros planos! Talvez já me tivesse esquecido do Pescadero e da travessia de Bogotá a Manizales. Talvez já começasse a acreditar que os Andes se tinham afastado para me dar passagem. Mas tudo iria recomeçar, com a mesma intensidade, tormento, entusiasmo, êxtase. Porque, para mim, todas as montanhas continuam a ser únicas…porque únicos são cada momento que proporcionam, cada ângulo que observo, cada rio, ribeiro, encosta, sombra, reflexo que lhes descubro – e na lentidão da subida, a calmaria do tempo é inversa à intensidade das emoções…

Longa marcha, sob sol abrasador, para ir fumigar mani (amendoim)


É tão difícil imaginar pessoas vivendo "alem"


É tão difícil resistir ao fascínio desta enormidade


É tão difícil não largar a bicicleta e a vida, pôr os pés à terra, saltar o rio


e ir em busca do Deus da Montanha,


que deve habitar no olhar dos homens, mulheres e crianças, jardineiros e arquitectos deste paraíso de mistérios e segredos…


Na ferida rasgada no dorso da montanha, há sinais fora do tempo…


A formiga e o elefante encontram-se, respeitam-se...talvez se admirem mutuamente,


nunca esquecendo as diferenças abissais.


Se me permite, senhora montanha, prometo ser cuidadoso com as suas feridas,


respeitar as suas lágrimas,


não troçar das suas rugas,



não divulgar (muito) os seus segredos e mistérios,


ouvir o seu murmúrio, brados, rugidos e gritos.


Desde que me conceda um pouco da sua grandiosidade…

As chuvas intensas que não param de cair na Colômbia degradaram drasticamente muitas estradas. E nesta Colômbia remota, que o Frederico Rico me recomendou evitar, há pessoas – homens e mulheres – de idade indefinida, com pás e enxadas a taparem os buracos e valas mais profundas que a invernia criou. E depois ficam ali, nesses locais degradados, a pedir uma moeda pelo serviço voluntário de manutenção e reparação da estrada.

Com a chuva, aumenta a adrenalina…

Claro que os condutores de carros e camiões, passam impávidos e distantes, na sua redoma de vidro e metal. Mas eu não tenho protecção e, talvez por isso, paro, rebusco uma moeda e recebo agradecimentos e gratidão. Por vezes muito mais que isso… Estes homens e mulheres são de uma simplicidade, rudeza e abandono, extremos. Ainda assim, um desses rostos, tisnados pelo tempo implacável, numa voz suave mas firme, pergunta-me de onde venho, de onde sou. Digo-lhe que venho do Canadá e sou de Portugal. Conclui, então, que “o Canadá é para ali” (a norte, de onde a estrada vem) e “Portugal para ali” (a sul, para onde me desloco). Digo-lhe que sim, certo na inutilidade de uma explicação mais complexa de geografia… Pergunta-me se o governo do meu país é “liberal ou conservador”. Pergunta de muito difícil resposta, mas lá fiz um esforço de “simplificação” e disse-lhe que era liberal… “rojo”, concluiu ele. Ainda lhe disse que era um rojo muito escarlate, a fugir mesmo para o incolor, mas a cabeça dele podia explodir e rematei que sim, que era “rojo”. E que “moneda manejan” no teu país, continuou. Disse-lhe que era o euro e pediu-me se não tinha uma que lhe mostrasse… com enorme tristeza, não tinha. “Quanto custa uma viagem para o teu país”? Não lhe podia dizer a verdade. Não poderia compreender… nem os jovens que me perguntam quanto me custa esta viagem, conseguem perceber, ainda que lhes diga que fica por metade do que realmente ficará… Esperei pela próxima pergunta, e ela chegou: “como se chama o presidente do teu país”? Respondi-lhe, apertei-lhe prolongadamente a mão fria e dura, olhei de novo aquele rosto triste, aqueles olhos vagos, aquela boca com apenas dois dentes, aquele homem perdido no sul frio, molhado, montanhoso, insondável, indomável. E vi nele o fantasma dos habitantes esquecidos da encantadora Colômbia, nos seus contrastes, rudeza, dureza, pureza, encanto e contradições…

Na Colômbia remota, continuam a ser o único meio de transporte

E há mais, há muito mais… há o José, proprietário do hotel Los Cristales, em Chachagui, onde pernoitei e com quem poderia ter passado um dia a conversar, ouvir e viver a vida dura, mas serena, de um “homem de mil ofícios”. Há El Pedregal, que não consta do mapa, se calhar por ser invisível do céu, tão escondida está entre falésias rochosas que se erguem a pique sobre a aldeia, no fim de já não sei quantas dezenas de quilómetros de descida, e antes de outras tantas a subir para Ipiales, na fronteira com o Equador. Há, sem dúvida, as mais dramáticas e emotivas paisagens de montanha que vivi até hoje, não particularmente pela sua imponência, que é indescritível e irretratável, mas pela força e emoção que transmitem, pela sua solidão, pelo isolamento, pela rudeza e dureza das escassas gentes que aí resistem. Há o jovem vendedor de amendoins e o idoso vendedor de línguas da sogra e caramelos caseiros, que procuram fazer uns cêntimos na portagem da estrada e com quem me refugio da torrente de água num pequeno telheiro. No fim da meia hora de dilúvio, conversa e acepipes, ainda me regalam “à força” mais um “pacote de caramelos” e outro de amendoins, como recuerdo…
Cheguei a Ipiales com “pressa” de passar a fronteira para o Equador, pois queria ir dormir a San Gabriel, para no dia seguinte chegar a Otavalo, encontrar-me com o Luís Hilário, que lá me esperava há um par de dias.
Na estrada para a fronteira, a confusão de trânsito era enorme, em contraste com a pacatez das demais ruas da cidade. O motivo, era uma enorme manifestação que seguia umas centenas de metros adiante. É claro que não sabia qual o móbil, nem a rota que seguiria. Poderia ter perguntado aos polícias que marchavam atrás, mas o bichinho estava à solta e decidi juntar-me à massa humana, em marcha lenta.
Aproximei-me lentamente da retaguarda da manifestação, desmontei da bicicleta e cheguei-me o mais possível dos manifestantes. À minha frente marchavam homens e mulheres de todas as idades. De estatura baixa, olhos negros e cabelo de pez, pele curtida por séculos de vivência com a natureza bravia, uns de chapéu andino na cabeça, outros de coco ao léu, quase todos de traje tipicamente andino, com a inconfundível “manta” enfiada na cabeça. Moviam-se devagar, com passos pesados e rostos carregados, como se estivessem ali a contragosto, como se desprezassem aquele mundo. Lá para diante ouvia-se uma voz metálica e vigorosa, ampliada pelo microfone, gritando palavras de ordem, secundadas por vozes densas que parecem cansadas. Alguns cartazes agitam-se acima das cabeças, com dizeres contra o TLC (Tratado de Livre Comércio entre a União Europeia e a Colômbia).
Pouco a pouco, vou deixando a cauda da manifestação e marcho no meio da multidão. Quero ver mais rostos e mais de perto; quero ver os olhares e a sua expressão – não, quero é sentir esses olhares em mim e tentar perceber se são também contra mim, enquanto “gringo” ou europeu, tanto faz; quero ouvir o silêncio opressivo e as vozes indignadas, receosas, amedrontadas talvez; quero sentir os Andes de carne e osso, através desta massa de indígenas. Encontro respeito, curiosidade, interesse, e respondo a todas as perguntas com a maior cordialidade e solicitude que consigo. Apesar de me sentir num ambiente amistoso e acompanhar muitas das palavras de ordem com tanto ou mais entusiasmo e energia que os manifestantes, sinto-me intruso, a mais, ridículo, quase provocatório. Mas tenho de aguentar até ao fim, pois estou completamente no meio da manifestação e não há estrada, carreiro, ou atalho por onde possa escapar…fui apanhado na minha própria armadilha.


Manifestação contra o TLC

Não conheço nada do acordo assinado, tal como a esmagadora maioria dos manifestantes, estou seguro. Mas sinto-me sensorial, emocional e racionalmente solidário com cada uma daquelas pessoas. São agricultores paupérrimos, que vivem essencialmente da produção de leite, que lhes pagam a 200 pesos (8 cêntimos de euro) o litro. Posso dizer que vi as suas “casas” ao longo da estrada; as suas micro-explorações, com menos de meia dúzia de vacas; as suas indumentárias modestas; o seu calçado – quando não andam descalços –; transportarem a vasilha de leite às costas, a cavalo, de bicicleta ou de mota; os filhos iguais aos pais. E principalmente os seus olhares, as suas expressões faciais, os seus corpos mirrados pela dureza da montanha e da vida. E a pergunta é óbvia e simples: como podem os derivados de leite europeu chegar à Colômbia a preços iguais (pouco importa de marginalmente superiores ou inferiores) aos da produção destes agricultores? Somente através da brutal, irracional e criminosa política de subsídios da Política Agrícola Comum… Só essa assassina aberração, criada para “garantir uma certa auto-suficiência alimentar europeia”, e degenerada na produção interminável de excedentes, pode levar à venda de fruta europeia nos mercados africanos ou à venda de derivados de leite em países da América latina, em pseudo-concorrência, banindo os miseráveis produtores locais para a valeta. E depois bramamos contra a produção de droga nestes mesmos países e pregamos de cátedra contra esses bandidos… Hipocrisia e cinismo sem limites…