quinta-feira, 5 de maio de 2011

Peru I - de La Balsa a Leimebamba

Peru, de la Balsa a Leimebamba

Depois de uma manhã tão sofrida quanto arrebatadora, cruzando as derradeiras encostas do Equador, de Zumba a la Chonta, uma descida louca, com piso muito pedregoso, curvas apertadas e declive a condizer, leva-nos a la Balsa, na fronteira peruana.
Do cimo da encosta avista-se, no fundo do precipício, uma mão-cheia de casas separadas pelo rio Blanco e ligadas pela inevitável ponte “internacional”.
A 200 ou 300 metros do fim da descida, e do posto fronteiriço, a roda da frente fura, vazando instantaneamente. O péssimo piso, o declive brutal, o afluxo de peso à frente e o desgaste dos travões de trás, que quase não travam, acabam por castigar em demasia a frente da bicicleta e o resultado acabou por aparecer com a “meta à vista”. Fico particularmente aborrecido por ser tão perto do fim da descida, e decido fazer os últimos metros com a Dempster pela mão, até ao posto fronteiriço.
Sob o sorriso irónico do Luís, que parece ter pneus e câmaras-de-ar à prova de bala, desmonto a tralha e remendo o último furo no Equador.
Carimbada a saída do Equador, cruzo o rio e aterro no Peru. No posto aduaneiro, o funcionário aponta para outra porta, a uns 15 metros, como sendo a da imigração. Dirijo-me lá, mas no pequeno cubículo de madeira não está ninguém. Volto à aduana e o empregado esclarece-me que o funcionário deve estar a dormir a “siesta”, após o almoço. Pergunto a que horas reabre o posto e, com ar hesitante, diz-me que deve ser pelas 15h30. Pouco passa do meio-dia e a espera avizinha-se demasiado longa. Perante a minha imobilidade e apreensão, diz-me qual a casa do senhor Pepito e decido ir chamá-lo. Bato à porta, chamo pela janela entreaberta, afasto-me e grito o nome com mais força. Na realidade preciso que o senhor Pepito acorde, mas acorde bem disposto, pois caso contrário, pode ser pior a emenda que o soneto… Apesar do meu alarido, não há sinal de Pepito. Uma vizinha veio à porta e disse-me que ele estava a almoçar no restaurante da esquina. Lá fui em busca do importante funcionário, mas nada. Já tinha almoçado e ido para casa, concluiu a sisuda proprietária.
Não havia como arrancar o senhor Pepito da sua profunda siesta, pelo que decidimos almoçar também… Felizmente por volta das 2 horas lá apareceu o funcionário da imigração, calmo e pachorrento, naquela quente terra de ninguém.

Entrámos no Peru sob o sol quente do meio da tarde

Trâmites resolvidos, estômago aconchegado e alguns soles (a moeda do Peru) no bolso, regressámos à estrada, de terra, sob o sol quente do meio da tarde.
À saída do diminuto povoado de Namballe, quando a estrada começa a subir um pouco mais, o pequeno Juan Isidro, de 11 anos, e a irmã Maria, de 6, juntam-se a nós. Apesar do tamanho e da idade, vêm ambos montados numa bicicleta quase do tamanho das nossas. O Juan pedala com esforço, umas vezes em crencos, outras sentado no selim, e a irmã sentada no suporte metálico. O percurso de casa para escola, é quase sempre a descer, mas o regresso é duro, seja pelo declive, pelo calor ou pela chuva, pois durante o ano apanha de tudo. Quando a estrada é demasiado inclinada, a Maria tem mesmo de desmontar e corre ao lado do irmão, que continua, firme, a pedalar. Quando surge um troço mais plano, a Maria volta a empoleirar-se na bicicleta e, ambos de mochila às costas, seguem devagar. Quando pergunto ao Juan se gosta mais da escola ou da bicicleta, não hesita em responder “escola”, mas uma pausa depois, diz que gosta muito das “duas”.

Juan Isidro e a irmã Maria

De olhos semi-cerados, boné com a pala para trás e pequenas gotículas de suor a brilharem no nariz e buço, prossegue lado a lado com o Luís, com quem mantém uma conversa impressionantemente fluente e “madura”. Entretanto pára um carro. Vai para longe, para San Ignacio, mas faz este trajecto várias vezes, conhece os miúdos e dá boleias… A Maria esgueira-se para o assento de trás, o irmão passa-lhe a mochila dele e vemo-la desaparecer rapidamente no carro branco. Nós, só quase uma hora mais tarde chegamos à casa de adobe, perdida junto à estrada. A Maria, com as duas pequenas tranças de cabelo negro atadas com laços brancos e um sorriso alegre no rosto, espera o irmão à porta…
A subida prolongou-se por mais tempo que o mapa fazia prever. O dia, com a forçada pausa fronteiriça, reduziu-se mais que o habitual. San Ignacio parecia afastar-se irremediavelmente de nós… praticamente não havia povoados e os que surgiam à ilharga da estrada, eram de uma pobreza e abandono tocantes, difíceis de imaginar, com minúsculas casas de terra onde, surpreendentemente, assomavam várias pessoas. Porcos amarrados por pequenas cordas ao pescoço, revolvem a terra, paredes-meias com as “casas”; galinhas entram e saem pelas portas abertas; cães esquálidos coçam-se freneticamente.

À espera…

Situado num vale verdejante, rodeado de árvores e encostas densamente povoadas de cafezeiros escuros – o principal meio de subsistência de todos os seus habitantes, como nos dirá o Ronal, ao jantar – Puerto de San António parece um pouco maior. No início da povoação perguntamos se há alguma espécie de alojamento na aldeia e dizem-nos que sim, apontando para adiante, na única rua que constitui o povoado. Volvidas escassas centenas de metros, voltamos a perguntar e a reposta é oposta: que não, não há nada, só em San Ignacio. Prosseguimos, fazendo contas de cabeça à enorme subida que nos espera, a juntar a mais uns vinte ou trinta quilómetros. O dia escurecerá rapidamente e é certo que não conseguiremos chegar a San Ignacio. Estão duas ou três mulheres à beira do caminho e o Luís repete a pergunta: se não há nenhuma espécie de alojamento na aldeia, algum sítio simples onde possamos pernoitar. Uma das mulheres diz que sim, lá atrás junto à igreja, exactamente onde nos tinham dito que não… parecia que estavam a brincar connosco, mas lá voltámos atrás e perguntámos, desta vez a um velhote que estava à varanda. Apontou para baixo, para a porta entreaberta, onde nos intrometemos. Acanhada, envergonhada, tímida, a Betty disse que talvez pudéssemos pernoitar lá, mas teríamos de esperar ½ hora pelo marido.
O Ronal chegou e, também um pouco inibido, lá disse que sim, que se arranjava um quarto com duas camas, ou dois quartos se preferíssemos. O que queríamos mesmo era um tecto e, se possível, um duche – quente ou frio, já não fazia diferença. As camas tiveram de ser montadas, um colchão surgiu de uma qualquer porta vizinha, mal sobrava espaço para um ou dois alforges no quarto, o tecto era de chapa ondulada, as paredes de adobe, alguns insectos planavam pelo espaço, o duche era frio. Ainda assim, estou seguro que tivemos dos melhores alojamentos da aldeia – e de muitas aldeias em redor. E o jantar também: luxuoso frango estufado com arroz…
Em boa hora conseguimos pernoitar em San António, pois só chegámos a San Ignacio pela hora de almoço do dia seguinte, depois de uma longa manhã à chuva, pela estrada enlameada e predominantemente a subir…
Necessitávamos levantar soles, mas o único multibanco foi rebentado numa manifestação recente e ainda não o repararam nem substituíram. A alternativa era rapar o resto dos dólares e recorrer a umas lojas de electrodomésticos que cambiam moeda…

Alunos em San Ignacio

Pouco depois de San Ignacio, ao fim de vários dias de dura montanha, a paisagem muda significativamente. A estrada conduz-nos ao rio Chinchipe, nas fraldas da amazónia peruana, ao longo de intermináveis campos de arroz, umas vezes exíguas parcelas encravadas no vale estreito, outras vezes perdendo-se no horizonte, onde esbarram no sopé de uma qualquer omnipresente cordilheira distante.


Plantando arroz, no vale do rio Chinchipe

Depois da particular dureza dos últimos dias – ou semanas, já nem sei – é quase inebriante a sensação de pedalar na planície, levemente descendente, rolar sem esforço, ver a paisagem deslizar depressa e ficar para trás, respirar suavemente… tomo consciência de como são diferentes as sensações físicas e espirituais nos percursos agressivos e desgastantes da feroz montanha e na suave planície – é como contrapor a indómita tempestade à serena bonança, em que a carga de adrenalina atinge o auge, quase explodindo no corpo, e depois se esvai suavemente, deixando-nos flutuando na leveza do vazio, da ausência...


Deslizando pelo suave declive do vale

Mas se a estrada é descendente e o vale verde-desmaiado dos campos de arroz, não nos iludamos quanto ao local onde estamos. De paredes umas vezes íngremes, outras com declives mais moderados, a montanha domina e predomina, observando do alto, ameaçadora, conduzindo o rio caudaloso, de águas castanhas, por curvas apertadas. De quando em vez surgem pequenos povoados nas margens. Quando se localizam na margem esquerda, curiosas “gaiolas” de madeira, suspensas por um cabo de aço amarrado em ambas as margens, fazem a travessia de passageiros e mercadorias, pois pontes é coisa demasiado fina. Não raras vezes, avistam-se casas isoladas na margem esquerda, dispondo do mesmo sistema de travessia…

Gaiolas para atravessar o Chinchipe

Jaén fica demasiado longe para arriscar atingi-la numa só jornada. Mesmo Tamborapa, que garantem ter alojamento, parece difícil de alcançar. Perico apresenta-se como a melhor opção para pernoitar. Dizem existir uma casa que aluga quartos, mas o senhor Chato só deve chegar pelo lusco-fusco. Duas miúdas simpáticas conduzem-nos a uma outra casa que também deveria arrendar “habitaciones”, mas a senhora hesita demasiado e resiste “até à última” em alugar um quarto. Quando vemos o espaço, percebe-se porquê: não é um quarto, é um cubículo mínimo, com quatro paredes e uma porta, nada mais. Nem sequer há duche (individual ou partilhado, tanto faria…). Decidimos esperar pelo senhor chato, mas entretanto dizem-nos que o alcaide empresta as instalações públicas para pernoitar. Como também ele está ausente, resta-nos esperar, em amena cavaqueira com os miúdos e graúdos da rua, que se vão juntando em redor das bicicletas.

As nossas guias em Perico

Anoitece e o alcaide é o primeiro a chegar. Também ele hesita em ceder o espaço, porque “não tem condições”. Digo-lhe que o que necessitamos é um tecto e um duche e ele conclui, algo envergonhado, que não há duche, recomendando-nos que fiquemos num quarto do senhor Chato, onde há todas as condições. Lá vamos à procura do senhor Chato, sempre em procissão com vários miúdos e as duas gaiatas “à cabeça”. O senhor Chato já chegou, mas também ele não parece entusiasmado com a ideia de nos alugar um quarto. Afinal não há água na aldeia – daí ninguém ter duche… Perante a nossa insistência e desânimo, lá se resolveu a ceder-nos o rés-do-chão da tal casa onde aluga quartos. É um espaço amplo, sem vidros nas janelas de grades metálicas. Nas imediações há uma casa de banho sombria e esconsa, debaixo das escadas, e quando nos preparávamos para recorrer ao sistema de baldes de água para o duche, eis que surgiu água na torneira!
O jantar foi mais ou menos na mesma linha, no “restaurante” familiar da aldeia. A sala é separada da cozinha por uma parede que não chega ao tecto e, ao lado da porta que liga os dois espaços, jaz na cama, a inválida mãe de família. O pai e as duas jovens adolescentes põem a mesa e preparam o único prato disponível. Num ecrã, há uma lista de títulos musicais, que as miúdas vão seleccionando e deixam tocar aos berros, acompanhando a letra desde a cozinha. Jantamos os dois a uma mesa e noutra, ao lado, senta-se a família a olhar para o ecrã e trauteando as letras românticas. O pai e uma filha vão buscar a mãe à cama, pegando-lhe um pelos pés e outro pelos braços. Depositam-na numa cadeira e assistem em silêncio ao estridente som da música…

Deixando Perico…


…E aproximando-nos de Jaén

Sempre com os campos de arroz por companhia

Jaén localiza-se no ponto de ligação entre a montanha árida e inerte e o vale verdejante de arroz. Ao longe, tem a cor avermelhada do tijolo e da telha e prateada do zinco que cobre muitos dos telhados. Ao pé, é horrível, com todas as ruas esventradas, respirando e cuspindo pó por todos os cantos. Centenas ou milhares de moto-taxis, zunem e rodopiam, numa correriam alucinante, cruzando-se, apitando, acelerando, travando, largando fumos e acordes estridentes de tunning desafinado. Parecem o caos dos carrinhos de choque, na feira, com a diferença que aqui ninguém parece chocar com ninguém…Mas apesar do caos da cidade, comi duas refeições excelentes, sem poder esquecer a extraordinária salada de fruta ao jantar, com um estonteante surtido de frutas, numa “terrina” gigante – não era por acaso que havia pessoas cujo jantar se resumia à salada de fruta – por 5 soles (1,2€)!

O rio tem muitas utilizações…

De Jaén a Pedro Ruiz, estendia-se uma jornada de 130 quilómetros, repartidos por etapas distintas, com paisagens diversas e emoções variadas. Se o início foi de “aquecimento”, com cerca de dez quilómetros a subir, seguiu-se uma deliciosa descida até Chamaya e ao rio com o mesmo nome, o fim foi mais ou menos dramático, noite dentro e com problema mecânicos na Dempster.
Do horizonte desapareceu o verde dos campos e dos montes, surgindo áridos desfiladeiros de rocha nua. A Estrada segue ao longo do rio, esculpida na montanha que se ergue a pique sobre as nossas cabeças. Parece que a qualquer momento uma derrocada nos sepultará sem aviso prévio.
O Chamaya desagua no Marañon (Maranhão, em terras do pau Brasil) e deixa-nos no estado da amazónia (peruana).

A caminho de Bagua Grande, depois de cruzar o Marañón pela 1ª vez

A aridez da paisagem volta a dar lugar aos arrozais espelhados de água e salpicos de pés de arroz. Na verdade, todas as fases do ciclo produtivo do arroz podem ser observadas ao longo do caminho: parcelas de terra preta inundada de água, onde tractores com rolos de ferro em vez de charruas preparam os solos para o transplante do arroz; parcelas de água lisa onde homens, mulheres crianças, de cócoras, espetam finos pés de arroz; campos onde o arroz verde-escuro ainda não espigou; outros onde as espigas amareladas tombam suavemente sob o caule; aqui e ali, ceifeiras cortam e ensacam campos de arroz dourado, deixando o restolho alto à espera de ser triturado e reintegrado, como fertilizante no novo ciclo…

Orgulhoso companheiro, por uns minutos

Depois do almoço em Bagua Grande, o ritmo amoleceu e, com as obras na estrada, sucederam-se as paragens prolongadas. Pedro Ruiz parecia cada vez mais inatingível… Em Jamalca, a derradeira povoação assinalada no mapa, ainda fizemos uma paragem “técnica” para comer algo e nos despedirmos dos arrozais. Doravante iríamos entrar progressivamente no vale do rio Utcubambo, cada vez mais ruidoso e mais selvagem. Em breve o horizonte reduzir-se-ia a uma nesga de céu carregado de nuvens, a negra faixa de asfalto, de braço dado com o rio, entalados em labirínticas falésias rochosas, de formas arredondadas, que se erguem a pique até tocarem as nuvens. Uma pequena placa na berma da estrada, chama-lhe “vale encantado”. À escassa luz do rápido entardecer, a textura da falésia, à direita da estrada, parece ser mais suave, possibilitando que milhares de periquitos/papagaios aí escavem pequenos buracos que utilizam como ninhos. O chilrear estridente é quase ensurdecedor, o esvoaçar ouve-se mais do que se vê, na escuridão que se vai abatendo rapidamente sobre o vale, cada vez mais labiríntico e fechado.
Estamos completamente cercados de montanhas e, finalmente, a estrada começa a subir – devagar, é certo, mas inexoravelmente a subir. As nuvens negras, que vinham ameaçando há um bom bocado, iniciaram o seu choro pesado, soltando grossas gotas que ressaltam no asfalto; a temperatura baixa com a noite, a altitude e a água da chuva; a escuridão invade os últimos recantos do vale. Na berma da estrada estão montados dois pequenos iglos junto a uma carrinha. Escuto o palavreado e os cumprimentos dos campistas, que não parecem ser turistas mas trabalhadores da estrada. Ainda me perpassa pela mente a possibilidade de lhes seguir o exemplo, mas opto por levantar o traseiro do selim e pedalar em crencos. Apesar da hora e da longa jornada, sinto-me pleno de energia. Pouco depois, um estalido seco e uma pedalada em falso, não deixam dúvidas: corrente partida… a primeira reacção foi de desalento e, quando o Luís chegou, disse-lhe que ia acampar ali mesmo, na berma da estrada e amanhã trataria da corrente partida. Mas, com mais discernimento, o Luís sugeriu que reparasse a corrente e prosseguíssemos até Pedro Ruiz – afinal deveríamos estar “apenas” a uns dez quilómetros.
À luz da lanterna, e debaixo de chuva – felizmente mais fraca – lá desencantei um segundo elo de engate – depois de ter perdido o primeiro na erva alta da berma da estrada – e “engatei” a corrente. Mas afinal havia mais estragos… para já, dois raios partidos. Sem travão de trás, praticamente sem luz, no breu da noite, e com algumas mudanças a patinarem, fiz-me à estrada seguindo o Luís de perto. O Utcubamba rugia ferozmente à direita da estrada, que não era mais que uma sombra onde, por vezes, se conseguia vislumbrar o traço branco que delimita as duas faixas. Era como conduzir às apalpadelas, fugindo do berma, que parecia precipitar-se no rio furioso, sem percepcionar as curvas, a não ser quando lhe estava bem no meio, cegando com as luzes dos carros e camiões, felizmente poucos e, regra geral, simpáticos, com que nos cruzávamos. E apesar de a chuva ter parado e a subida suavizado, os quilómetros pareciam infinitos. O clarão ténue da luz da povoação, foi como um oásis no deserto e quando passei a portagem e entrei nas ruas de Pedro Ruíz, senti um dos maiores alívios desta aventura…
Pedro Ruiz é um típico povoado de estrada, sujo, desordenado, de construção anárquica e aspecto inacabado, barulhenta, sem um único ponto de interesse – a deixar o mais rapidamente possível. Mas como precisava de uma oficina para reparar a bicicleta – pelo menos substituir os raios – decidimos ficar um dia e visitar a catarata de Gocta que, com 771 metros, é considerada a terceira mais alta do mundo. Assim, depois de substituídos os raios, apanhámos um “carro” (táxi colectivo) para Cocahuayco e, daí, prosseguimos a pé até Gocta.


De Cocahuayco até à catarata de Gocta, um anfiteatro de quedas de água

O dia estava ensolarado e a longa caminhada até á catarata, proporciona panorâmicas grandiosas de um gigantesco anfiteatro natural, de cujas paredes íngremes se desprendem inúmeras quedas de água com centenas de metros de altura.


Aproximando-nos de Gocta

No topo mais afastado do semicírculo que forma o anfiteatro, encontra-se a Gocta. O single treck que nos leva aos pés da catarata, proporciona um belo passeio, com descidas e subidas abruptas, por entre vegetação viçosa e diversificada, ao som estridente dos pequenos papagaios verdes, que cruzam os céus sempre aos pares. A catarata, apesar da dimensão vertical, é pouco impressionante, mas vale pela caminhada…

A catarata de Gocta, com 771 metros, é a 3ª mais alta do mundo…

De regresso à estrada, constato que final os estragos ma Dempster ainda não estavam todos diagnosticados. O desviador e o drop-out estão muito tortos, funcionando apenas três mudanças (1x3, 2x3 e 2x4). Felizmente são mudanças “leves” as que estão disponíveis – se fossem as “pesadas”, não sei como prosseguiria, Andes afora…
O nosso destino mais distante é Cajamarca, mas por hoje contamos pernoitar na aldeia de Tingo, onde esperamos encontra alojamento e visitar as ruínas de Cuelap. A estrada continua de braço dado com o rio Utcubamba, em direcção à nascente, penetrando no silêncio das encostas abruptas, cujas (de)formações rochosas ilustram a violência das suas origens. Na maioria do percurso, no estreito vale apenas cabe a estrada e o rio. Ocasionalmente alarga-se umas dezenas de metros, logo surgindo pequenas parcelas cultivadas.



Pelo vale inóspito do Utcubamba…


…há quem viva em condições inacreditáveis

Num qualquer ponto do percurso, surge uma discreta placa sinalizando um entroncamento: Leimebamba para a direita, por uma estrada de terra que desce para a margem do rio, momentaneamente distanciado do asfalto; Chachapoyas para a esquerda, pela estrada alcatroada. Como o mapa não sinalizava qualquer mudança no tipo de estrada, continuei encosta acima. Estava um pouco desconfiado do rumo que seguíamos, pois, segundo o mapa, não nos deveríamos afastar do rio… Ainda pedalámos uns quilómetros até que mandei parar uma carrinha/táxi. O amável motorista parou e confirmou as minhas expectativas: estávamos a caminho de Chachapoyas e não de Tingo. Deveríamos ter seguido a estrada de terra em direcção a Leimebamba… Depois de uma breve conferência, decidimos prosseguir no desvio para a capital da amazónia peruana e regressar ao caminho do sul no dia seguinte. Talvez até houvesse uma loja de bicicletas em Chachapoyas e pudesse reparar a Dempster…

Subida não planeada a Chachapoyas

Os doze quilómetros para Chacha são sempre a subir. Praticamente à entrada da pequena cidade, cruzei-me com um miúdo também de bicla, que parou e se me dirigiu com um ar aflito e choroso. Perguntou-me de onde vinha e quando mencionei Pedro Ruiz, rematou que era para lá que ia, se eu achava que “conseguia chegar hoje”. Pedro Ruiz dista mais de 50 quilómetros de Chacha e, mesmo sendo praticamente sempre a descer, não parecia fácil…perguntei-lhe porque ia para Pedro Ruiz e disse, com os olhos rasos de lágrimas e a soluçar, que o pai lhe batia constantemente e que tinha decidido ir-se embora, para casa de uns familiares. Entretanto, muito agitado, ansioso, começa a mexer na pequena mochila que transportava às costas, enquanto me diz se lhe compro o celular, pois precisa de “plata”. Está praticamente a chorar quando lhe digo que não, que tenho telemóvel e não preciso de outro. Olha-me desesperado e estendo-lhe alguns soles que tenho à mão. Agradece e desaparece rapidamente na próxima curva da descida…
Chachapoyas é uma pequena e pacata vilazinha colonial, de 30 mil habitantes. É a capital da amazónia peruana, mas situa-se na montanha e entre montanhas. A praça de armas é o espaço mais bonito e tranquilo do povoado, com o habitual jardim rodeado de edifícios de dois pisos, brancos, de varandas de madeira e estilo colonial. Basta afastarmo-nos uma ou duas “quadras”, para se perder a harmonia dos edifícios, mas a tranquilidade mantém-se. Oficinas de bicicletas é que só há duas e não têm qualquer componente que “encaixe” na Dempster…

Os frutos são uma dádiva. Delicioso figo pita(?) – foi a designação que entendi…

A jornada para Tingo é particularmente pequena e suave, pois o Utcubamba continua a subir lentamente no seu caminho para a nascente. Tingo é uma aldeia minúscula, encravada entre montanhas agrestes. Tem o modesto hostal leon e um “restaurante” na esquina, nada mais.
Ingerimos um almoço rápido e lançámo-nos de imediato pelo caminho de pé-posto, montanha fora, a caminho de Cuelap, as ruínas de uma enorme cidade pré-inca, praticamente abandonadas até há poucos anos e raramente visitadas. Ao fim de três horas de dura caminhada, sempre a subir por encostas íngremes, de vegetação rasteira e grande variedade de flores silvestres, Cuelap surge no mais elevado cume das imediações. De altos e grossos muros de pedra rodeando toda a fortaleza, o interior apresenta inúmeras ruínas de habitações, petrogrifos, templos cerimoniais. Para alem da grande dimensão do sítio e da abundância de vestígios e ruínas, o mais fascinante é a localização e as vistas impressionantes que proporciona.

Caminhada ás ruínas de Cuelap, uma impressionante cidade-fortaleza pré-inca





Ruínas de Cuelap









O último dia “tranquilo”, termina debaixo de chuva em Leimebamba, mais uma pacata aldeia colonial. Depois seguir-se-á o ataque aos Andes peruanos, puros e duros. Mas antes, há que visitar o museu comunal de Leimebamba.

Museu de Leimebamba

À partida, não senti grande entusiasmo com a ideia de visitar o museu, que fica uns três quilómetros afastado da vila. Mas vale bem a pena a deslocação – em moto-táxi – pela impressionante sala pré-inca/chachapoya, onde se encontram cerca de duas centenas de múmias num espantoso estado de conservação. Em rigor, todas as múmias e demais artefactos desta sala, são provenientes da “laguna de los condores”, um local ainda hoje só acessível de mula ou a pé, ao fim de um dia de viagem, onde eram celebrados os rituais funerários e depositadas as múmias, primeiro dos chachapoyas, depois dos incas.

A caminho de Leimebamba…




8 comentários:

  1. Será que já se pode comentar? Experiência...

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  2. Caro Idílio, bem tentei comentar tua crónica anterior, sem sucesso. Hoje, numa ressaca divertida e híbrida - mal-estar e algum gozo - devido à eliminação do "glorioso" nas meias finais da Liga Europa pelos "Gverreiros do Minho", decidi inspeccionar o teu blogue para ver se já se poderia comentar. É que sem comentários este teu passeio seria só teu, num egoísmo alarve pelas coisas espantosas que esse continente ainda consegue revelar. Vê lá se consegues descobrir o "El Dorado"... o nosso país bem precisa de uns cobres extra para conter a gula do FMI/BCE. Abraço, Palhares

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  3. Idílio, espero uma viagem memorável entre Ayacucho e Cuzco, brindo à vossa saúde e aguardo ansioso o relato (não tenho ouvido a Antena 1, sabe sempre a pouco, mas deliciei-me com os vossos relatos, quer o bailarico quer o almoço nas pedras foram momentos de agradável partilha)

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  4. Antena 1, pelos vistos às 4as feiras, entre as 6 e meia e as 7 da manhã, no programa do Candeias

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  5. Querido amigo,

    Já estava com saudades. Vistas assombrosas e muita emoção neste relato da viagem. Boas pedaladas!!!
    Beijo Cris

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  6. O Caminho é para Sul, mas os Andes Peruanos ainda têm muito por percorrer.

    Que o teu entusiasmo não se deixe abater pelo cansaço.

    JMorgado

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  7. gostei particularmente das caminhadas á catarata de Gocta e ruínas. As 3 horas de dura subida saberiam-me bem agora mesmo ;-) Fotos em abundância de arrozais e montanha também me deixam feliz mas é o todo da vossa aventura que me fascina mais, incluindo as etapas mais duras. Obrigado mais uma vez.

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  8. caro Idilio,
    Eh com grande prazer que continuo a seguir as tuas pedaladas rumo ao sul. Os tuas relatos e fotos sao inspiradores!!!
    Forca nessas pernas e continua a viver a vida com intensidade...
    Abracos ao hilario

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