De Huaraz a Cuzco
Huaraz vai ficando distante e pedalamos em busca de Pachacoto, o povoado onde a estrada N3 inflecte para oriente, mergulhando no Parque Nacional Huscarán. Agora sim, os imponentes nevados rasgam o horizonte, fundindo-se com as nuvens, por enquanto da mesma cor…
Estou na minha faixa, conduzindo a minha vida…
Seria motivo para suspeitar, mas não me ocorreu tal ideia: Pachacoto, que no mapa é um povoado, são duas barracas e quatro vendedores ambulantes de chocolates, sumos e pouco mais. Espero que Carpa, o próximo ponto no mapa, e único por muitas dezenas de quilómetros, seja uma verdadeira aldeia onde nos possamos abastecer antes de entrar na zona do parque, sob pena de fazermos dieta forçada.
Joselin, vende sorte…
A estrada sobe suavemente pelo vale ladeado de encostas, também elas suaves, douradas na rala vegetação rasteira, onde ovinos e bovinos pastam livremente. Esporadicamente avista-se uma casa de terra e colmo, com currais de pedra nas proximidades, albergando uma família solitária. A luz é fria e límpida, como fria é a temperatura do entardecer. O trânsito em sentido oposto, é constante, contando-se às dezenas os autocarros. A explicação é simples: é o fim da semana santa e são muitos os peruanos da cidade que fazem férias, multiplicando-se as excursões e passeios. O pior são as nuvens de pó que lançam no ar, tapando a visão, inundando a garganta, matando a tranquilidade da natureza em silêncio.
Entrada no Parque Nacional Huascarán
Anoitece quando desponta ao longe a entrada do Huascarán, com a escassa estrutura de suporte aos guardas do parque. Uma casa de banho e um pequeno edifício, é tudo o que há. E isto é Carpa, a última “povoação” assinalada no mapa e com que contávamos para comer, dormir e abastecer para a travessia do parque! Nada mais nos próximos 70 quilómetros… depois de pagar a entrada, pedimos para acampar nas imediações e estendemo-nos junto ao muro, procurando refúgio do vento, por vezes intenso.
Aproveitámos a hospitalidade dos guardas e cozinhámos e jantámos nas instalações, apesar de tudo mais amenas que ao ar livre. Na penumbra do interior há talvez duas dezenas de pessoas, a maioria jovens voluntários que reforçaram as equipas durante esta semana (santa). Afinal, hoje foram mais de 1500 os visitantes, um número muitas vezes superior ao normal.
Apesar da baixa temperatura exterior, parece que estou razoavelmente servido de equipamento para pernoitar no frio… A meio da noite acordei sarapantado com a nítida sensação de ter um bicho na mão, dentro do saco cama! A sensação era demasiado real para ter sido sonho, tanto mais que, acordado, não recordava ter sonhado… desencantei a lanterna, abri o saco cama, vasculhei e nada! Que raio, ainda sentia a maciez e o frio daquela pele estranha na mão… mas não havia mesmo nada no saco cama. Preparava para regressar ao son(h)o, quando vi na dobra da tenda, à frente dos olhos, um minúsculo sapo, encolhido e imóvel… Afinal sempre havia algo. Pu-lo fora da tenda com bons modos e dormi até a luz da manhã regressar.
Como Carpa não existia, a situação no que toca a comida não estava famosa… o pequeno-almoço resumiu-se a uma tangerina e um queque, sem perspectiva de reforços. Pelo menos enchemos os cantis de água, que nos garantiram ser potável.
Pelo frio da manhã, a rudeza da vida é ainda mais intensa
Com o estômago bem menos aconchegado do que era habitual, regressámos cedo à estrada. Sabíamos que o próximo povoado distava 70 kms, distância difícil de percorrer num só dia, com vento contra, praticamente sempre a subir, a uma altitude que oscilava entre os 4000 e os 5000 metros. Além do mais, teríamos de fazer uma gestão cuidada do esforço e da energia, exactamente pela falta de comida e imprevisibilidade da jornada…
A caminho dos 4800 metros…pé-ante-pé, para não acordar os deuses
A subida é tendencialmente suave, ainda que constante. A paisagem vai-se tornando mais árida, mais montanhosa, com os nevados dominando toda a paisagem e aproximando-se da estrada, trazendo consigo a brisa fria que pica no corpo. Junto à estrada, hoje praticamente sem trânsito, surge um inesperado “jardim” de Puyas, uma estranha planta apontando aos céus uma única “haste” de vários metros, que dizem produzir de 6 a 10 mil flores e 8 a 12 milhões de sementes…
Puyas
Talvez pela altitude, os declives são superados com algum esforço e, de quando em vez, necessito parar para normalizar a respiração, mas ainda assim surpreendo-me com a “facilidade” com que transponho o pico mais alto da estrada, rondando os 4800, nas imediações do nevado Pastoruri. O frio é o pior inimigo. A paisagem circundante é arrebatadora, no constante contraste entre o verde dourado dos valados, logo cerceado pela aridez dominante dos imponentes montes encimada pela cordilheira de nevados brilhantes, tocando as nuvens carregadas.
Transposto o Pastoruri, a paisagem abre-se num vasto planalto semeado de agressivas formações rochosas e rodeado de brancas cordilheiras distantes. No fim de uma suave descida, uma curva abrigada da estrada, onde escorre um cristalino riacho de água gelada, parece ser o local ideal para almoçar. Pela primeira vez desde Inuvik, o almoço implicou utilizar o fogão, caçarola, pratos e talheres e cozinhar, pois a “única” coisa que tínhamos para comer era esparguete.
O frio, a altitude, o estômago vazio, nada são no coração da montanha
Depois do magro descanso e retemperadora refeição, não havia tempo a perder e retomámos a marcha. Mesmo no aparente planalto, a estrada nunca é plana e as subidas são mais sentidas que as descidas. Alem do mais, o céu encobriu-se rapidamente e os flocos de neve começaram a desabar com suave intensidade. Definitivamente, neve era o elemento em falta para pintar o quadro da travessia do Huascarán…
Mais umas curvas, umas subidas, um rebanho de alpacas, uns vales distantes, e eis-nos chegados a uma inesperada estrada de asfalto! A linha divisória do Parque Nacional Huascarán fica para trás e o duro estradão que o atravessa desemboca numa magnífica estrada de asfalto, que promete mesmo uma longa descida.
Depois do breve nevão, veio a estrada de asfalto. Foi “voar” até Huallanca
Com o fim do breve nevão, a luz da tarde ficou mais límpida, os verdes e amarelos das encostas, mais brilhantes e dourados, os nevados, mais brancos e cristalinos. De repente parecia que alguém ligou uma luz potente sobre toda a cordilheira, emprestando-lhe tons cálidos de fim de tarde.
Desalinhado com as indicações do mapa, a informação da estrada permite-nos virar à esquerda, para Huansala e Huallanca e não para a direita, por Pachapaque. Até Huallanca a estrada afundou-se pelas encostas, ora suaves e verdejantes, ora abruptas e estéreis, das montanhas. Nós deslizávamos velozmente, surpreendendo-nos a rapidez com que a mineira, e horrenda, povoação de Huansala surgiu e desapareceu no retrovisor e a inesperada Huallanca veio ao nosso encontro. No melhor cenário, julgava poder chegar a Huallanca no dia seguinte, mas afinal a pequena povoação, completamente encravada entre íngremes encostas, já nos acolhia e ainda era meio da tarde…
Em Tingo Chico, despedi-me do rio Marañón, agora bastante perto da nascente. Depois de nos termos cruzado tantas vezes ao longo de várias semanas, com paisagens tão diversas, caudais tão distintos, estados de alma tão díspares, seguimos definitivamente rumos diferentes. Eu para sul, para a fria e árida Patagónia; ele há-de infiltrar-se na amazónia, continuar a explorar paisagens e climas tão diversos, aos tropeços ou tranquilamente, até se perder no Amazonas, que se afogará no Atlântico… E por momentos senti-me uma gota de água, indivisa e insolúvel, que se move ao longo de meses, de milhares de quilómetros, absolutamente frágil e insignificante na torrente da natureza por onde me esgueiro. E simultaneamente imponente, exactamente por sobreviver, por transpor, por ultrapassar, por contornar, por resistir incólume ¬à grandiosidade esmagadora dessa mesma natureza… como a hipotética gota de água, indivisa e insolúvel, que flutua desde a nascente do Marañón até ao infindo oceano.
A caminho de Huánuco, a paisagem pode serenar, o relevo suavizar, o clima amenizar, mas do mais improvável recanto pode surgir a surpresa….
Chavinillo é um pequeno povoado indistinto e incaracterístico, localizado numa encosta sobranceira ao rio. De um lado e outro da estrada localizam-se as duas ou três hospedagens. A primeira não tinha um visual muito atractivo e hospedámo-nos no hotel Casio. No regresso do jantar, à porta do hotel, o Jaime, músico antropólogo e o Guillermo, antropólogo músico, dedilhavam os charangos com a alma, enchendo a rua com o som alegre das cordas, culminando a actuação de rua com a mais popular das músicas andinas: “condor passa”.
Mas os jovens colombianos, de Popayan, destilavam animação e energia, continuando a noite em redor de uma mesa de restaurante, na companhia de Cusquenhas, Pilsners e Cristals. Estavam em viagem pela América do Sul, a caminho de Salvador, no Brasil, onde iam fazer uma pós-graduação, não sei se em música, se em antropologia, se em gastronomia, ou apenas viver a vida ao seu jeito… Certo é que, de regresso ao hotel, passámos mais uma longa hora ao som dos charangos, a transferir música andina e folck do disco externo do Jaime para o meu computador.
Por aqui me fico…
Após da subida a Corona del Índio, onde “captei” um diálogo fascinante em quechua entre dois simpáticos idosos, iniciou-se a descida interminável para Huánuco, culminando com uma trovoada que inundou a estrada de lés-a-lés. Mas mal terminou o dilúvio, o sol quente assentou sobre o vale cavado, substituindo as gotas de chuva por gotas salgadas de suor. A cidade surgia incrustada no sopé de mais um imponente cerro, estendendo-se para sul pelo vale do pequeno rio.
Junto a Corona del Inca, o meu pau é maior que o teu!!
Após dar algumas voltas pela cidade, descobri a oficina de soldadura que procurava. Os suportes dos alforges dianteiros tinham cedido progressivamente e o do lado esquerdo estava completamente partido em três locais distintos. Parece que soldar alumínio não é tão comum nem fácil quanto o ferro, mas depois de descortinar um eléctrodo numa ferreteria distante, o idoso soldador pareceu dar conta do recado. Infelizmente foi apenas ilusório, pois não tardou muitos dias a quebrar de novo numa das soldaduras…
Huánuco não foi mais que um ponto de pernoita, deixando a cidade rumo a sul, a Huancayo. Contrariamente a muitos dos dias passados no Peru, a paisagem não desperta qualquer interesse, restando percorrer quilómetros. Ainda assim, da singularidade desta terra e da rudeza destas gentes, pode sempre despontar uma estória para os anais da memória…
Transporte em dia de feira
Poncha!!?
Banhas da cobra…
Em San Rafael, uma pequena povoação de beira da estrada, era dia de mercado. E os mercados andinos têm sempre atractivos inesperados, sejam as coloridas indumentárias das mulheres, as comidas, bebidas e aromas que inundam as ruas, ou os esotéricos produtos expostos, que vão literalmente desde a banha (e pele) da cobra, ao “shaman” que exibe um espectáculo mórbido, esfolando uma pequena rã viva que, não tarda, vai fazer companhia às demais no grande caldeirão “mágico”, de onde serve copos de horrenda bebida milagrosa aos vários transeuntes que se detêm e embarcam na lengalenga…
São poucos os povoados com que nos cruzamos e menos ainda os que cativam. Com sorte, ajusta-se o ritmo das pernas e consegue-se uma aldeia para pernoitar, com hospedagem e restaurante. Huariaca vem mesmo a calhar, pois a chuva ameaça cair a qualquer momento. O primeiro hotel estava cheio. O segundo – a hospedage eucalipto – na praça de armas, tem um aspecto exterior pouco convidativo, com paredes desleixadas e portas e janelas a condizer. Por mim, teria dado meia volta em busca de um que se anunciava junto ao rio, mas o Luís tocou à campainha e foi recebido pela proprietária – a senhora Esperança. Afável, amável, delicada, com uma conversa invulgarmente educada e atenciosa, preparou-nos um excelente quarto no piso superior. Apesar da construção ser centenária, o interior tinha sido todo renovado, com gosto, conforto e de uma higiene absolutamente inusual nestas paragens. A chave para o enigma veio mais tarde: afinal a senhora Esperança, sexagenária, tinha estudado em Lima, onde trabalhou toda a vida em cadeias de hotéis de 4 e 5 estrelas, como referiu em tom orgulhoso… antes de deixar a hospedage eucalipto, confessei à Esperança as minhas reservas prévias em relação à hospedagem, felicitei-a pelo alojamento e prometi-lhe que haveria de recomendar a Hospedage Eucalipto, em Huariaca, no meu blog. Just in case… e o prometido é devido! Ah, e já agora também recomendo o restaurante vegetariano, afastado duas quadras. Pela comida, pela simpatia e pela novidade: depois de semanas onde é difícil evitar o pollo e a res (vaca), os sabores deste pequeno restaurante são um mimo…
A caminho de Cerro Pasco
De Huariaca a Cerro Pasco, sobe-se, sobe-se, sobe-se. Primeiro por um vale estreito, sombrio e frio, pelo menos até o sol conseguir trepar as encostas e estender os raios de sol pelo vale. Depois um pouco mais aberto, passando por mais uma mina gigante, que dá vida a uma aldeia sombria. Finalmente, ao longo de encostas mais suaves e ensolaradas, onde os rebanhos de ovelhas, vacas e alpacas esgravatam a custo o seu sustento. Apesar da subida não ser muito desnivelada, prolonga-se, como sempre, por dezenas de quilómetros. E com o fim da subida, em Cerro de Pasco – mais uma cidade mineira onde nem sequer entrei – vem o frio cortante do nublado altiplano andino.
Já é meio da tarde e não almoçámos. Por isso, são bem-vindos dois restaurantes gémeos que surgem à beira da estrada. A ementa é igual – guiso de cordero –, a aparência indistinta, mas surge à porta de um deles uma miudinha com ar tímido e simpático, atraindo-nos para essa porta. A sala tem duas mesas e outras tantas cadeiras em cada uma. Ao lado esquerdo, um cortinado de pano, pendurado num varão de metal, serve de parede, quase de certeza, para o quarto. Em frente, uma pequena porta, sem porta, liga à cozinha, com o piso de terra. Pela pequena porta sem porta, vêm-se passar galinhas, gatos e cães. Mas daí a pouco um borrego forte, lãzudo, farto e pachorrento, cruza a porta sem porta, passeia-se pelo restaurante e transpõe o cortinado, dirigindo-se ao quarto de dormir. Só aí surgem as duas catraias, que arrastam carinhosamente o borrego para a cozinha, desaparecendo do meu olhar. Desagrada-me o pensamento que antecipa um naco do borrego que acaba de transpor a porta pelo próprio pé, servido com o prato de arroz e salada…
O pitéu do futuro, conhecendo os cantos da casa…
O céu ficou negro, da cor do asfalto. Os trovões sucedem-se dos quatros pontos cardeais, antecedidos ou precedidos anarquicamente de relâmpagos flamejantes, que parecem ficar a bailar nas encostas escuras. A chuva começa a desabar, primeiro em gotas grossas e intermitentes, depois grossas e contínuas, do céu à terra. Paramos numa estação de serviço para vestir a roupa da chuva e fazemo-nos à estrada. Tenho a sensação que o epicentro da trovoada está ligeiramente atrás de mim e pedalo desalmadamente, procurando fugir-lhe. O relevo está do meu lado e galgo velozmente os quilómetros planos. Mais que a chuva, sinto o vento tolher-me as mãos, perfurar-me a cara, queimar-me o nariz e as orelhas. O ritmo atenua o frio e quase escapo incólume à tormenta, mas chego a Carhuamayo extenuado e suado. Espero pelo Luís à entrada do povoado e quase congelo. Tarda demasiado – ou assim me parece – e pergunto a uma patrulha da polícia, que se aproxima lentamente de carro, se viram um ciclista na estrada. Dizem-me que não, que não se cruzaram com ciclista algum. Acho que é impossível um carro não dar por um ciclista, especialmente com a “trouxa” que o Luís transporta, e fico preocupado. Ligo-lhe uma e duas vezes para o telemóvel, mas não atende. Daí a segundos vislumbro-o no início da recta!
No centro do povoado pergunto a um taxista qual o melhor hotel da povoação – sim, estou a ficar burguês e já pergunto pelo melhor hotel!! Na verdade prefiro dormir na minha frágil tenda, sentir o duro chão por baixo do colchão roto, a boa parte das camas onde tenho pernoitado. O problema é o banho… na tenda não tenho banho e, ao fim de um dia a transpirar – ou enregedlado –, por vezes coberto de pó, um banho, se possível quente, é uma dádiva… O hotel Don Elias parece ser o melhor. Transpondo o portão grande, deparo-me com um enorme pátio ladeado, à direita e ao fundo, pelas paredes e varandas do hotel. Mas, surreal, as grades das varandas estão repletas de presuntos, espadas, barrigas, cabeças e mais não sei quantas partes de animais esventrados, a enxugarem!! para a festa dos dias seguintes. Duas vacas, vários porcos e ovelhas às postas, decoram as varandas do hotel… Bem, mas está garantida a água quente, as camas são confortáveis e o simpático proprietário agraciou-nos logo com uma deliciosa bebida alcoólica, aromática e quente… Ah, e se a fome apertar, basta abrir a porta do quarto e esticar a mão!
Da janela do meu quarto…
Mas Carhuamayo tem uma especialidade única no país, quiçá no mundo: a maca. A maca é um pequeno tubérculo com rama semelhante à da batata, mas de dimensão e aspecto similar a uma cabeça de alho, embora una. E em todas as portas da povoação se anuncia “jugo de maca”. Depois de jantarmos fomos provar a singular iguaria, que é preparada com ovo e vários licores que desconheço. Não tem o sabor refrescante e tropical de tantos sumos e batidos deliciosos que tenho deglutido com gula, mas marchou bem e enriqueci o palato com mais uma novidade. Já agora, parece que os japoneses estão a tentar produzir este tubérculo por lá, atribuindo-lhe excepcionais qualidades alimentares. E Carhuamayo apresenta-se como a capital mundial da maca!! que, na realidade, não vi, nem mencionado, em qualquer outro lado.
Sabe bem deslizar pelo suave altiplano, dar um pouco de repouso às pernas, aliviar a tensão e o esforço das subidas e mesmo a adrenalina das descidas, perder o olhar na tranquilidade do infinito. O lago Junín estende-se por esse silêncio que emana da planície. De águas paradas, espelhadas, geladas, paraíso de milhares de aves, labirinto desenhado pelos juncos, fenos ou familiares, ainda acolhe pequenos rebanhos de ovelhas e alpacas. Distante, erguido aos céus, o obelisco comemorativo da batalha de Junín que, com a travada a norte de Ayacucho, foi decisiva na independência da América do Sul e na derrota de do império espanhol.
Lago Junín
Progressivamente a estrada deixa o planalto e mergulha suavemente no vale, lado a lado com a via-férrea. Em sentido contrário vem o Adrian, um francês pedalando uma pasteleira. Fala da dureza do piso das estradas bolivianas e do frio a sul. Como segue para Tarapoto e a amazónia peruana, não tínhamos muitas informações para trocar, pois a nossa rota foi distinta.
La Oroya passa a ocupar o topo das cidades mais horríveis desta aventura. Ok, exéquo com Quiruvilva… Cidade mineira, as ruelas são escuras, tortas, labirínticas, tresandando a esgoto e a lixo. As casas pelo menos não destoam… são de lata, terra, barro ou lama, caóticas no caos onde se amontoam. A hospedaje el viajero foi-me recomendada por um polícia como sendo “dos melhores alojamentos”… o quarto, completamente atrofiado com dois beliches e uma cama, tinha vista para um estaleiro mineiro abandonado, onde se amontoavam desperdícios e lixo… Afinal a mina está encerrada há dois anos, e a degradação, pobreza e delinquência andam de braço dado com o desemprego generalizado.
Acho que o polícia me enganou, pois afinal a outra parte da cidade parece sofrível…
Mas Oroya só pode mesmo ser uma cidade horrível. Completamente encravada num vale triangular de encostas rochosas, esbranquiçadas, contorcidas e retorcidas, como se tivessem sido sujeitas a temperaturas infernais, esmagadas por uma prensa diabólica e absolutamente desprovidas de qualquer elemento vivo, por mais ténue que seja. Contudo, quem vê caras… no coração daquela carapaça dantesca, escondem-se “rios” de ouro, prata, cobre e outros minérios. Pelo menos é essa a convicção dos locais… mas quem corre moribundo, para não dizer completamente morto, é o rio Mantaro. A extracção mineira assassinou o rio. Agora, nem minério nem rio…
La Oroya, cidade mineira
Foi com alívio que deixei La Oroya, no seu labirinto de caos e desolação. Contudo, o percurso à ilharga do rio Mantaro, ao longo do vale moribundo, ladeado por encostas grandiosas de rochas disformes, matizadas em diversos tons de vermelho, ocre e branco, tem algo de misterioso, de sedutor, de sobrenatural.
À medida que La Oroya se afasta, o vale vai-se tornando mais aberto, mais verde, mais humano, chegando mesmo a surgir algumas casas dispersas nas imediações do rio e da estrada. Num qualquer cruzamento de caminhos, há dois restaurantes, um de cada lado da estrada. Apesar de o Luís estar out, depois de ter passado a última noite na casa de banho, paramos para comer algo. Nem vale a pena saber o que servem para almoço: uma sopa e um “segundo” prato, sem escolha nem floreados. Veio o “segundo” e, como habitual, apenas um garfo para dissecar os ossos do escasso frango. Pedi à idosa senhora uma faca que, depois de revolver inúmeras vezes o mesmo recipiente de plástico, notoriamente vazio, perguntar, sem sucesso, às paredes, prateleiras e armários e, ainda, à criança recém-nascida, pela faca, decidiu-se a ir pedir o supérfluo utensílio à vizinha da frente…
Mas o Luís estava mesmo debilitado, na sequência da intoxicação provocada por uma porção de doce de leite impróprio para consumo, e decidimos não ir muito longe, acampando num verdejante descampado, protegido pela encosta da montanha, frente ao rio, mesmo ao lado de um restaurante…
Campismo selvagem no cruzamento para Chacapala
Abancay não estava longe e com a ajuda do relevo, ora plano ora ligeiramente descendente, galgávamos os quilómetros velozmente. Ainda não era tempo de almoçar, mas num ou outro retiro da estrada, labaredas de fogo brotavam por entre estranhos montículos de seixos, dispostos em forma de pirâmide sobre uma grelha metálica. A curiosidade levou-nos a perguntar qual o objectivo daquele estranho foguear e ficámos a saber que, sendo Domingo, era dia de pachamanca, um prato típico da região, cozinhado com as pedras incandescentes…
Em Sincos, um restaurante de beira da estrada anunciava pachamanca para o almoço. A fogueira lá estava, incandescendo os seixos e pedras amontoadas. O mestre da fogueira esclareceu que dentro de meias hora dar-se-ia início ao cozinhado tradicional que, 45 minutos depois, estaria pronto para comer.
Passada a meia hora vaticinada, com grandes ganchos de ferro, foi retirada a grelha de metal que suportava o monte de pedras incandescentes. Na cova onde o brasido ainda fumegava, foram colocadas camadas de batatas com a pele e pedras; depois seguiram-se as carnes: frangos inteiros, grandes nacos de carne de vaca e cuys, mais uma vez intercalados com pedras em brasa; sucedeu-se uma grande quantidade de humitas, de permeio com as inevitáveis pedras e seixos. Concluída esta fase, uma grossa camada de erva verdejante foi espalhada por cima da pirâmide de comida e, sobre a erva, um grande saco de rede cheio de vagens de favas, completava as iguarias da pachamanca. Agora faltava cobrir tudo a preceito, primeiro com sacos de ráfia a partir do cimo, depois um grande plástico envolveu todo o monte de comida, sendo laboriosamente atado em toda a volta. Restava esperar impacientemente os 45 minutos de cozedura, antes de nos lançarmos ao promissor repasto…
Preparação da pachamanca
E enquanto o misterioso monte de comida ia, em segredo, cumprindo o ritual ancestral, nós tagarelávamos com a Estefanie e a Geraldine, miúdas colegiais de 15 e 17 anos, surpreendentemente maduras, especialmente a Geraldine, estudante de arquitectura, completamente fascinadas pela “oportunidade” de conhecerem e falarem assim com duas personagens tão impares como nós. Mas durante a espera para o almoço, toda a demais família passou pelo palratório, com enorme boa disposição e descontracção. E não faltou uma nota intimista, confessando ser esta a primeira pachamanca que cozinhavam há mais de uma ano – desde a morte da avó da Geraldine…
Se “amontoar” a comida e as pedras tinha sido um ritual disciplinado mas divertido, então “desmontar” a montanha de comida, com todos a esticarem o braço, a separarem as pedras da comida, rapando as pequenas lascas de carne ou das humitas incrustadas nas pedras, lambendo os dedos gordurosos, sentindo os aromas desprenderem-se da terra e inundarem o olfacto, foi um cerimonial de fazer inveja.
E o delicioso resultado
O prato transbordava de deliciosa comida. Mas as humitas, tão suaves e adocicadas, e o cuy, tenro, dourado e estaladiço, não tinham paralelo… e a chicha morada – uma bebida feita a partir de milho rei fermentado – soube melhor que nunca.
A abarrotar de comida, de simpatia e amabilidade daquela família, o almoço culminou com uma contagiante sessão de fotografias, em que todos queriam tirar fotos com as bicicletas e os gringos como cenário. E no fim ainda tive de prometer à Geraldine que – na falta de filhos – quando comprar outra bicicleta a baptizarei de Geraldine, tendo ela prometido, de moto próprio, que se tiver um filho lhe chamará Idílio!! Pouco importa como se chamará a minha próxima bicicleta ou o filho da Geraldine… pois verdadeiramente valioso foi a partilha daquelas duas horas.
Abancay é uma cidade grande, agitada, repleta de gente e de jovens. Li algures que tem 400 festas por ano, bastando procurar… Dei-me por satisfeito com um bom restaurante – que abundam – uma boa pastelaria e uma visita lenta pela praça de armas.
Estranhas representações religioso-pagãs
A estrada que liga Huancayo a Ayacucho – a próxima referência em termos de mapa, mas que deve distar vários dias em bicicleta – teve diversos troços fechados ao trânsito durante os três meses anteriores, tendo reaberto há apenas uma semana. Parece, mais uma vez que, a sorte está do lado dos audazes… O inverno pesado, invulgarmente longo, foi implacável com uma estrada cavada de forma abrupta na montanha, sem protecções nem taludes adequados. Mesmo reaberta ao trânsito, as marcas invernais eram constantes, com linhas de água caudalosas precipitando-se pelas escarpas, inundando longos troços da estrada e enlameando o piso, onde as bicicletas se atolavam.
Os escassos habitantes do vale parecem respirar de alívio, pois sem estrada não há abastecimentos, não há comida, nem os pequenos negócios. Havia quem não hesitasse em adjectivar esses meses como um período de fome…
Festa da cruz em Acostambo
Acostambo não faz parte dos mapas, mas a pequena aldeia vem literalmente para a rua no dia 2 de Maio, o dia da cruz. Principalmente de meia-idade em diante, vestem os seus trajes coloridos, mobilizam a banda filarmónica, colectam-se para comprar a cerveja e a chicha, saltam as barreiras das casas e do duro dia-a-dia, para se entregarem aos festejos tradicionais. Não falta o saco com a folha de coca, cuja extrovertida portadora vai distribuindo e mascando abundantemente. Dirige-se-me de saco estendido, voz grossa e autoritária e fiz-me para me servir da “droga do Peru”! Que ali, como vejo, são todos uns drogados! Folhas de coca gemendo nos queixais, cerveja escorrendo devagar pela garganta, batuque da banda filarmónica acompanhada por uma estranha corneta de chifre de boi, rapidamente me vi arrastado por uma cinquentona gaiteira para o centro da pista de baile, que é como quem diz, o meio da estrada. E por breves minutos não houve como desfazer aquele enredo, em que as escassas dezenas de foliões pareciam gozar, com genuína alegria e simpatia, a presença de dois intrusos, com aparência de extra-terrestres nos seus esotéricos trajes de ciclistas.
Mas a jornada tinha de continuar, pois Mariscal Cáceres ainda distava umas dezenas de quilómetros…
Mariscal Cáceres é apenas uma aldeia perdida numa estrada encravada no vale cavado pelas constantes montanhas. Houve tempos em que a linha de comboio se encontrava activa, trazendo e levando vida e notícias, mas agora a povoação definha sem o apito rouco das locomotivas. Antes de virem e irem os comboios, o general Mariscal Cáceres terá passado por ali com o seu exército, a caminho de Ayacucho e dos inimigos espanhóis, para desferir um golpe decisivo no império, a caminho da independência da América do Sul. E como o general Mariscal terá pernoitado no local, há que aproveitar o evento e rebaptizar a aldeia…
Aparentemente o hostal mirador será o melhor – fraco consolo –, se não único, alojamento da aldeia. Enquanto vou em busca do proprietário, que explora uma mercearia umas centenas de metros adiante, o Luís rodeia-se de curiosos miúdos, ávidos e tagarelas como só eles sabem ser. Mas em boa hora se juntaram a nós, pois o hostal é mesmo numa rua inclinada, acessível apenas por escadas, e foi um alívio vê-los disputar os sacos, alforges e mesmo as bicicletas, até ao quarto. A recompensa foi uma sessão de fotografias e passear com eles pela aldeia, ostentando os meus óculos escuros de ciclismo…
Miúdos sempre presentes
De Mariscal a Mayoc a estrada terá sofrido os maiores danos do inverno. A zona é tremendamente remota e inacessível, as casas escasseiam e as que existem erguem-se totalmente solitárias nalgum pedaço de terra menos inóspita. Pelo piso, pelo calor, pela distância, o dia avança mais depressa que os quilómetros no contador. A tarde desaparece por detrás dos cumes, os rios de água que se precipitam das encostas, continuam a disputar a estrada, as derrocadas de terra e pedras ocupam largas porções da estreita faixa do caminho, o leito do rio, um pouco mais abaixo, tem sinais fortes do que foram os últimos meses, com os arbustos, hoje uns metros acima da linha de água, retorcidos, desmembrados e inundados de toda a espécie de detritos civilizacionais, com destaque para os coloridos garrafas e sacos de plástico, tecidos.
Mayoc pela manhã
É noite escura, a estrada já desapareceu por completo, tragada pela escuridão, o rio afastou-se e ficou lá por baixo, é preciso subir uns bons quilómetros e esperar que uma curva da estrada ou um morro da montanha nos presenteie com um ténue clarão de luz, anunciando Mayoc. Tarda em aparecer, é mais ténue que a via láctea em noite de lua cheia, mas é um reconforto milagroso. Apesar de não ter hostal, nem hotel, nem hospedaje, a casa da esquina aluga quartos. Não tem casa de banho, não tem duche, mas tem uma barrica de água gelada e uma cafeteira. Tem colchões moles em cima do estrado duro e irregular, mas tem mantas quentes e pesadas que afastam o frio da noite fria. Não tem pratos a la carte, mas prepara-nos uma saborosa pasta al Alfredo (o que quer que isso seja).
A última etapa a caminho de Ayacucho passa por Huanta, onde desesperei em busca de uma padaria… Vou-me habituando à confusão e falta de precisão das informações que me vão dando ao longo da estrada, muitas vezes sem as pedir. Por exemplo, é típico dizerem que “daqui a Mayoc são umas três horas de bicicleta”. Mas na realidade serão pelo menos 5 horas. “Para Juliaca são uns 7 quilómetros” e o mapa e a sinalização da estrada indicam mais de 20… Mas a essa informação já nem ligo. No entanto, em Huanta o Luís perguntou onde havia uma padaria e indicaram-lhe umas quadras acima, numa rua à direita; próximo do local indicado, voltámos a perguntar e indicaram mais umas quadras adiante, de novo à direita; virámos à direita e voltámos a perguntar daí a pouco. Um polícia mandou-nos virar na próxima à direita e que aí haveria padaria! Ou seja, íamos completar os 360º sem que a padaria fantasma surgisse. Passei-me, desisti da padaria e quando rumávamos para a saída da povoação, eis que surge “a padaria” que ninguém parecia conhecer ou saber onde ficava, mas que todos davam bitaites…
Felizmente depois de Huanta regressou o asfalto e a subida, apesar de longa e, por vezes, íngreme, tornou-se um agradável exercício… na verdade estava já saturado e “dorido” do duro piso dos últimos dias/semanas. Não fiz qualquer contabilidade, mas seguramente mais de 70% dos quilómetros percorridos no Peru foram em piso de terra, poucas vezes regular e suave. Os furos têm-se sucedido e o traseiro, apesar da “carapaça”, por vezes reclama. Por isso, pedalar em asfalto é quase recebido como uma doce massagem…
Há dez anos estive em Ayacucho, vindo de autocarro desde Lima. Lembrava-me dos últimos quilómetros serem a descer e hoje esperava o mesmo brinde. Mas não! Hoje entrei pelo norte e foi sempre a subir, por uma estrada em mau estado e o calor abafado do vale a castigarem as pernas.
Aycucho visto de Santa Ana
Para os peruanos, Ayacucho é a cidade das igrejas – creio que umas trinta e seis – e dos festejos da semana santa – ao que dizem, os mais imponentes e fervorosos do país. Milhares de turistas afluem, principalmente de Lima, para assistir e participar nos festejos, sendo tradicional visitarem todas as igrejas, em autênticas rumarias… Mas deve ser também a cidade da batalha de Ayacucho, que ocorreu a escassas dezenas de quilómetros da cidade, e onde o exército espanhol foi derrotado, numa batalha decisiva no percurso para a independência da América do Sul. E antes desses tempos, nas imediações, foi a capital dos Wari, uma civilização imperial pré-inca, que dominou uma vasta área do Peru. As ruínas, poucas dezenas de quilómetros a norte da cidade, são pouco impressionantes, com poucos vestígios acessíveis aos escassos visitantes… Talvez o local mais impressionante seja o “cemitério”, de vários pisos, onde enterravam o imperador, sacrificando e enterrados conjuntamente os seus colaboradores militares mais próximos…
Mas da visita às ruínas de Wari, o que não esquecerei tão cedo foi a viagem de regresso. O táxi já vinha sobrelotado, mas como esse conceito é um pouco estranho nestas paragens, abriram-me a porta da bagageira, onde vinham duas passageiras… na verdade, um passageiro ensanduichado no banco da frente prontificou-se a ceder-me o lugar e ocupar a bagageira, mas claro que recusei e lá me encafuei no exíguo “lugar”, todo dobrado e espremido, sentindo no rabo cada buraco e solavanco da estrada.
Em tempos mais recentes, Ayacucho foi também “capital” do Sendero Luminoso – como são belas as designações, quiçá as intenções, destes grupos “rebeldes” – entretanto dizimado e extinto.
Ayacucho, praça de armas
Muitas das cidades coloniais que fui admirando ao longo desta longa jornada, vangloriam-se de ter a mais bela “praça de armas” do respectivo país, quando não da América Latina e Ayacucho não foge à regra. Seja ou não a mais bela, é sem dúvida de uma grande elegância, circundada por uma desafogada calçada, onde o trânsito flui tranquilo, e edifícios coloniais de dois pisos, suportados por profusas arcadas, impecavelmente preservados.
Ayacucho
É verdade que este é o modelo comum à generalidade das cidades coloniais hispânicas na América Latina, mas nesta praça de Ayacucho respira-se uma calma maior, uma tranquilidade saudável. E depois, por detrás dessas mesmas arcadas escondem-se alguns pátios de grande elegância, albergando pequenos hotéis, restaurantes, pastelarias e geladarias de sabores e aromas irresistíveis ao palato…
Mas as trinta e seis igrejas de Ayacucho perdem-se nas ruas esventradas da cidade, no pó e estaleiros que a povoam, nas valas que a atravessam para renovar a rede de saneamento e água.
Ayacucho, a toda a hora e em todos os lugares há rios de gente
Em cada esquina, em cada passeio, em cada escada ou soleira de porta, em cada parque ou jardim, os vendedores atropelam-se nos “pregões”, quase se acotovelam na conquista de espaço, disputam os compradores com os produtos mais mirabolantes. A proximidade do dia da mãe adiciona um colorido enorme, com todo o tipo de bugigangas, num garrido de ferir o olhar.
A casa hogar los gorreones fica a escassos quilómetros do centro de Ayacucho, mas à medida que o centro da cidade fica para trás, entramos num universo distinto, de construções degradadas, inacabadas, poeirentas, onde a pobreza tem olhos e rosto. Los gorreones é uma casa de acolhimento de crianças abandonadas, que alberga cerca de três dezenas, várias delas deficientes, algumas profundamente deficientes. Se à primeira vista, as instalações e a localização parecem, elas mesmas, sinais de desintegração e abandono, na verdade, atentando melhor e lançando a vista mais ao largo, percebe-se que as parcas condições são extraordinárias no contexto de pobreza extrema, carências absolutas, abandono e violência daquelas crianças que vêm da casa dos mortos. Mas mais impressionante é a paciência, a dedicação e o carinho que as dezenas de voluntários e profissionais dedicam àqueles miúdos, uns rebeldes até ao desassossego, outros inertes na enfermidade…
A visita aos gorreones terminou com um “atum à braz” que o Luís preparou pacientemente, desde as batatas fritas, ao estrugido com o óleo da própria fritura… mas quem é que poderia reclamar verdadeiro azeite de oliveira ou bacalhau salgado para prepara um bacalhau à braz!? E no fim, como sempre, houve quem rapasse o prato e quem preferisse o arroz de todos os dias… Dizia o Gil, o belga impulsionador e fundador da casa hogar los gorreones, que são todos muito avessos a mudanças, a novidades, alterações de rotinas, pelo que a experiência do atum a braz não correu mal de todo.
A etapa seguinte leva-nos de Ayacucho a Cuzco. Serão cerca de 600 quilómetros onde espero novamente toda a dureza dos Andes. Para além do relevo, que há-de brindar-me com diversas subidas acima dos 4000 metros e descidas próximas dos 2000, voltará o piso de terra, pelo menos até Abancay, as temperaturas hão-de oscilar fortemente, combinando o sol intenso do meio-dia com as “baixas” altitudes e as noites frias com as “altas” altitudes. Mas olhando o mapa, há que adicionar novos factores: as povoações rareiam, sendo necessário levar aprovisionamentos alimentares, aumentando o peso, e ir preparado para acampar…
Contrariamente ao que tinha sonhado, não pude tomar um “último” pequeno-almoço faustoso numa das boas pastelarias de Ayacucho. Era Domingo e às 7h da manhã nem uma só estava aberta… do mal o menos, à saída da cidade, já a entrar na avenida Cuzco, havia uma sombria padaria acabada de abrir e lá bebemos um sumo e comemos uns queques, a única coisa razoável existente.
No fim da Avenida Cuzco, um transeunte curioso meteu conversa e aumentou um pouco a confusão sobre o trajecto. Na verdade, o meu mapa assinalava dois caminhos possíveis para a primeira centena de quilómetros, praticamente até Ocros: ou seguindo a nossa velha conhecida N3, ou enveredando por umas vias mais secundárias, em direcção a Tambillo… Não tinha equacionado a segunda hipótese e nem sequer falei dela ao Luís. Mas o “curioso” ayacuchenho reforçou a existência das duas vias, realçando que ao longo da N3 não existia qualquer povoado, ao contrário da outra hipótese, em que abundariam pequenos pueblos. Praticamente sem hesitar, deixámos de lado a N3 e avançámos pela “alternativa”.
Tão breve quanto ficou para trás a cidade de Ayacucho, desapareceu o asfalto e surgiu um impiedoso piso de terra, saibro, pedra, areia e o que mais calhou. Na verdade nada perguntámos sobre o piso de uma e outra estrada, mas o caminho escolhido prometia não dar tréguas.
Percorridos os primeiros 15 quilómetros, surgiu uma tienda à beira da estrada. Não é que estivéssemos com fome, mas o suspense sobre o que viria depois levou-nos a parar e reforçar o pequeno-almoço. Aparentemente foi a decisão certa, pois parou um camionista que, enquanto comia uma lata de atum, umas “galhetas” e não sei que mais, disse não comer nada desde o meio-dia do dia anterior, por não haver onde…
A estrada subia paulatinamente mas, apesar do declive não ser acentuado, o péssimo piso tornava a progressão lenta e difícil. Colinas e pequenos montes sucediam-se, num emaranhado interminável de curvas e linhas de água, que íamos galgando devagar. Como nos tinha sido “prometido”, sucediam-se os povoados à beira da estrada: pequenos, pobres, de casas diminutas, na habitual construção de adobe e cobertura de zinco ou telha. Fomos perguntando por algum restaurante e a resposta ia-se repetindo: na próxima aldeia há um. De Tambilho a Chontaca, ao longo de vinte quilómetros, perdi o conto às vezes que perguntei se havia um restaurante ou comedor e sempre me referiam que havia no próximo pueblo “cerquita”.
Finalmente surgiu Chontaca, já a tarde ia longa e o sol na curva descendente, e com ela o restaurante prometido para almoçar. Sintomático, e recorrente, pedimos duas facas para cortar a dura carne de vaca estufada e daí a pouco a miúda que nos servia regressava com uma faca apenas, dizendo que não tinham mais…
Não muito depois, após a única descida do dia, que nos levou a um ribeiro de águas frias e cristalinas, com um pequeno largo relvado e mesmo uns metros quadrados de areia, arreámos a giga e fizemos o primeiro campismo selvagem do percurso.
O topo do planalto, antes de iniciar a descida para Ocros
Após mais vinte quilómetros de subida, a estrada que seguíamos desembocou na N3, bem no topo de uma cordilheira que circunda toda a região. Com as nuvens a taparem o sol e os mais de 4000 metros de altitude, as luvas e a camisola quente iam ser necessárias para a enorme descida que se adivinhava. Na realidade, para mim era mais do que uma adivinhação, era um reviver do percurso, pois há uma década fiz este mesmo percurso de autocarro, pela N3, e guardo algumas impressões fortes. Uma delas, na sequência infindável de curvas e contracurvas, pela estreita estrada cavada na orla da encosta, é o rugido rouco e estridente das buzinas de dois autocarros, um a descer – onde eu ia – o outro a subir, cruzando-se a grande velocidade numa nesga de estrada. O eco das buzinas no vale profundo, o rugido dos motores, a ultrapassagem “impossível” na beira do constante precipício que é a estrada, a ponte de madeira, onde todos tivemos de descer e, mesmo assim, ainda parecia ser peso a mais e ponte a menos, a tasca na beira da estrada onde parámos para comer algo, são impressões fortes que retenho deste troço de caminho que agora saborearei com a adrenalina de bicicleta, que está longe de ser menor.
Ocros não se sê mas está lá, soterrado nas montanhas, junto a uma qualquer curva…
Do topo da montanha, Ocros é uma minúscula mancha de casas encravadas num buraco do vale. A estrada, como é habitual nestas circunstâncias, parece uma meada de lá desenrolada na montanha, perdendo o conto às curvas e degraus que se estendem encosta abaixo, a perder de vista. Um pastor solitário zelando pela manada de vacas, fica para trás e uma pastora com um rebanho de ovelhas espreita adiante. Na paisagem agreste das encostas áridas, não há qualquer cultivo… talvez mais abaixo, talvez no vale de Ocros regressem as pequenas parcelas de batatas, milho, trigo ou cevada.
Finalmente Ocros chegou. Já me doíam os pulsos da vertiginosa descida… Só há um restaurante e não é o da beira da estrada de há dez anos. É no centro da aldeia, não tem menu, mas a sopa é substancial e compensa o rabo de cavala(?) frita com um pouco de arroz e lentilhas do “segundo”.
Descida para Ocros…
…e para o rio Pampa
A descida é que não findou, felizmente: até ao rio Pampa são mais 32 quilómetros, a somar aos 22 de descida até Ocros… completamente mergulhados na montanha, sentindo a adrenalina da descida, das curvas que desembocam directamente em ravinas profundas, somos surpreendidos pela cor avermelhada do barro de uma aldeia perdida no sopé da encosta que contornamos. Estranhamente, as poucas casas dispõem-se em círculo, em torno de um relvado mais verdejante…
Chumbate
O rio Pampa reserva-nos meia surpresa: a ponte, como já sabíamos, foi levada pelo rigoroso inverno e temos de atravessar de canoa… antes, há que pagar uma portagem improvisada! O desaparecimento da ponte deve ter sido a sorte grande para uma qualquer família, proprietária do terreno por onde passa o miserável caminho de acesso ao rio, um pouco a jusante, onde uma pequena canoa faz a travessia. Quando perguntei à rapariga da “portagem” quanto teria de pagar, ela questionou-me sobre quanto é que eu achava dever pagar. Sugeri um sol e ela concordou. Estou convicto que se dissesse que deveria passar de borla, também concordaria…
Junto ao embarcadouro já está montado o negócio dos comes e bebes, embora pareça ter pouco sucesso. A pequena canoa cruza o rio tranquilo apenas com passageiros e reduzidos volumes de mercadorias. Estava mesmo a atracar à margem esquerda quando chegámos e com a ajuda de uma rapaziada curiosa que por ali se encontrava, rapidamente catapultámos as biclas para a canoa e fizemos a travessia. Três soles, cada um, metade do que pagou um casal de suíços que encontrámos em Ayacucho.
Atravessando o Pampa de canoa, pois a ponte foi-se com a invernia
Já na margem direita, escassas centenas de metros após a travessia, encontrámos o lugar para o próximo campismo, mas não sem antes ter passado por um troço de caminho armadilhado, onde furei as três rodas com pelo menos 12! furos: pela primeira vez fiz o indesejado pleno, para gáudio do Luís…
Parece que desta vez é que dei definitivamente cabo do colchão do campismo. Um grosso pico há-de tê-lo perfurado, pois enchi-o três vezes durante a noite e acordava sempre com os ossos seguindo o contorno do solo duro. Também a tenda parece preparada para me pregar uma partida… o fecho da porta começa a teimar em não fechar! Espero que pelo menos a Dempster e o atrelado se aguentem sem sobressaltos até ao Ushuaia…
À linda noite, profusamente estrelada e com a lua a crescer, sucedeu-se uma alvorada cinzenta e chorosa, com as nuvens dispersas a verterem lágrimas grosas. Parece que os últimos dias de sol iam ser interrompidos e teríamos chuva por companhia. Na realidade, mesmo que assim seja, não nos podemos queixar, pois temos tido uma sorte imensa com o tempo, raramente chuvoso e apenas por curtos períodos.
A estrada segue ao longo do rio Pampas, para a nascente, o que significa a subir. Olhando o rio, que corre à direita, parece impossível como aquele pequeno curso de água barrenta, por vezes espartilhado em pequenos fios no largo leito, pode ter arrastado consigo a ponte. Mas claro que quem o vê hoje, não o reconheceria há um mês atrás.
Inesperadamente, pois nos mapas não há qualquer indicação, há uma quase contínua sequência de casas e aldeias ao longo da estrada, nas imediações do rio. Ahuayro é talvez a maior dessas aldeias e as pessoas, qualquer que seja a idade ou o sexo, são de uma simpatia e delicadeza inusitada. Não que espere antipatia ou hostilidade das pessoas, o que seria inédito, mas há uma brutal heterogeneidade de comportamentos e reacções das pessoas à nossa passagem. Por vezes, de uma aldeia para outra, parece que estamos em países diferentes.
O que não difere hoje, é o relevo. Claro que depois dos 50 quilómetros de ontem, a descer, segue-se o reverso da moeda, e teremos de regressar novamente acima dos 4000… Chincheros é um povoado de maior dimensão, que desponta na encosta escarpada da cordilheira andina. Apesar de apenas 27 quilómetros percorridos, o desgaste da constante subida já criou espaço para o almoço, confirmando o vaticínio feito por um habitante de Ahuayro, sugerindo ainda que pernoitássemos em Uripa, pouco depois de Chincheros. E como, mais uma vez, o mapa não regista um único povoado nas próximas dezenas de quilómetros, decidimos levar a sugestão à risca. Alem do mais, tenho três câmaras furadas para substituir ou remendar – tarefa impossível após fazer o levantamento do número de furos: seis na roda da frente; três na de trás; e outros tantos no atrelado, pelo menos, pois como não as ia remendar, não fui exaustivo…
Ao chegar ao topo da subida, já Uripa desaparecera por trás dos cumes suaves dos cerros, sou surpreendido por um polícia que vela para que o trânsito siga pela estrada da esquerda, impedindo que possa prosseguir pela N3, como pretendia. Estão a fazer obras na estrada, preparando-a para ser asfaltada em breve, e vou ter de seguir uma via alternativa, que aparece no mapa com um traço muito fino, sinal de que ainda é mais secundária.
O piso volta ser bastante mau e o Luís parte um apoio do suporte dos alforges dianteiros a meio da descida. Uma pequena operação, onde não faltam abraçadeiras de plástico, arame e mesmo um cordel, e retomamos a rota com mais cuidado e lentidão. Do meio das encostas íngremes surge uma pequena aldeia e, nem por encomenda, há um torno e uma espécie de bancada de serralheiro frente a uma porta fechada. Mas a porta abriu-se, o serralheiro soldou o apoio e, depois de uma gelatina com creme de leite, regressámos à estrada. Seriam uns vinte quilómetros a descer, doze a subir e mais uns quinze, indefinidos, até Andahuaylas. Por estas contas, a distância por este desvio não seria maior do que seguindo a N3. A grande desvantagem parecia ser o piso e o relevo…
A caminho de Andayhualas, por estradas fora do mapa…
Se temos percorrido povoados e estradas remotos, este percurso parece superar tudo o que ficou para trás. As pessoas olham-nos com espantado, por vezes parecem mesmo assustadas com a nossa passagem. Os poucos povoados que cruzamos são minúsculos, raramente têm uma mercearia – de restaurante ou comedor nem se fala – e quando surge, parece ter séculos, com o chão de terra batida, uma tábua em cima de duas pedras a fazer de banco corrido, as poucas mercadorias amontoadas em sacos. E o velho casal de proprietários não destoam, descalços, com as roupas e as mãos da cor do chão de terra. Mas as “galhetas” e o sumo estão dentro do prazo de validade…
Plantação de quinua…
Por sendas, montes e vales. São os Andes…
Chega para lá
A paisagem é andina, com toda a brutalidade que isso significa, com todo o isolamento que implica. As encostas mais amenas e produtivas, são cultivadas em pequenas parcelas, que se estendem geometricamente até ao topo dos montes, numa diversidade de cores e texturas. Por vezes fico de boca aberta e olhar, incrédulo com a localização de algumas culturas, em encostas com um declive onde me parece que nem os pássaros conseguiriam aceder…
Depois de contornar não sei quantos montes, de subir, descer, subir e descer, debaixo do calor impiedoso do sol de meio da tarde e sentir o frio seco do entardecer, quando o mesmo sol se esconde por detrás dos picos mais elevados ou das nuvens mais espessas, surge Talavera, suja, poeirenta, ruidosa, de casebres com ar inacabado. São apenas mais cinco quilómetros para Andauhaylas, que não fica muito melhor na fotografia…excepto pelo compensador jantar: uma grelhada de abundante e deliciosa carne tenra.
Apesar de às sete da manhã começarem a abrir diversos estabelecimentos, não vislumbrámos nenhum restaurante aberto onde pudéssemos tomar o pequeno-almoço. Quando dávamos uma volta ao quarteirão, deparámo-nos com uma vendedora ambulante que, numa esquina, com a sua minúscula banca, não tinha “mãos a medir” para acudir a toda a clientela. Numa pequena frigideira iam-se sucedendo ovos estrelados, tortilhas de legumes e fatias de um tubérculo cujo nome se foi... Das duas panelas saíam conchas de quinua – com maçã ou leite, à vontade do freguês – umas para os copos outras para dentro de sacos de plástico – na versão local do takeway… Juntámo-nos ao magote de clientes, surpresos com a presença de gringos, ainda por cima com trajes estranhos, e aguardámos a nossa vez, mas distinguimo-nos no momento de fazer o pedido: as quatro sandes – cada uma com seu recheio – e três copos de deliciosa quinua com maçã, fizeram de nós os clientes mais alarves e distintos, mas tínhamos de nos “apetrechar” bem para a jornada que nos esperava: uma passagem aos 4100 metros; uma estrada toda ela em obras, em preparação para ser asfaltada; e praticamente nenhum povoado onde almoçar ou sequer abastecer.
Se a estrada começa a trepar pela montanha logo que deixamos San Jerónimo, não é o declive, por vezes bem agreste, o meu maior inimigo. É a combinação do piso degradado – uma mistura de “chapa ondulada” com “caixas de ovos”, num demolidor quebra-costas – com o intenso fluxo de tráfico, incluindo camiões removendo terra e levantando nuvens de poeira. Mas com o passar dos quilómetros, o raio de acção de boa parte dos camiões foi ficando para trás, deixando de nos importunar e o próprio declive foi amenizando, tornando a jornada mais sofrível.
Champachoca saiu-nos ao caminho sem se fazer anunciar no mapa. Tanto melhor se houvesse algum comedor onde trincar algo e repor as energias entretanto idas. Mas não, o único restaurante ainda não tinha nada para servir.
Pausa na produção de adobe, para mascar umas folhas de coca e tomar um bagaço
Não há que se coma, mas há que se beba. Um grupo de trabalhadores da aldeia faz uma pausa, meio sentados, meio deitados em círculo, na relva fresca, ao sol. Dedicam-se ao fabrico comunitário de blocos de adobe para utilização própria e, enquanto descansam e cavaqueiam, vai rodando de mão em mão e boca em boca um copo de aguardente de cana. No centro da roda há um saco de plástico com folha de coca, que vai passando do saco para a boca. Chamam-nos e rapidamente integramos a roda. Bagaço e folha de coca. Mais umas folhas e mais um bagaço e, da amistosa conversa, surge o convite para nos juntarmos ao grupo um dia ou dois a ajudar no trabalho. Seria uma experiência inesquecível seguramente, mas os nossos rumos para hoje estavam traçados: eles continuariam a fabricar os pequenos blocos de adobe e nós tentaríamos chegar a Kishuara.
Paulatinamente os quilómetros vão ficando para trás, conquistando o planalto primeiro, no seu colorido xadrez de pequenas parcelas cultivadas, com predomínio das batatas, e a montanha depois, árida, rochosa, distante, por vezes nevada no cume, perfurando as nuvens e tocando o céu. Numa pausa para o parco lanche, a grandiosidade da paisagem é animada pelo voo, ora picado e nervoso ora suave e tranquilo, de diversas águias vigilantes. Por vezes elevam-se acima dos cumes, riscando de negro o céu azul, outras rasam o vale, num rasto de reflexos dourados na plumagem brilhante. E quando surgem outras aves intrusas, “escoltam-nas” agressivamente para longe…
O fim da subida aproxima-se. Para trás fica o vasto planalto, retalhado em pequenas parcelas verdejantes
Os quarenta quilómetros esperados de subida, aproximam-se do fim; o piso é agora muito melhor, pois os trabalhos preparatórios para pôr o asfalto estão na fase final; o próprio desnível atenua-se e, comparando com alguns quilómetros atrás, parece mesmo plano.
Na berma da larga estrada está uma camioneta estacionada. À ilharga, na parcela de terra negra, quatro jovens raparigas em trajes coloridos, arrepelam, acocoradas, ervas verdes onde despontam pequenos malmequeres: chamam-lhes manzanita – a minha avó chamava-lhe margaça e mandava-me colhê-las para as ovelhas. Aqui dizem-me que as secam e vendem para a indústria cosmética… Seja como for, o Richard Chilingano – o condutor da camioneta – chama-me do meio do campo de manzanita e pede-me que lá vá. Apoio a bicicleta no descanso e, de calções e t-shirt, calcorreio a terra negra e irregular até chegar junto do grupo: a Octávia Velasquez – a menos tímida do grupo – quer tirar uma fotografia comigo. O meu entusiasmo contrasta com a timidez das demais mas, com o incentivo da Octávia e do Richard, rapidamente iniciamos uma sessão de fotografias, em grupo, dois a dois, com a minha máquina, com a da Octávia – não sei porque raio veio para o campo colher manzanita com a pequena kodak na bolsa! A Octávia está contente, entusiasmada mesmo, com as fotos, quer quando tira com a máquina dela, quer quando sou eu ou o Richard a fotografar. As outras três hesitam, tímidas, envergonhadas, mas vão aderindo com o nosso estímulo. Parece absurdo, ridículo, um pouco feliniano, aquela sessão de fotografias no cume dos Andes: um gringo “alto” com calções justos de ciclista, t-shirt laranja e óculos escuros, rodeado de camponesas andinas, nos seus abundantes trajes coloridos, marcadas pela natureza rude e bravia dos Andes.
No campo, com as jovens que colhiam manzanita
O Luís chegou entretanto e juntou-se à sessão… já íamos embora quando nos pedem que esperemos um pouco mais. Afinal, um jovem descia a encosta em frente – que suspeito ser namorado ou marido da Octávia – e a Octávia queria nova sessão de fotografias, agora também com ele… curioso foi quando nos despedimos, o olhar baixo e as mãos fugidias que, a contragosto nos estenderam. Estou convencido que envergonhadas pela negrura da terra que lhes cobria totalmente as mãos ásperas.
Enquanto aguardávamos sinal verde dos operários da estrada, iam-se juntando curiosos de outros veículos em redor da bicicleta
Deixámos as curiosas andinas e regressámos à estrada para atingir os 4100 metros de altitude anunciados. A partir dali seria (quase) sempre a descer até Kishuara, a aldeia da nossa esperança, que distava uns bons vinte quilómetros e algumas paragens obrigatórias, devido às constantes obras na estrada. Foi já debaixo do frio negro do anoitecer, que chegámos à pequena aldeia, perdida nas rugas das montanhas que a escondem. A única hospedagem da aldeia estava totalmente cheia! A explicação é, mais uma vez, simples: há professores que vêm “desterrados” para estes fins-de-mundo e ficam alojados no que há… Apesar do ar pouco convidativo, das portas sujas e empenadas nas paredes de adobe bruto, de não haver duche nem água corrente, contávamos com aquele poiso para pernoitar, pois a noite caia gelada e a vontade de procurar um recanto relvado para montar a tenda, era nula. O proprietário abriu uma das portas do rés-do-chão, ligou a luz, que iluminou a “rústica” divisão, com chão de terra, prateleiras poeirentas nas paredes e uma “cama” a um canto. Se quiséssemos podia montar outra cama ao lado para aqui pernoitarmos. Chegou o estrado, as travessas, uma esteira da cor do chão de terra e um braçado de cobertores. As bicicletas partilharam o rústico espaço e, mais uma vez, dormimos lado a lado.
Quarto em Kishuara
Apesar das borboletas e enormes melgas – ou uma qualquer outra espécie de insectos que esvoaçavam constantemente contra a luz e a parede – não registei qualquer reclamação nocturna… dormi vestido e “calçado”, de gorro na cabeça e aconchegado dentro do saco-cama, pois não tive coragem para tocar as mantas…
A manhã levantou-se tão gelada quanto se tinha deitado e os raios de sol que iam trepando as colinas e apontando a luz preguiçosa às encostas frias, pareciam demasiado tímidos para afrontar o frio e o banirem do caminho.
Família em trânsito…
Para deixar Kishuara é necessário transpor alguns quilómetros de declive até à estrada principal, que prossegue subindo um pouco mais. Atingido o patamar de inflexão do relevo, sucedem-se pelo menos cinquenta quilómetros de descida, por vezes vertiginosa, até esbarrar no rio Pachachaca, à ilharga de Abancay. É uma jornada memorável, pois desde “manhãzinha” que se avista, do outro lado do vale, no sopé de uma distante cadeia montanhosa, um povoado grande que só pode ser Abancay. Mas por outro lado parece impossível distar os setenta quilómetros indiciados pelo mapa. Certo é que, curva após curva, descida após descida, precipício após precipício, as dúvidas vão desaparecendo, os quilómetros sucedem-se e Abancay é cada vez mais real.
Vida quotidiana…
Numa minúscula aldeia, andes de ter inicio a derradeira e abrupta descida para o rio, paramos na pequena tasca para um refresco e umas “galhetas”. Em sentido contrário surgem o Adrian e a Ana, jovem casal francês que está a dar “a volta ao mundo em bicicleta”. A curiosidade maior é que utilizam umas bikes xpto, que têm como grande factor distintivo o facto de viajarem quase deitados, pedalando praticamente em posição horizontal ao solo. Não são os primeiros que vejo com estes aparatos e dizem todos que é muito confortável e cómodo…quiçá lá para os 70… Trocámos uns “cromos”, que é como quem diz, informação sobre a viagem. Respiram de alívio quando lhes digo que podem passar o rio Pampa de canoa e que a estrada para Ayacucho já está aberta. É que o Adrian tem uma espécie de gráfico altimétrico do percurso e estava a imaginar uma volta enorme, com mais um pico acima dos 4000 metros, para contornar a estrada que esteve cerrada ao trânsito três meses. Pelo meu lado, o que vi não foi surpresa: de Abancay a Cuzco tinha pela frente dois picos de 4000… mais do mesmo, portanto.
Planos para quando for velhinho…
Mais uma vez, quase no fim da descida furei à frente. Apesar de descer com cuidado e já vir a fazer “contas de cabeça” com mais um dia sem furar, o pneu vazou instantaneamente… a câmara tinha um rasgo de para aí um centímetro – qualidade chinesa, já se vê, pois não foi trilhadela nem furo, simplesmente rasgou!
Antes de chegar a Abancay, no início da subida em asfalto, senti uma estranho movimento no pneu de trás. Pensei que fossem raios desafinados e a roda empenada mas o olho clínico do Luís identificou uma pequena “barriga” no pneu: estava rebentado junto ao aro. Felizmente Abancay estava à vista, ainda que distasse uma subida de uma dúzia de quilómetros.
Descida para Abancay
A oficina que me recomendaram para tratar a saúde da Dempster, era perto do hotel mas, para minha surpresa e desconfiança – confesso – apenas tinha uma jovem – filha da proprietária – como interlocutora. Para além de mudar o pneu, queria substituir cabos e camisas dos travões e perguntei se não havia um mecânico. A moça disse que sim, que devia chegar a qualquer momento. Enquanto eu iniciava a operação de mudança do pneu, a rapariga começa a tirar cabos, soltar manetes, cortar camisas, meter óleo e enfiar cabos. E eu, desconfiado mas curioso, fui vendo a ágil miúda, de mãos enegrecidas e ar decidido, dar-me cabo da bicicleta. Parece que nem correu muito mal, pois à data em que escrevo sobre o assunto, já lá vai mais de um mês e 2000 quilómetros, a “coisa” vai-se mantendo funcional…
Ofereci-lhe umas bolachas de chocolate. Provou uma e pediu-me mais!
Após voltar a dobrar um cume acima dos 4000, a paisagem que se estende a perder de vista é completamente nova e surpreendente – pelo menos os campos baixos. Nas geométricas parcelas de terreno, integralmente cultivadas, predomina um colorido inusual, com profusas flores brancas a inundarem o espaço, libertando um aroma forte, algo familiar: são campos de flor de anis…
Campos de anis… e não só
Quishuara é a capital do anis, no Peru. Não sei se o negócio é rentável, mas pareceu-me viver-se melhor neste pequeno povoado do que na generalidade das zonas rurais que fui conhecendo… sem ser fim-de-semana, os restaurantes estavam cheios, os miúdos que inundam as ruas, melhor vestidos e alguns (bastante) jovens, jantam em grupo no restaurante…
Já só falta descer ao rio Apurimac, subir de novo aos 4000, ser roubado inadvertidamente por uns putos estúpidos e barulhentos, que me empurraram o atrelado uns metros na subida e levaram, em troca, o boião da água e a bandeira do atrelado com metade da haste, para chegar a Cuzco, a mítica capital Inca. Perdão, falta um bocado mais…
Últimos 4000 antes de Cuzco e de ser roubado
No fim da estafante subida, a estrada desliza suavemente, com um declive ligeiro mas delicioso. A tarde já vai a meio e Cuzco fica adiado para amanhã. O vale, aberto e cultivado, é rasgado ao meio pela estreita faixa de asfalto. Em Ancahuasi a estrada enche-se de cor, música, movimento e ruído. É dia de San Isidro, o padroeiro dos agricultores e há festa rija. Numa parcela de terra preta, contígua à estrada, várias juntas de bois, por regra enfeitados com fitas garridas, arrastam arados de madeira de fabrico completamente artesanal. A jeira de terra está anarquicamente sulcada, com regos em todas as direcções. Na berma da estrada, no meio da terra ou na relva circundante, homens, mulheres e crianças em garridos trajes domingueiros, comem, bebem, conversam, em grande algazarra.
Festa de San Isidro, em Ancahuasi
“Ponho-me a jeito”, abrandando até parar mesmo e um grupo de bebedores chama-me, acenando, do meio da jeira lavrada. Claro que não me faço rogado e em escassos segundos empunho uma caneca de chicha de maiz, enquanto oiço as explicações sobre a festividade. O dia de San Isidro marca o início das sementeiras. Cada família traz a sua junta de bois e lavra uns regos simbólicos, para dar sorte na sementeira. Ainda não despejei a caneca de chicha e já o “mordomo” da festa me leva pelo braço para junto da comida, ofertando-me um prato a transbordar e mais uma caneca de chicha. Naquela altura já estou rodeado por miúdos e graúdos, que parecem espantados e agradados com o meu apetite voraz! E o repasto não podia ficar completo sem meio copo de bagaço, ou não fora uma festa camponesa! Sucedeu-se uma sessão de fotografias e estava a ver que não conseguia sair dali antes do sol-pôr, pois todos queriam ser fotografados, com bois, sem bois, agarrados ao arado, comigo ou em família.
Festa do Cuy
Poucos quilómetros adiante, perto de Anta, a festa continuava. Desta vez era o festival do cuy, o célebre roedor, nem rato nem coelho, mas algo intermédio, típica iguaria gastronómica do Peru. Máscaras, danças, música, comes e bebes pela noite fora…
Cuzco surge no valado plano, rodeado de montes em mais de 270º. Visto do topo oeste, por onde a estrada espreita, a praça de armas e as torres e campanários de diversas igrejas, destacam-se na poderosa mancha vermelha dos telhados tradicionais, em telha de canudo. Do centro para a periferia, a mancha urbana cresce de forma dispersa e anárquica, conquistando as encostas altaneiras.
Cuzco, visto de San Cristobal
A densidade de turistas no centro da cidade é equivalente à densidade de cafés, restaurantes, hospedagens, agências de turismo, lojas de artesanato e de “recuerdos” que proliferam e dominam totalmente o centro “alargado” da cidade. Provavelmente beneficiando da entrada de Machu Picchu na lista das “sete maravilhas do mundo”, Cuzco tornou-se num dos principais pólos turísticos da América do Sul.
Um pouco de Cuzco…
Procurando abstrair-me da economia turística e das torrentes de turistas que inundam o centro, deixei-me perder pelas estreitas vielas que trepam à igreja de San Cristobal, proporcionando uma das melhores vistas panorâmicas do centro da cidade. Conventos, igrejas, edifícios coloniais de soberbas varandas em madeira e requintados pátios interiores, proliferam pelo centro de Cuzco. Mas uma das particularidades, provavelmente única, da capital do Império Inca, são os vestígios da singular construção: geométricos blocos de pedra encaixam uns nos outros, sem juntas de argamassa mas sim através de um sistema de encaixes simétricos nas pedras adjacentes. Os escassos vestígios visíveis, são de uma perfeição e geometrias impressionantes. E dizem os entendidos que a construção era anti-sísmica, com as paredes levemente inclinadas, criando um centro de gravidade “interno” ao edifício…
Muro Inca e muro espanhol…
Que raio de gotas de agua sem respeito pela gravidade!
ResponderEliminarSegui o conselho que alguém escreveu num outro comentário e passei a maximizar as fotos. Confirmo que vale bem a pena, ficamos com uma melhor noção da grandiosidade da paisagem. Mesmo nos sítios mais horríveis existe sempre uma réstea de beleza. Um grande abraço e muita força. Luís M.
ResponderEliminarContinuo sem a tua pedalada!... sucedem-se os dias cheios mas sempre iguais e, quando me apercebo, já postaste mais uma magnífica etapa... é curioso acertar exactamente no post em que rematas com uma das minhas partes favoritas dos diários de motocicleta do Che: o muro dos incas e dos incapazes... Se ficares por aí mais uns meses, talvez nos encontremos... *,cuida-te
ResponderEliminarAinda bem que a única "coisa" que entrou foi um Sapo. Podia ter sido muito pior ... bom, ou melhor :) Abraço
ResponderEliminarsobe, desce, sobe, desce, sobe, desce... esse país e esses Andes parecem intermináveis. Se eu subisse a um único pico de 4000m de bicla sentiria-me como um super homem e vocês parecem coleccioná-los como se não houvesse amanhã. Ganhamos nós com a paisagem variada e deslumbrante. Emocionante aventura bem descrita e acompanhada pelas habituais imagens exóticas de vida do mundo. Interessante a pachamanca ou o estendal de carne, linda a foto dos campos de anis só para mencionar uma. Cuzco parece ter o mesmo encanto de que eu me lembro há 9 anos. Obrigado e força para esse sobe e desce continuado.
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