terça-feira, 28 de setembro de 2010

Califórnia Trail

Califórnia (e Oregon) Trail - não se fotografa nem se descreve...vive-se e pode tentar imaginar-se...


Oregon Trail - Massacre Rocks

Califórnia Trail

O olhar amarelece, tingido pelos tons ocre de toda a terra que existe. As plantas, rasteiras e mirradas, agonizam e vergam-se ao sopro furioso do vento quente e seco. As rochas deslavadas, há muito que viram ser-lhes arrancadas as últimas partículas de terra e, com elas, a esperança da vida. Os corvos parecem estátuas fúnebres, emitindo monossílabos de tempos a tempos, por poupança ou perda de memória. Raramente uma águia emerge da terra, e quando o faz, eleva-se lentamente em círculo pequenos, enquanto solta um piar que mais parece um gemido de desalento e resignado. De um lado e do outro desta morte, velam montes de média estatura e múltiplas formas: ora esfarrapados e despenteados, como cristas de galo disformes pelas lutas de capoeira; ora lisos como a água do mar na linha do horizonte. Bois sedentos, famintos e cegos arrastam carroças rudimentares, esmagadas no peso de grandes sonhos e míseros haveres, rasgando a estrada aos solavancos por entre gemidos silenciados no medo e na incerteza. A última côdea de pão negro, ficou no esforço de transpor uma qualquer derradeira colina – que o não foi. A farinha ardeu com o calor, e as cinzas subiram aos céus, por um qualquer anti-milgare, para gáudio de deuses distraídos. O único fio de água que ainda não se afundou nas profundezas da terra, arrastando-se pelo leito do Humboldt, é espesso, pastoso, malcheiroso, refúgio de larvas e peçonha.
Os pés, há muitos sóis que acariciam directamente o solo agreste. Os corpos secos e cobertos de pó, oscilam como espigas de trigo no momento da sega, antes de tombarem enfeixados no campo.
Os nativos – a que chamaram índios e travestiram de demónios – observam incrédulos, do seu altar em silêncio. Clamam aos antepassados e vindouros sapiência e entendimento para a tragédia que os seus olhos vêem mas o saber não alcança. Olham atemorizados o movimento da terra e dos homens que mais parecem demónios transportando a morte consigo.
A Califórnia prometida está apenas à distância de uma vida – de cada uma única vida…
As flechas de papel esbarram nas balas de desespero. Os gritos explodem em choros. O tropel dos cavalos desencadeia avalanches de rochas e terra que esmagam os pés há muito descalços. A criança que corre, espalha o fogo do seu cabelo ruivo. O vale em chamas e fumo repousa finalmente em paz. À espera da próxima vida que há-de ir mais e mais além, até passar a última colina, estender o olhar e deixar as lágrimas irrigarem o campo outrora morto.

Sem título...
O gemido triste do comboio, silencia o uivo do último lobo da pradaria e acorda-me de mansinho…

Á medida que avanço para sul, para a fronteira do Nevada, sinto na carne e na alma a paisagem a mudar…as vastas planícies são cada vez mais áridas e secas. O Snak River parece ser o milagre da vida para toda a região. É dele que brota, em quantidades aparentemente ilimitadas, a água que corre pelas inumeráveis artérias deste solo sequioso. Os canais de irrigação sucedem-se, e todas as culturas que vejo em redor, do milho às batatas, do feijão à forragem, tudo parece depender do rio. O cheiro e os mosquitos não deixam dúvidas sobre a ruralidade da zona.

Porquê?
Depois de Twin Falls, em direcção ao sul, rapidamente fica para trás o último tom de verde, a última parcela cultivada, a última casa ou aldeia. Apenas a estrada prossegue serena e indiferente à paisagem silenciosa. Rogerson, apesar de suja, decadente, pobre, parece-me um oásis no deserto. O “parque de campismo” rivaliza com os piores que conheço.
Depois de montar a tenda, e não querendo acreditar que os duches e casa de banho eram mesmo os que os meus olhos viam, decidi ir de novo à recepção confirmar. A boa notícia é que estava a decorrer o Rodeo ali mesmo na aldeia. Fui até lá, mas apenas cheguei a tempo do bar-b-q, que estava a começar. Existia uma lista de preços afixados e perguntei se me podia juntar. Com sorrisos e palavras simpáticas que não percebi à primeira, disseram-me que era bem-vindo, grátis e bastava ir para a fila. Contribui com 5$ e aderi à ementa, composta por feijões guisados, maçarocas de milho amarelo cozido, batata assada com a pele e grandes nacos de carne de vaca assados na grelha e fatiados na hora… Depois de repetir três vezes, achei que já toda a gente olhava para mim e fui-me embora. Completei o jantar no campismo, com uma sandes dupla e um litro de leite…

Rodeo em Rogerson

Tomava o pequeno-almoço pelas oito horas, já sob um sol atrevido, quando aparece o Bill com um bolo parecido a um grande queque e mo oferece. Claro que aceitei logo, apesar de ter um exactamente igual em cima da mesa… Na verdade o que ele pretendia era meter conversa e saber o que andava por ali a fazer um barbudo de bicicleta… Mostrei-lhe no mapa por onde tinha andado e qual a rota que iria seguir e concluiu que já conhecia mais dos EU do que ele.
Não tinha percorrido ainda 20 kms quando passa por mim uma caravana, que para logo à frente. Era o vizinho do bolo! Saiu do carro com um mapa que mais parecia uma enciclopédia e disse-me: estive a pensar na rota que vais seguir e a estudar o mapa e parece-me haver uma alternativa melhor para ti… Sugeria-me que seguisse a “lonliest road” – a estrada mais solitária da América… Não se cansava de dizer “It’s a cinic road, but should be Your road”. Resisti à tentação… admito que os sucessivos “pass” acima dos 7 000 – e mesmo 8 000 – pés, as distâncias de mais de 100 kms sem qualquer povoação, campismo ou “rest area”, o calor e o vento contra que me acompanharam nos últimos dias, foram superiores à vontade de trilhar a também conhecida por “Pony Express Road”.
Jackpot fica imediatamente na fronteira do Nevada. Quando vi o nome pela primeira vez, ainda em Lisboa, no Google, duvidei que o não fosse apenas uma coincidência de palavras. Mas não, são 1271 habitantes e seis casinos…o mais famoso dos quais é um autêntico arranha-céus no meio de nada.
Prossegui sob o sol cada vez mais intenso na paisagem árida, agressiva, morta. Deixou de haver ranchos, culturas, pessoas ou animais. A estrada é uma recta interminável e só as pequenas colinas que transpõe lhe quebram um pouco a monotonia. O vento oscila de intensidade mas não de direcção: sopra de sul. Sinto que será um dia duro, pois até Wells, mais de 100 kms depois de Jackpot, apenas posso contar comigo. Começo a racionar a água, especialmente para o caso de não conseguir chegar a Wells e necessitar de acampar e cozinhar…A mesa para o almoço foram os alforges da bicicleta, encostada nos resguardos da estrada.

Entrando no Nevada
A cerca de 65 kms da cidade estava uma caravana parada na berma da estrada, e não hesito: peço-lhes para atestar a garrafa de 1,5 litros.
Com alguma dose de persistência e insistência, cheguei a Wells, uma vila triste nascida do cruzamento de estradas e perdida num indiferenciado, inóspito e agreste vale.

Wells...longe
As povoações vão mudando de nome: Elko, Carlin, Batle Mountain, Lovelock… as milhas na estrada vão diminuindo pouco a pouco. O Snake River há muito deu lugar ao Humboldt. Os dias vão decorrendo iguais. Pareço pedalar dentro de um enorme vulcão, aproximo-me da parede, transponho-a e, quando estou no topo, lanço o olhar e desço para novo vulcão e assim sucessivamente…a linha do horizonte é sempre uma cordilheira castanha; o céu é sempre azul; a estrada negra, recta e infinita, esvai-se no solo plano de tons amarelo-torrado; o sol aumenta de intensidade e atinge o pico quando começa a inclinar-se sobre o mar longínquo. A berma da estrada, do tamanho de uma faixa de rodagem, é toda minha e da Demspter. O tráfego é intenso e ruidoso, especialmente camiões com vários atrelados, mais parecendo comboios.

Carlin Canyon

Entretanto...
Em Winnemucca respira-se outro ar…talvez por o Butch Cassidy aqui ter deixado a alma e levado o dinheiro do banco; talvez pela diversidade urbana, com vários edifícios de traça antiga, paredes de tijolo, telhados de telha vermelha, varandas coloridas; ou talvez apenas sugestionado pela placa alusiva à “route 66” ou à presença basca. A verdade é que foi a primeira povoação do Nevada de que gostei, onde me senti bem, em que senti prazer ao passear pelas ruas, entrar no interior sombrio, e ao mesmo tempo luminoso, dos “casinos”, beber uma cerveja e conversar com o vizinho do lado.

Winnemucca
O estômago e as pernas murmuravam que ia sendo tempo de almoçar, quando surgiu a indicação para Rye Patch Dam, um parque de recreio e campismo nas margens do Humboldt river. Achei que ao fim de tantos dias passados na sua vizinhança, devia-lhe senti-lo de perto, talvez mesmo mergulhar nas suas águas…o local é aprazível e a sombra das árvores tornam-no quase paradisíaco sob os raios do sol abrasador. Uma garça branca com as calças bem arregaçadas, passeia-se, pé-ante-pé, na linha de água. Depois de almoçar, dedico alguns minutos a estudar o mapa – não tanto para hoje, pois conto chegar em breve a Sparks, mas para os dias seguintes – e adormeço com a cabeça em cima de uma qualquer cidade americana… e assim deixei, sem me despedir, o meu mapa Michelin dos EU…
“Forty mile desert” não precisava existir – pelo menos não aqui nem agora… que raio é necessário ainda provar!? Separar os “nus dos mortos”…


Forty mile desert

Forty mile desert

Forty mile desert

Sparks e Reno, com os seus cerca de 270 000 habitantes, formam o primeiro grande aglomerado urbano com que verdadeiramente de deparo.
O dia entardece e na cidade não há parque de campismo. Os motéis e hotéis baratos estão todos esgotados pelo exército de 30 000 motards que se passeiam em ensurdecedoras Harleys. Olho Greg LeMond, tricampeão do Tour, de baixo para cima e observo um verdadeiro gigante de bronze…o de amarelo repousa seguramente numa rua distinta, a dois passos, na sua Reno natal.

Oh pra elas...tantas!
Decido procurar rapidamente as margens do rio em busca de um recanto pacato onde possa montar a tenda. E locais não faltam…existe uma ciclovia ao longo do rio e, de quando em vez, relvados aprazíveis que fariam inveja a alguns parque de campismo. Elegi um local discreto, com uma mesa de cimento mesmo ao lado, onde já me via a jantar, e espetava as primeiras estacas quando, do outro lado da pequena barreira de árvores, pára um carro. Sai um tipo, cruza o curto espaço e antecipo-me perguntando-lhe se posso acampar ali. Responde-me que não, que é proibido acampar em toda a mancha florestal da cidade…já era lusco-fusco e olho para ele com ar desanimado, interrogando-o, primeiro com o olhar e depois, meio afirmação, meio interrogação, digo: e agora o que hei-de fazer…? Onde é que são os limites da cidade? Onde é que poderei acampar? O tipo hesitou e lá me disse: procure mesmo junto ao rio… descendo a margem, pode ser que encontre um local mais escondido e, se quiser, arrisque acampar. Mas já sabe, se a policia aparecer, está sujeito a uma multa e problemas… Segui a sugestão e, com os pés meio na água e a cabeça nuns arbustos espinhosos, lá arranjei os cinco metros quadrados para montar o estaminé, já a lua ia cheia e alta…
…O que me intriga é como raio, à noite, numa zona periférica da cidade, longe de pessoas e casas, surge um “vigilante” (não era polícia), nem cinco minutos depois de eu ter parado e começado a erguer a tenda… já há um bom par de semanas, em Salmon Lake, parei para almoçar num parque de campismo fechado ao público. Não havia vivalma por perto, afastei-me da entrada, e da estrada, duas centenas de metros, estava numa mesa bem resguardada e discreta e mal tinha feito a primeira sandes, aparece-me um polícia de carro a dizer que podia almoçar mas depois tinha de ir embora…

Depois do incidente do campismo, decidi deixar Nevada o mais rápido possível e seguir o caminho mais curto para a Califórnia. Trukeey seria a cidade de entrada no novo estado… Levantei-me com o sol e comecei a pedalar para Oeste. Reno ficou para trás e quando quis entrar na estrada 80, a mesma que me trouxe desde Wells, era proibido o acesso a bicicletas… Prossegui numa qualquer paralela até que…acabou. Tinha pedalado quase trinta kms. Custava-me a acreditar, mas a melhor solução era voltar a Reno e seguir para sul, pela 431, em direcção a Tahoe Lake. Para além de acrescentar algumas dezenas de quilómetros, anunciava o Mont Rose Sumit, com 8900 pés (mais de 2700 metros de altitude…). Mas férias são férias, quem pedala por gosto não cansa e um bom desafio nunca fez mal a um espírito teimoso… Trinta kms para oeste, outros trinta de regresso ao ponto de partida e finalmente a estrada 431 estende-se a meus pés, sempre a subir, sempre sob o sol tórrido do início da tarde, repleta de motards e automobilistas. Afinal, para alem da concentração de motas, Tahoe Lake é um destino turístico obrigatório e era fim-de-semana…Antes de deixar para trás a última casa, eis uma estação de serviço… porque não um último reforço para o corpo e a alma? E à porta de entrada dou de chofre com o Samuel L. Clemens, sentado com cara de ferro e bigode farfalhudo, concentrado nos últimos retoques do Huckleberry Finn…Acho que com a luz do sol intenso a toldar a visão e a concentração férrea (ou de bronze…) nem deu por mim… mas não faz mal, o prazer foi meu!


Mark Twain na estação de serviço!!
Terão sido 25 kms consecutivos a subir. Terão sido 1350 metros de desnível. Terão sido 2 horas e meia a pedalar. Terão passado centenas de Harleys e milhares de carros. Terão caído poucas gotas de suor, pois a camisola vermelha, era metade branca ao fim do dia. Mas afinal subir é apenas uma descida elevada a -1!! ou não!? E o 1 não é o mero elemento neutro da multiplicação? Ao fim de dois meses a pedalar, venham mais cinco duma assentada!!

Um Sumit...
A parte norte do Lago Tahoe, pelo menos num sábado quente de Setembro, é o pior sítio para estar. Repleto de carros, motas, gente, barulho, shops… Entardecia rapidamente e precisava encontrar um parque de campismo para esticar os ossos. Kings beach era a única solução, mas os 25$ custaram-me a desembolsar…

Por ausência de alternativa, ponho a carregar os apetrechos electrónicos na casa de banho. Hoje não foi excepção e lá deixei o telemóvel enquanto jantava. Quando fui buscá-lo, tinha-se evaporado… Reflectia no absurdo de ir de tenda em tenda, caravana em caravana, olhar com ar acusador e perguntar quem raio tinha desviado o telemóvel, quando chega um alemão com o telemóvel na mão para o colocar de novo a carregar onde estava. Perguntou-me se era meu e explicou-me que como andavam por ali uns miúdos “traquinas”, achou melhor levá-lo e ir de tenda em tenda à procura do dono. Mas também não lhe deve ter agradado a ideia e acabou por devolvê-lo ao ponto de partida…acabei na caravana dele, a beber tequilla com ele e a mulher…é piloto cargo da Lufthansa e, por entre os goles escaldantes do álcool, percorremos juntos vários países, especialmente africanos…

Lake Tahoe
À medida que pedalo para sul e viro costas aos principais aglomerados urbanos, o lago torna-se um local aprazível, cativante. Tem uma ciclovia com dezenas de quilómetros, que ora bordeja o lago, ora mergulha na floresta densa. À medida que a manhã avança e o frio matinal fraqueja, aumenta em flecha o número de praticantes com quem tenho de partilhar a ciclovia. São de todas as idades e sexos, de bicicleta, patins ou ténis.
Além do mais, hoje é um domingo especial, com várias provas de atletismo a decorrerem, incluindo a maratona…a vantagem é que eu próprio vou comendo e bebendo ao longo dos vários postos de abastecimento!

Sem comentários...

Emerald Bay
No extremo sul do lago, a estrada 50 tem mais trânsito do que a ponte 25 de Abril no dia 1 de Agosto…um carro patrulha manda-me parar e recomenda-me não prosseguir viagem, pelo menos hoje – Domingo. Diz-me que a estrada praticamente não tem bermas, é muito sinuosa, especialmente até Twin bridges, que o tráfego de regresso às cidades é muito intenso e que arrisco demasiado. Há um parque de campismo uma milha adiante e equaciono ficar lá, mas quando a proprietária e recepcionista me diz que são 35$, já depois dos 10% de desconto que o meu ar estupefacto lhe deve ter provocado, agradeço e viro costas, não sem antes ainda ouvir: “this is Lake Tahoe! What do you expect?”
A menos de 200 metros existe outro parque de campismo, mas desactivado…um local lindíssimo, junto a um ribeiro por onde escorrem águas verdes, sob pinheiros enormes formando clareiras luminosas nas sombras frescas. Nada diz explicitamente que é proibido acampar, mas todos os sinais o indiciam…encosto a bicicleta e espero que uma decisão desça de mansinho pelo tronco do mais forte pinheiro…não consigo esquecer o episódio em Sparks. Não receio propriamente a polícia, mas alguma multa pesada…e começo a sentir aquela sensação desconfortável e irracional de ser observado, controlado. Ou melhor, eu próprio começo a “controlar-me” e a condicionar os meus actos. No Canadá não teria hesitado um único segundo em pernoitar ali…
Como o pinheiro com quem falei continuava em silêncio, decidi eu. Não ia ficar ali, não ia pagar 35$, muito menos depois da última frase, que ainda me soa arrogantemente aos ouvidos. Iria voltar à estrada e retomar o meu rumo…
Fosse do stress ou da zanga, o certo é que a subida ao Echo Sumit, a 7382 pés, foi um puro contra-relógio. Quando vi a placa indicativa, nem queria acreditar! Mais a mais, estava junto a outra indicando o Pacific Creast Trail – uma rota mítica para bicicletas que percorre os EU de norte a sul pela “crista do pacífico” – que equacionei seguir quando “planeie” a viagem, mas de que desisti mal vi a altimetria…

Pacific Creast Trail...
Depois do Echo Sumit foi descer a sério e à séria…
Toda a zona é muito montanhosa e faz parte de uma reserva florestal: a Este, a Humboldt Toiyabe National Forest; a Norte, a Tahoe National Forest; e a Sul e Oeste, a El Dorado National Forest. A estrada é realmente estreita e sinuosa, ladeada por enormes paredes cavadas no granito e precipícios à distância de uma barreira metálica. Mas à medida que desce, são os frondosos e enormes pinheiros que delimitam cada curva da estrada e escondem o sol. A temperatura baixa rapidamente e o próximo campismo do mapa fica a dezenas de quilómetros…
Uma curva da estrada dá de chofre com Strowberry – um nome que não está no mapa. Uma ou duas casas e o Lodge à esquerda e uma grocerie á direita. Opto pelo segundo e pergunto ao rapaz jovem e louro se não há por perto um local onde possa acampar. Para minha surpresa, diz-me que há um parque de campismo a meia milha, logo após o Lodge. Nem queria acreditar… a sorte definitivamente gostava tanto de andar de bicicleta quanto eu. E mais! O Loves Leap – assim se chama o parque – está mesmo estendido ao longo do Pony Express Trail, na sombra de uma falésia de largas dezenas de metros de onde vão descendo diversos escaladores de cordas e arnês à cinta…

Lovers Leap CG

sábado, 18 de setembro de 2010

A caminho de San Francisco I

Jannie and Steve
Depois de ter ficado até à uma da manhã a preparar o texto e fotos para um novo post, passei a manhã a actualizar o blog…os uploads das fotos demoram uma eternidade, depois dão erro e tenho de recomeçar…irritante, especialmente quando do outro lado da janela há vida a cada segundo que passa.


Colter Bay - Jackson lake and Teton Range
O parque de campismo confina com o Jackson Lake. Existem nas redondezas diversos trilhos pedestres que se cruzam numa teia de recantos, cada um oferecendo uma perspectiva única do lago e dos picos nevados em frente. Antes de prosseguir viagem, deixo-me enredar nessa teia, por entre os pinheirais húmidos na manhã tranquila, e quase dormito sob os raios de sol mais persistentes projectando-se no solo, num jogo dinâmico de sombra e luz…
Oh estrada onde tens estado!? Partilhamos em silêncio quantas horas, quantos minutos, quantos segundos? Olho-te de cima e tu a mim de baixo. Tenho-te admirado, não pela beleza da tua tez escura, da suavidade ou agressividade da tua pele, do risco ao lado ou ao meio ou dos lados e ao meio, ou sem qualquer risco com que te apresentas para minha sedução ou protecção. Tenho-te admirado simplesmente porque sem tu cá estares eu não estaria também. Sem tu seres, eu não seria…Tenho-te observado cuidadosamente umas vezes, superficialmente, outras, ou ignorado simplesmente o mais das vezes. E sabes que já descobri em ti uma imensidão de objectos que te são alheios, te desfeiam e a mim me atrapalham? Porcas, parafusos, pregos, abraçadeiras, molas, chaves, porta-chaves, os mais diversos bocados de ferro, toalhas, roupa diversa, vidros, para não falar das latas, plásticos, bocados de pneus esfarrapados…e algum desses objectos já me travou a marcha e irritou. Mas foi ele não foste tu…e se fosses, estavas mais que perdoada. Apesar das partidas que me pregas!

Teton Pass

Teton Pass
Lembras-te de amanhã? Sim, amanhã ainda não aconteceu, mas para mim já, pois hoje para mim é ontem e amanhã é hoje! Pois é, amanhã empinaste essa coluna dorsal negra e lisa, contorceste-a sinuosamente, talvez para te exibires e me seduzires, ou dissuadires, e ao longo de oito mil metros jogaste comigo para o mais perto do céu que estive nestes quase dois meses de comunhão contigo…fomos juntos até aos 2570 metros do Teton Pass. Aí, vencida ou orgulhosa de mim, baixaste a crista, estendeste o teu tapete negro (o vermelho é para distintos seres) e levaste-me em segurança até ao teu parente próximo: o Teton Valley. Pelo caminho – e é por isso que sei que não me queres mal, que era apenas um jogo de sedução, um teste e uma leve provocação – brindaste-me com curvas suaves, portas de entrada ou saída para o florido manto que te enleva, pintado de verdes, amarelos, vermelhos, azuis, brancos, lilases, por onde saltitam riachos em pequenos saltos e suaves murmúrios. E a meio da subida ainda chamaste os teus aliados das alturas e pintaram o céu de breu, soltaram as fanfarras e fizeram trovões, rangeram os dentes e chisparam raios de electricidade que atravessaram o mundo – este onde existimos agora – representaram uma ópera e choraram lágrimas reais – sei que eram mesmo lágrimas reais porque me chegaram salgadas aos lábios secos, apesar de dizeres que o sal era do meu rosto suado.
E quando chegámos enlaçados a Teton Pass, sorri para ti e tu retribuíste, orgulhosa ou envergonhada…percebeste que o meu sorriso era de orgulho e satisfação por ter passado no teu teste, impiedoso mas justo! Já sei, já sei que ainda não conquistei o teu coração. Já sei que tens inúmeros segredos para me contar ao longo dos próximos tempos. Que este foi apenas mais um – o mais difícil até agora, mas também por isso o mais saboroso! E o nosso pacto é para cumprir: levas-me até ao “fim do mundo” e eu ouço os teus segredos mais ousados e aceito os teus desmandos e regras sem protesto!
Mas isso foi amanhã. Hoje, estrada, foste meiga. O vento esqueceu-se de respirar – espero que não se extinga… o sol nem pestaneja, não vá escapar-lhe algum ínfimo pormenor cá em baixo, o céu deve estar triste sem a companhia da menor das nuvens com que passa os dias a fazer desenhos irreais, as nuvens, essas devem ter sido chamadas de emergência para uma reunião de alto nível, esperemos que nos antípodas e demoradamente. Os pinheiros observam-se nos olhos – talvez se namorem, ou enamorem, em silêncio. Ou talvez façam apenas a fotossíntese que o seu código genético lhes manda…ou talvez velem pelas plantas e flores que se exibem a seus pés. As verdes da juventude, aguardam em ânsia viçosas a vez de passarem a amarelas. As amarelas, pacientemente e maduras, aguardam os pigmentos vermelhos da vida e da morte, do fogo e do gelo. As vermelhas resistem ao castanho da morte e à esperança da ressurreição da estação seguinte. E eu, apesar de uma molécula cósmica naquela simbiose, sinto-me estranho, indesejado, intruso, incapaz de entender ou sequer sentir a grandeza e perfeição onde tu, estrada, me conduziste. Sim, a culpa é tua, porque tu vês, conheces e sabes tudo, pois estás em todo o lado. Mas eu não, eu vou apenas onde me levas e não tenho capacidade, nem conhecimento nem grandeza de Alma ou de Saber para poder apreender, ou sequer compreender, o que me mostras. E isto custa muito mais do que passar o Teton Pass amanhã…
E depois levas-me por trilhos secretos, se calhar ilegais mesmo, e mandas-me abrir os olhos e ver. E eu, que já ia de olhos dilatados, como posso ver mais ainda!? Como posso captar com o olhar do corpo a grandeza da Teton Mountain, ou sequer das suas filhas Moran Mountain e outras anónimas a seus pés, se mergulham pela cintura nos lagos de água verdes – chamas-lhes outros nomes: esmeralda, jade, turquesa, azul, mas sei lá se falas verdade, pois nunca estudei a ciência das cores…mas rendo-me ao teu argumento: se fossem apenas verdes, então eram iguais todas as águas em todos os lagos…

String Lake
oh, e como se não bastasse, pintam-lhe as margens com os mesmos motivos, cores e flores que bebemos ao longo do dia e até no fundo das águas dispuseram trocos, seixos, areia e cristais por onde se passeiam pequenos peixes solitários e com ar hesitante.

Jenny Lake

Jenny lake

Mas agora, estrada, é a minha vez de brilhar. Reparaste quando chegámos a Jenny Lake? Enquanto almoçava num banco discreto, à sobra da “grocery”, ao lado da Dampster, quantas pessoas vieram ter comigo, faziam perguntas e exclamavam AH! quando eu dizia coisas simples como ter partido de Inuvik, no norte do Canadá, há seis semanas, ter atravessado todo o país, visitado o Yellowstone e o Teton National Park e estar a caminho de San Francisco, mas com os olhos postos no Ushuaia, apenas com a Dampster e 55 quilos na bagagem, ao longo de mais de cinco mil quilómetros, perdão, três mil e duzentas milhas. Acho que te roías de inveja…mas bonito foi mesmo quando o Bill (pai), o Mat (filho) e o Wes (amigo) – os três, em bicicleta de estrada, tinham estado a participar numa corrida – vieram ter comigo e, ao ouvirem a mesma estória simples, me abraçavam, apertavam as mãos, pediam para tirar fotos comigo, como se eu fosse mais do que eu…e depois deram-me as barras energéticas que tinham e ficaram a ver-me partir como se fosse mais do que eu…

Família de ciclistas
E ao fim do dia – sim porque pode mesmo haver dias assim, e não ser tudo inventado aqui, num local que ainda não vou revelar… – na recepção do Gras Ventre Campground, conheço o Steve e a Jennie. Pegava no envelope para fazer o self-registration e já o Steve me perguntavam: “De onde és e para onde vais?” e eu respondia com paciência e satisfação, dando o nome do blog, apesar de estar em português... E dava as primeiras pedaladas à procura de um sítio para acampar e ouço a voz do Steve: “Luís, Luís!” Parei e ele continuou: “Porque é que não acampas nas traseiras do nosso sítio? Afinal temos apenas uma pequena auto caravana, não utilizamos o espaço todo a que temos direito e poupas o dinheiro do campismo”. E a Jennie olhava para mim a incentivar um “sim” com o olhar brilhante – ou assim o vi.
Depois de montar a tenda – sempre a primeira coisa que faço – cruzei os duzentos metros de freixos(?), choupos(?) dourados até chegar ao rio, onde me refresquei mais do que lavei. Regressava e vi o Steve a ir da minha tenda para a caravana…chamei-o e ele voltou atrás. Trazia um copo grande de sangue de maçã morno que me estendeu juntamente com um “afinal és um excelente fotógrafo Sir” – assim mesmo: “Sir”! E eu, ainda espantado e confuso, pergunto-lhe: não sou nada, mas como é que sabe!? E ele: Acabei de ver o teu blog!! Fiquei sem palavras…
Preparava eu o jantar e já ambos saiam para ir passear os cães (têm dois…) E escolheram ir pelas “traseiras”, passar por mim e surpreenderem-me de novo. Agora a Jennie, diz-me: “então era um hambúrguer e não um bife! Que pena!” E eu de novo aparvalhado: então esteve a ver o blog e até percebeu a estória da minha decepção com o jantar em Seeley lake!! E ficámos a conversar e a rir…

Gras Ventre CG

Jackson

A cabine Elk 36
E hoje, que ontem era amanhã, está contado e narrado ontem, mas continua e acaba hoje…
Teton Pass deita-se longamente e mergulha em Teton Valley. Entardece rapidamente e mais depressa ainda porque os montes raptam o sol, mal se descuida e espreguiça na linha do horizonte. Hesito entre campismo selvagem e dois parques que se sucedem antes de Victor, a primeira pequena povoação deste lado da fronteira do Idhao. Deixo-me embalar e enlevar pela velocidade, passo o povoado, viro em direcção a Idaho Falls e, quando começo a perscrutar um local aprazível para acampar, surge uma placa a indicar “Teton Valley Campgrond”. Tem um ar tão acolhedor e aprazível, uma localização tão idílica (esta é mesmo a provocar!!) que acabaram as hesitações e preocupações orçamentais. Dirijo-me à recepção e o simpático dono olha para mim, para a bicicleta e expõe a coisa assim: “quer um lugar para acampar, para montar a tenda por uma noite?” E eu digo que sim, que é apenas isso de que necessito, um pequeno espaço para montar a tenda. E ele retorque: “ok, mas eu tenho “cabins” livres e pelo mesmo preço, dou-lhe uma… Ali, a Elk 36, está bem”? E eu, “está óptima, muito obrigado, é muito simpático… vai ser a primeira vez em quase dois meses que não durmo na tenda mas numa cama!!”. E então lá veio a estória e o repetido “great adventure” dele…

Teton Valley campground


Teton Valley campground
E foi nestes fantásticos 12 metros quadrados que senti uma enorme vontade de escrever a minha “ode” à “estrada”, a todas as estradas que me trouxeram até aqui, que tiveram nomes ou números, mas a quem devo os dias bem vividos – ok, admitamos, felizes mesmo – que passei…

Teton Scenic Byway
Para começar bem o dia estava, estava anunciado no mapa mais um Pass – palavra horrível para um ciclista, pois é sinónimo de montanha empinada… - desta vez o Pine Creek. Abreviemos, este Pass nem primo chega a ser do Teton: cinco kms a 5% de inclinação não chegam a dar para aquecer…
Depois do Pine Creek Pass a estrada segue por um vale fechado onde apenas cabe a estrada e um ribeiro e ladeado das cores emergentes de Outono, onde o ouro e o jade se misturam. Mesmo as encostas, mais secas e agrestes, vão soltando labaredas fugazes de vermelhos intensos. Poupo os kms e deixo-me embalar cantarolando Zeca, uma música que fala de pássaros que “voam alto”… “com bicos rosa”…”nuvens desfeitas”? Só sei trautear – a letra, infelizmente, está esquecida.

Teton Scenic Byway
E o vale de repente abre-se a uma enorme clareira de trigo dourado. Até Swan Valley a estrada ondula com as searas de trigo. E Swan Valley traz no ventre o Snake River, de águas verdes e transparentes, correndo com força à sombra das ainda tímidas cores do Outono. Nada melhor que a margem esquerda para almoçar…


Teton Scenic Byway
A partir daqui, é plana e rectilínea a estrada e infinitos os trigais. Partilham o universo com o céu azul e nada mais…

SnakeRiver

A caminho de Idhao Falls
Idaho Falls pareceu-me demasiado horrível para sequer abrandar…prossegui pela estrada 91 e pernoitei no parque de Sheley, um enorme e aprazível relvado, com casas de banho, água quente, e tudo para mim, pois só havia duas ou três auto-caravanas noutra ponta do parque.

Sheley Campground
The Ghost
Pedalava distraído, entregue aos pensamentos de viajante, quando algo me saltou ao canto do olho, abanando-me os sentidos e obrigando-me a virar a cabeça para trás.
Poderia ser apenas um homem com o seu cortador de relva a aparar o jardim. Mas a casa não era casa, o jardim não era jardim e a relva não era relva. Apenas o homem parecia ser um homem e não havia dúvida, mais não fosse pelo barulho, que utilizava com um cortador de relva barulhento.
O cérebro trabalhava rapidamente. Tinha de voltar atrás, sentia-me irresistivelmente puxado para trás. Travei já umas dezenas de metros adiante, dei meia volta, atravessei a estrada e aproximei-me lentamente. Voltei a atravessar a estrada mesmo em frente ao homem, que levantou os olhos para mim e parou de imediato o cortador de relva. Era alto e magro, com ar elegante, praticamente branca, cabelo comprido que se confundia com a barba, boné na cabeça e óculos. Olhou-me com ar interrogador e a única coisa que me ocorreu foi perguntar-lhe se Blackfoot era muito longe. Caminhou para mim – parecia satisfeito por ter um motivo para interromper o que estava a fazer – e disse-me que não: “aí 8 milhas, ou menos”. Olhei para a casa, cercada, com ar decadente mas com “algo” que a fazia parecer diferente, e perguntei-lhe se morava ali. Soltou uma enorme gargalhada teatral e disse que sim. Eu disse que me parecia uma casa especial, diferente das outras. E ele respondeu que foi construída nos anos de 1850, como central de reservas e apoio para a companhia Ponny Express, que tinha ali um entreposto. Nos anos 20 do século passado tinha sido uma igreja Mórmon e nos anos 40 escola secundária. E agora…, continuei eu. E ele concluiu, por entre a mais sonora das gargalhadas: “now is the ghost’s house”. Então estou a falar com o “fantasma”, perguntei a rir? É como me chamam para aí…AH! AH! AH! AH!...Estendi-lhe a mão e apresentei-me: “I’m Luís, from Portugal” e ele estendeu-me a mão macia, quase delicada (a minha avó diria mãos de médico…), magra e dedos muito longos, e manteve “I’m the Ghost, from here”. Propus-lhe que tirássemos uma fotografia, pois era o primeiro americano que via com uma barba maior que a minha! Quase me assustei com a gargalhada!! Disse que desde que tinha sido despedido – há dois anos – nunca mais tinha cortado a barba nem o cabelo, rematando, enquanto lançava o olhar por cima da cerca, “my piggs don’t care”. E nova gargalha, neste caso conjunta. Perguntou-a idade, e concluiu que tenho menos onze anos que ele. Por entre outras dissertações, quando falávamos da minha viagem, disse-me que 98% das pessoas eram boas…só 2%, ou menos, eram más…

The Ghoast
Despedimo-nos com um sorriso e uma palmada afectuosa nas costas, e recomeçou a inventar relva para cortar com o seu ruidoso e decadente cortador…
…Ia a vinte ou trinta metros e ouvi-o gritar: I’am Ralph! Ralph, ok!? Com o olhar nublado, e sem olhar para trás, ergui a mão direita bem acima da cabeça com o polgar esticado...
Durante muitos kms pedalamos os três num só...
Parei em Blackfoot. O barulho na transmissão é agora regular e persistente e quero encontrar uma oficina para resolver isto, espero que por pouco dinheiro, desta vez. Passava muito lentamente no cruzamento de duas ruas interiores, olhando para todos os lados à procura duma eventual loja de bikes, e a Mary, cinquentona bem avançada, plantada de braços cruzados, diz-me se não quero almoçar ali – ali, é o passeio em cuja esquina o Jonh acaba de montar o seu “estaminé” ambulante e se prepara para servir refeições… nos quatro cantos do cruzamento estão umas placas amovíveis de madeira, pintadas com produtos agrícolas e anunciando o “local market farmer”. Parei, olhei para ambos e perguntei o que é que serviam para almoço. O Jonh disse que hoje era cozinha mediterrânea especial. Perguntei o preço e ele, se queria sanduíche ou prato. O prato eram 8 dólares… perguntei ainda se havia uma loja de bicicletas na vila. Era a 50 metros, do outro lado da rua. Então combinei que ia primeiro à loja e depois voltava. Enquanto me viam a bicicleta eu almoçaria…
O Jonh é Arménio e vive há 30 anos nos EU…toda a família emigrou. Digo-lhe que tenho muita fome e como muito e ele promete-me um almoço especial. Como sou o único cliente, falamos enquanto vai tirando os pimentos amarelos, verdes e vermelhos do grelhador a gás, coloca a carne picada do típico “xistaouque” (as espetadas finas de carne de borrego, típicas do mediterrâneo sul, e dos árabes em particular), um peito e uma perna de frango. Prepara numa grande caixa/prato um puré delicioso, pimentos, a carne, mais uma pasta vermelha à base de pimentos grelados e ainda – como disse que gostava de picante – um pimento picante! Tudo complementado com o pão árabe/mediterrâneo…
Sentei-me num banco “de jardim” que estava na esquina e comecei a degustar as iguarias e o Jonh olhava-me interrogativo. Foi sem favor nem cerimónia que lhe disse que estava uma delícia… estava mesmo. Os sabores e aromas do Líbano, do mediterrâneo – apesar de ele ser arménio – passavam com distinção…e nem dois minutos volvidos, já havia uma mesa e cadeiras para o meu repasto. E no fim já éramos quatro para a fotografia…

Entre amigos
Que interessa hoje que o mecânico de bicicletas fosse um rapaz dedicado, simpático e voluntarioso, mas que não percebesse nada do ofício!? É verdade que lavou impecavelmente a bicicleta, especialmente o mais difícil: corrente, cassete, pedaleiras; afinou os travões e deixou-a num brinco…por fora! O problema da transmissão é que nem conseguia – ou queria – identificá-lo…Disse que não era nada, eu insisti e ele disse para lhe dar 5 dólares, mas como só tinha 4 para o troco, ficou com seis por entre desculpas e agradecimentos!!


Seagull campground

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Yellowstone e arrabaldes

Yellowstonw e arrbaldes!

Também em Emigrant há um provérbio do meu agrado: “se não gostas do tempo, espera cinco minutos”. Pelo menos foi o que me disse a simpática dona do “mini-quiosque” em frente ao “meu quintal”. Pois é, quem sabe, sabe, quem não sabe fica a saber. Parece haver uma certa separação de “negócios” aqui pelas Américas. O Old Saloon vende bebida e comida ligeira, mas não vende café, capuccino, chocolate quente, chá – essas bebidas softs e delicadas. Isto parece ser uma oportunidade de negócio para o pequeno quiosque, com menos de seis metros quadrados, vinte metros ao lado. Com o frio que fazia às 7h30 da manhã, decidi acompanhar o pequeno-almoço com um chocolate quente e assim fiquei a saber que as previsões para os próximos dias eram de bom tempo.


Emigrant
Àquela hora, os únicos seres vivos por ali eram mesmo as donas do Saloon e do quiosque e eu. Reunimo-nos os três na rua, eu a tomar o pequeno-almoço, a dona do Saloon a fumar compulsivamente e a do quiosque sorria e falava. Falava daquele vale frio e de tempo incerto, onde as montanhas em frente nunca largam totalmente o manto branco com que se cobrem. Do vento gelado que desce normalmente de Yellowstone e fustiga o vale. Dos vizinhos rancheiros e trabalhadores, que passam todos os dias, nem que seja só para ajudar ao negócio. Dos fins-de-semana de verão em que há cantorias à noite no Saloon. Dos hábitos modernos, em que muitos dos clientes não saem do carro…pegam no copo de café e seguem. Dos turistas que passam de enfiada mas raramente param: “só se for nas bombas de gasolina”. E de quanto gosta de tudo aquilo do seu quiosque de ar frágil, em tons vermelhos, a contracenar com a imponente natureza.

Público entusiasmado
Comecei a pedalar eram oito e picos…na verdade tinha esperança que a manhã fosse menos ventosa que a tarde anterior e chegar rapidamente a Gardiner. E parece que começo a apanhar o jeito da meteorologia, ou então a sorte continua a pedalar comigo. A manhã estava gelada mas não corria qualquer aragem. Pedalava com os olhos postos num e noutro lado da estrada, procurando não perder pitada da paisagem forte. Apesar das montanhas envolventes e de esperar a qualquer momento o início da subida, a estrada segue em terreno plano, à ilharga do Yellowstone, rio de pequena dimensão para tão distinta fama. Os ranchos são ralos, o que indiciam grande dimensão…kms e kms a pedalar e sempre o mesmo nome.
Os cerca de 40 kms até Gardiner passam num ápice e sem a subida esperada...
Gardiner dizem ser uma das mais discretas entradas no parque. Foi aí que o Roosevelt, em 1872, fez o discurso oficial de inauguração do parque, mas ainda assim a povoação é discreta, pequena, de edifícios baixos em madeira. Claro, praticamente toda a actividade é direccionada para o turismo…
A primeira boa surpresa é que a entrada no parque tem desconto para ciclistas: em vez dos 25 $ habituais, só pago 12$.
A velocidade de circulação automóvel é baixa (35 milhas, normalmente) e apesar do parque estar bastante lotado, a estrada ser estreita e ter muitas curvas, sinto-me rei da estrada, tal o respeito e cuidado dos automobilistas. Pouco depois de entrar no parque, surge uma placa indicando o paralelo 45º norte, exactamente a meio entre o Pólo Norte e o Equador! e fez correr o sangue mais depressa no meu corpo…estou num ponto simbólico, que terá algo a ver comigo e com a minha viagem, acho.

Elks pastando
Agora sim, a subida começa a acentuar-se e os cerca de 8 kms de Gardiner a Mammouth Hot Springs, são uma boa introdução aos próximos capítulos…
Em Mammouth é só turismo e turistas. Por mim, almocei tranquilamente as minhas sanduíches num belo relvado, ao sol, e com vista para as “springs”. Depois fui ao centro de informações e o mais importante que obtive, para além do mapa detalhado do parque, foi, na expressão apreensiva do empregado, “se está de bicicleta, tem de saber que este é o ponto mais baixo do parque! Portanto, para onde quer que vá, é sempre a subir”.
Assim sendo, não havia que enganar: estava a 6200 pés, e todo o parque se situava acima dos 7000, o mais das vezes cerca dos 7800 (façam alguma coisa e vejam quantos metros são…sempre mais de 2000 metros).

Hot Springs
As Hot Springs têm alguns locais de grande beleza… com variedade de cores, odores, texturas do solo, reflexos. É uma zona altamente vulcânica, com todo o mistério, a força, imprevisibilidade e violência que as caracteriza. Em poucos metros quadrados, o solo passa do amarelo enxofre ao torrado, do branco-cal ao verde jade, do azul-turquesa ao vermelho, ao ocre e à ferrugem, numa sinfonia de cores, odores e fumarolas que nos prendem o olhar e os sentidos.

Hot Springs "superiores"
Pretendia pernoitar em Indian Creek, o parque de campismo seguinte, que presumi mais recatado e discreto que Mammouth. Mas para lá chegar tinha um longo desafio pela frente: subir o Bunsen Canyon, umas centenas de metros quase a “pique”. Subir não me assusta. Estou preparado física e mentalmente. Mas no canyon…que tem um declive de respeito, após uma curva apertada, parece que alguém esqueceu de fechar a porta e fui atacado de repente por uma legião de inimigos: rajadas de vento forte disparadas pela estreita passagem, quase visíveis, palpáveis, físicas; chuva gelada de gotas enormes que pareciam perfurar a pele, rapidamente deram lugar a granizo. Mal tive tempo de me “jogar” para a berma, procurando uma saliência na parede rochosa onde pudesse “proteger-me da maior” e preparar a indumentária de tempestade.
Mas tal como previa o provérbio da manhã, cinco minutos depois (talvez um pouco mais) e tudo parecia ter sido um sonho. O sol chegava a brilha, ainda que a medo e fugazmente.
E para melhorar ainda mais, após os cinco minutos de intempérie, seguiu-se o Swan Flat. Uma planície de vários kms ao longo do lago, que me proporcionou o primeiro encontro com um bisonte. Estava adiante, a 20 metros da estrada, do lado oposto ao meu. E estavam dois carros parados a observarem-no. Quando me aproximei, os carros seguiram viagem e fiquei eu só e o mastodonte a olhar-me de frente, cabeça levantada, ar sério e de poucos amigos. Confesso que o medo foi maior que a vontade de o fotografar de frente. Não parei, não fiz o menor gesto, continuei a pedalar ao mesmo ritmo, mas sempre a olhar para ele pelo canto do olho…só quando cheguei às imediações de umas árvores, adiante, é que tive coragem para parar, tirar a máquina e fazer uma foto lateral…
No parque de campismo tive outra agradável surpresa: havia locais reservados para ciclistas e a preço reduzido: 5$!!

Afinal os prognósticos sobre a temperatura eram verdadeiros: durante a noite a água atingiu o ponto de congelamento…de manhã, a mesa de pic-nic, os alforges e tudo o que tinha alguma película pequena de água, estava congelado. E finalmente recorri às meias de lã, às calças de licra e às luvas “especiais”. Impressionante eram os miúdos que brincavam e pulavam por todo o lado, sem luvas, e não pareciam ter frio!!
Bem agasalhado, pelo menos para o meu hábito, comecei a pedalar estavam para aí 6 graus. Ao sol, a temperatura até á sofrível, mas a estrada é ladeada de pinheiros altos e só pelas 10 horas é que o astro maior me olha, e mesmo assim acho que só a nuca …antes disso já tinha tido o meu segundo encontro com um bisonte. Agora sem medos nem cálculos. Ele devorava a erva, sem denotar qualquer outra preocupação ou mesmo parecer notar a minha presença, e eu fui fotografando cada ângulo, até perceber que já estava a repetir tudo várias vezes…



Bisonte com fome
Até Norris, eram fumarolas e mais fumarolas e a estrada plana e fria, sem vento nem adversidades. Só eu com o meu silêncio, os meus pensamentos e os meus olhares em segredo.
A principal atracção de Norris são os Geysers e os lagos por eles formados, vapor, jactos de água, chuveiradas, cheiros, cores, texturas, odores, numa sinfonia inacabada, sempre em mutação. Têm nomes sugestivos: a marble basin, black basin, emerald, etc.

Norris - Marbel basin



Norris - Emerald spring

Depois de Norris segui para Canyon Village. Como o nome deixa adivinhar, mesmo aos mais distraídos, é onde o Yellow river se precipita nas mais vistosas cascatas, até mergulhar num vale profundo que foi escavando ao longo de milhões de anos, para deleite dos humanos serôdios que o contemplam e devassam de todos os ângulos e perspectivas.
O Canyon divide-se no North Rim e South Rim. O North, mais próximo da aldeia, é mais espectacular, com o rio a não ser mais que uma linha de água quase invisível, contorcendo-se nas profundezas do leito onde escorre.


Canyon Village
Já o South, sendo menos imponente, é embelezado pela queda de água que mergulha com estrondo no vale cavado. A vista mais procurada é a “artist view” e deve ser justo o nome. Mas a horas em que a luz seja mais suave e artística…
Prossegui para a mais bela surpresa do dia…a estrada agora seguia lado a lado com o rio, num declive suave e cores outonais. Patos aos magotes preguiçam e brincam no rio, por vezes em posições algo eróticas. O rio é agora de um azul condensado, opaco, quase parece gelatina, em contraste com o dourado da vegetação onde se deita e deleita…Adiante, no topo de uma colina, está um magote inusual de gente. Todos armados: uns de binóculos, outros teleobjectivas, outros apenas com máquinas de filmar ou pequenas câmaras fotográficas. Aproximei-me e espreitei…mudei a lente para a de maior zoom – ainda assim, fracote – e pareceu-me ver naquele ponto negro que se deslocava lentamente, o andar de um urso. E comentei a meia voz: é um urso… e logo o eco esperado se vez ouvir a meu lado: sim, é um urso. Era um casal de holandeses com uns binóculos potentes que ele, simpaticamente, me ofereceu para eu ver. Aí eu rematei: e é um Grizzly! O holandês disse que não, que era Brown ou Black, mas eu já tinha visto Browns e Blacks e este era diferente. Tinha de ser um Grizzly… Daí a pouco alguém ao lado confirmava que era mesmo um Grizzly!


GRIZZLY
Então cruzei eu o Canadá para vir aqui ao encontro do meu Grizzly!! Foi uma excitação. O urso continuava no seu ritmo, em direcção ao rio. Mergulhou no rio, atravessou-o, saiu na outra margem e continuou a caminhar. Aí, deixei os holandeses, pego na bicicleta e volto para trás à pressa. De certeza que ele ia atravessar a estrada. Havia um pequeno cabeço entre o rio e a estrada e por momentos deixei de o ver. Apesar dos avisos na estrada para não saírem dos carros e para não estacionarem, o caos era total. Já íamos mais de uma ou duas dezenas procurando adivinhar o caminho que o urso tomava. E ele aí vinha, sempre no mesmo passo, pescoço estendido e andar pausado. As máquinas não paravam de disparar. A minha também não…até ele atravessar a estrada e desaparecer do outro lado, com total indiferença…quem me dera ter ali uma lente de jeito…
Depois deste momento, pouco me interessava o resto do dia…pedalei até Yellowstone Lake e acampei em Bridge Bay.

Toda a manhã pedalei nas imediações do lago. As águas são de um azul intenso e a estrada umas vezes quase o toca outras afasta-se, interpondo-se uma mancha de pinheiros. A outra margem é povoada por uma cordilheira de picos nevados. A estrada é plana e de curvas sinuosa. Abundam as pic-nic áreas e os carreiros para o lago. As vistas parecem ser todas diferentes mas se calhar é apenas o nosso olhar…
Pouco antes de Grant Village, surge West Thumb, nova zona de grande actividade vulcânica. E se em Norris a s cores das águas já pareciam uma provocação da natureza à nossa capacidade de discernir e adjectivar as cores, então aqui juntam-se as formas de cada lago…

West thumb
Passo um par de horas a passear, a cheirar, a tentar captar o intangível, a extasiar-me como colorido e a pensar quantos segredos e quão poderosa é a mãe natureza…

West thumb

West thumb

West thumb

West thumb
Almoço em Grant Village e prossigo para sul. Ainda equacionei ir ver o mais famoso Geyser do parque e, ao que parece, o terceiro maior do mundo, mas tinha de fazer 54 kns (ida e volta) pelo que decidi retomar a rota para sul.
Pouco depois surge a “continental divide” a 7988 pés. A partir daqui, as águas correm para o pacífico de novo. E os kms seguintes, até deixar o Yellowstonw e entrar no Grand Toten National Parque, foi uma descida alucinante, à ilharga dos Lewis river.
Pernoitei em Colter Bay, nas imediações do Jackson lake.